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ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

5. Capitalismo tardio (1851-1888): a modernização chega ao Brasil trazendo novas tecnologias que servirão, porém, a um modelo arcaico de sociedade A navegação

2.4 Ações afirmativas e Igualdade

2.4.1 O alcance das Ações Afirmativas

Diante do exposto até aqui, é possível concluir que, a despeito dos avanços conquistados pelo protagonismo da população negra por meio de organização em movimentos sociais, a morosidade do poder público é o que ainda prevalece diante da perspectiva de adoção de políticas de Estado duradouras e eficazes.

As poucas experiências não passaram por avaliação e não tiveram continuidade, por estarem desarticuladas entre si ou de sua estratégia ou plano. Tampouco foram consolidadas institucionalmente em forma de programas, com planejamento e destinação orçamentária (JACCOUD, 2008).

Infere-se que o Estado brasileiro não demonstrou real interesse na adoção de Políticas Públicas afirmativas, mantendo a população excluída do acesso aos direitos

sociais básicos, dentre eles a educação, na medida em que não apresentou Políticas Públicas impactantes e especialmente desvinculadas de interesses prevalecentes.

A sociedade almejada deve ser capaz de quebrar o ciclo de produção/reprodução do racismo em um contexto social onde as relações não sejam pautadas na exploração do trabalho humano em favor de poucos. Tratar-se-ia de um momento histórico em que a subalternização de grupos sociais desapareceria proporcionalmente à necessidade de manutenção do sistema regido pelo lucro e pelo acúmulo do capital, abrindo real espaço de combate ao racismo. Significa dizer que o fim do capitalismo não representa, de modo automático, a superação do racismo, mas é importante condição para tal. Não se deve lutar por um capitalismo mais humano, mas pela sua completa desestruturação.

No Brasil, o debate no campo das Políticas Públicas com recorte racial precisa ser ampliado; sua relevância estratégica deve ser reafirmada assim como deve contar com uma coordenação que possa integrar, ampliar, monitorar e avaliar programas e políticas. O que se tem é um conjunto de ações descontínuas por falta de orçamento e isoladas de outras políticas (JACCOUD, 2008).

Apoiamo-nos nas reflexões de Rocha (2006) para respaldar nosso entendimento acerca da localização das Políticas Públicas, em especial, as afirmativas, em um contexto capitalista. O autor aborda as contradições presentes nesse debate e questiona o alcance dessas políticas que, na realidade, são parte da ordem econômica vigente. O protagonismo dos movimentos sociais negros foi e segue como estratégia crucial rumo à busca pela superação do racismo no Brasil, contudo, como afirma o pesquisador, não podemos desconsiderar que as políticas afirmativas também fazem parte da agenda dos organismos internacionais – que, sendo representantes do capital, pensam a inclusão pela ótica do capital.

Tendo como ponto de partida essa contradição, asseveramos que as ações afirmativas que acabam funcionando como paliativos ou mesmo permanecem como “letra morta”, não podem ser consideradas como medidas “anti-capitalistas”, mas possivelmente funcionem como uma espécie de conformação de demandas para a manutenção da ordem. Como destaca Mazzone (2014), a ausência de engajamento governamental atribuiu à legislação características puramente reformistas, impedindo-a de representar um real instrumento de reforma educativa. Dentro dessa perspectiva, a pesquisadora Garcia-Filice (2010, p. 133) assevera que

[...] o Estado que ao longo dos anos, seja ele autoritário ou democrático, apresenta uma longa trajetória de se reestruturar para acomodar interesses e conflitos, na verdade não objetiva solucioná-los. Esses são limites concretos que escancaram a seguinte contradição: as políticas de ações afirmativas vistas como acomodação reprimem seu potencial voltado para alterar as estruturas culturais, econômicas e políticas brasileiras.

A partir das considerações Garcia-Filice consideramos oportuno estabelecer o diálogo com Nancy Fraser (2001) que coloca em xeque o alcance das políticas afirmativas

em um contexto liberal de Estado e nos apresenta um quadro com

questionamentos a respeito do alcance das políticas afirmativas a partir da noção de redistribuição e reconhecimento.

A luta por reconhecimento das diferenças passou a ocupar a arena política desde o fim do século XX. Nesse quadro, interesses de classe e a dominação material são suplantados pela ideia de dominação cultural. Significa dizer que disputas por reconhecimento acontecem em um contexto de injustiça material exacerbada. Não se trata de rejeitar políticas de reconhecimento, mas de desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento defensora de uma política cultural da diferença que efetivamente possa se associar a uma política social da igualdade unindo reconhecimento e redistribuição (FRASER, 2001).

Genericamente, redistribuição é entendida como o remédio para injustiça econômica e envolve algum tipo de reestruturação nesse campo como redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, decisões democráticas sobre ações de investimentos. Já reconhecimento é o remédio apenas para injustiça cultural ou simbólica como reavaliação positiva de identidades desrespeitadas, bem como dos produtos culturais de grupos marginalizados; reconhecimento e valorização positiva da diversidade cultural e poderia ainda envolver a transformação geral dos padrões de representação, interpretação e comunicação, visando alterar as percepções da individualidade (FRASER, 2011).

Em razão dessa aparente contradição entre as duas, há, com frequência, tensão entre as duas vertentes das políticas, de modo que uma pode interferir ou até atrapalhar a outra. Embora apresente analiticamente as diferenças entre redistribuição e reconhecimento, Fraser (2011) considera as interferências mútuas entre as duas formas de política. Políticas de reconhecimento buscam valorizar as especificidades de cada segmento social. Em contrapartida, as políticas de redistribuição buscam romper com as diferenças entre os grupos. Portanto, reivindicações de reconhecimento comumente chamam a atenção para as especificidades de algum grupo para então afirmar seus

valores e, com isso, tendem a promover a diferenciação entre grupos. Já as demandas redistributivas reivindicam a abolição de arranjos econômicos que provocam as especificidades entre grupos e, ao contrário do reconhecimento, tendem a promover a homogeneização entre grupos. A autora identifica esse fenômeno com o dilema redistribuição/reconhecimento. Embora seja possível pensar modos puros de demandas (redistribuição ou reconhecimento), pessoas sujeitas a ambas – injustiças cultural e econômica – precisam tanto de reconhecimento como de redistribuição, ou seja, precisam reivindicar e ao mesmo tempo negar suas especificidades.

A autora examina a relação entre redistribuição e reconhecimento conceitualizando reconhecimento cultural e igualdade social, de modo que ambos se sustentem e se fortaleçam, pensando sobre os modos como desvantagem econômica e desrespeito cultural se entrelaçam e se afetam, e quais dilemas políticos se apresentam quando se tenta combater as duas formas, e conclui:

Normas culturais enviesadas de forma injusta contra alguns são institucionalizadas no Estado e na economia, enquanto as desvantagens econômicas impedem participação igual na fabricação da cultura em esferas públicas e no cotidiano. O resultado é frequentemente um ciclo vicioso de subordinação cultural e econômica (idem, p. 251).

Em diálogo com Fraser, questionamos o alcance das políticas considerando coletividades que combinam raça e classe. Tais grupos são diferenciados como coletividade devido à estrutura político-econômica e também por causa da estrutura cultural valorativa. Por essa razão, sofrem injustiças ligadas às duas esferas simultaneamente:

Coletividades ambivalentes, em suma, podem sofrer injustiças socioeconômicas e não-reconhecimento cultural em formas nas quais nenhuma dessas injustiças é um efeito indireto da outra, mas em que ambas são primárias e originais. Nesse caso, nem remédios redistributivos e nem de reconhecimento isoladamente são suficientes (FRASER, 2011, p.259).

A ocupação de papéis e lugares sociais é definida pela Interseccionalidade entre raça e classe. Para transformar sua situação de subalternidade, a pessoa negra precisa suplantar as relações sociais que a colocam como proletária por meio dos desses eixos de subordinação.

“Raça” é, então, um modo ambivalente de coletividade. Corresponde a um princípio estruturante da economia política, pautando a divisão capitalista do trabalho, bem como a divisão dentro do trabalho assalariado, determinando colocação em ocupações desprivilegiadas e as de maior status e mais bem pagas como herança da escravidão fundamentada em categorizações raciais usadas para justificar a exploração (FRASER, 2011). Importante lembrar que o racismo não representa apenas herança da escravidão, mas envolve a manutenção de políticas segregacionistas e a omissão do Estado.

Desde o final do século XX, movimentos sociais articulam-se em torno dos eixos de diferenças perdendo a centralidade do conceito de classe. Reivindicações identitárias predominam sobre demandas de redistribuição (FRASER, 2001).

As sociedades contemporâneas são permeadas por injustiças de ordem cultural e injustiça socioeconômica por meio de processos e práticas que prejudicam alguns grupos enquanto privilegiam outros (FRASER, 2011). Discutiremos as duas formas de injustiça, destacando os pontos de contatos e as contradições na relação entre elas.

Para compreendermos este processo, a autora aborda duas formas de injustiças: a socioeconômica – concernente à estrutura político-econômica da sociedade – e a cultural ou simbólica – enraizada a padrões sociais de representação, interpretação e comunicação.

Embora ambas sigam imbricadas, podemos entender, analiticamente, que a injustiça simbólica envolve a dominação cultural, não reconhecimento e desrespeito. A dominação cultural refere-se à sujeição a padrões culturais de interpretação e comunicação hegemônicos; enquanto o não reconhecimento significa invisibilidade nas práticas representacionais, comunicativas e interpretativas de uma cultura. E desrespeito, por sua vez, se revela como difamação pública por meio de representações estereotipadas culturais e/ou em interações diárias (FRASER, 2001).

A injustiça cultural é parte da construção ideológica de manutenção da exclusão racial tão necessária aos interesses econômicos em uma sociedade capitalista. Por essa razão, a luta por reconhecimento dissociada da pauta por redistribuição pode gerar políticas inócuas.

O quesito “raça” determina o acesso ao mercado de trabalho (estruturando ocupações) ou direciona a total exclusão do sistema produtivo gerando modos de exploração, marginalização e privação, tendo como medida a questão racial. A partir desse olhar, entendemos que “raça” abarca certas características de classe, o que pede soluções redistributivas que possam promover a transformação da economia política

buscando eliminar sua racialização. No entanto, “raça” apresenta dimensões culturais- valorativas como o eurocentrismo, acompanhado da desvalorização e depreciação da negritude. As faces político-econômica e a cultural valorativa se reforçam de forma mútua e dialética (FRASER, 2001).

Merecem destaque algumas iniciativas do Ministério Público do Trabalho (MPT) com ações que pretendem buscar formas de intervenção na área trabalhista. Em 2005, o MPT lançou o “Programa de Promoção da Igualdade de Oportunidades para Todos” com o intuito de combater as desigualdades de raça e gênero nas relações de trabalho. Inicialmente, o MPT trabalha com a sensibilização de empresas com práticas discriminatórias seguidas,quando for ocaso, de ajuizamento de ações civis públicas (JACCOUD, 2008).

Trata-se de uma tentativa de reconhecimento jurídico da discriminação racial indireta. Varella (2009) analisa cinco ações civis públicas interpostas pelo MPT contra cinco grandes bancos brasileiros privados no Distrito Federal. As ações propuseram ao judiciário que reconhecesse a discriminação indireta e então referendasse a adoção de ações afirmativas que pudessem reparar o dano aos interesses coletivos dos/as negros. O autor aponta as resistências tanto em identificar tal discriminação como em adotar medidas que possam combatê-la. O principal argumento envolve a dificuldade em provar a existência de processos discriminatórios, o que culmina na isenção da responsabilidade no tocante à reparação. O autor conclui que ideologias e interesses articulam-se para isentar a elite econômica do ônus que recairia sobre ela e aponta tais resultados como estratégia da elite jurídica para manter o modelo republicano liberal.

Reparar injustiça racial requer mudanças tanto na economia política quanto na cultura. O racismo é institucionalizado pelo Estado e pela economia, fortalecendo uma dinâmica de silenciamento provocada pela desvantagem econômica sofrida pelas pessoas negras. Portanto, redistribuição e reconhecimento não podem ser facilmente buscados juntos, uma vez que aquela pede o fim da diferenciação entre as raças, enquanto este busca valorizar a especificidades culturais do grupo negro.

Para sanar este dilema, Fraser (2011) diferencia remédios afirmativos e transformativos. Os remédios afirmativos seriam voltados às alterações de injustiças resultantes de determinados arranjos sociais, contudo, sem alterar o arcabouço que as geram. Já os remédios transformativos seriam voltados à superação de injustiças necessariamente a partir da reestruturação da estrutura que as produz.

Os remédios afirmativos buscam reparar o desrespeito por meio da valorização da identidade, não considerando o conteúdo dessas identidades no tocante à

diferenciação entre os grupos. Os remédios transformativos reverberam na estrutura cultural subjacente, promovendo a desconstrução da estrutura cultural valorativa (FRASER, 2001).

A autora classifica políticas afirmativas de redistribuição como realocações superficiais que compõem um projeto do Estado de Bem-Estar liberal que tende a fortalecer diferenciação entre os grupos, podendo ser desfavorável quanto a busca por reconhecimento. Já nas políticas afirmativas de reconhecimento há predominância do culturalismo centrado em realocações superficiais de respeito podendo intensificar as diferenciações entre os grupos.

A proposta da autora recai sobre políticas transformativas (redistributivas e de reconhecimento). As políticas transformativas redistributivas partem de um projeto socialista que pretende reestruturar as relações de produção, buscando impedir a diferenciação entre grupos, podendo abarcar alguma forma de não reconhecimento. As políticas transformativas de reconhecimento envolvem um projeto de desconstrução ao reestruturar as relações de reconhecimento, buscando desestabilizar diferenciações entre grupos.

A partir da perspectiva de Fraser (2001), é possível notar os limites e fragilidades das políticas até então adotadas pelo Estado brasileiro. O projeto seguido pelo Estado privilegia o grupo dominante branco que ele representa por meio das relações sociais desiguais que beneficiam economicamente uma parcela da sociedade.

Em suma, as políticas afirmativas consistem em remédios que visam reparar injustiças sociais sem interferir no quadro subjacente que as gera. Políticas transformativas pedem a reestruturação dos quadros sociais que geram a injustiça. Enquanto a afirmação defende um reconhecimento específico dos grupos e indivíduos, a transformação defende a desconstrução das dicotomias conceituais que produzem os efeitos de dominação social. Para a autora, as políticas afirmativas não questionam as bases estruturais da dominação.

No tocante à raça, as políticas afirmativas de redistribuição ou reconhecimento não conseguirão alcançar questões estruturais do problema. A redistribuição afirmativa prevê a reparação de injustiça racial na economia, buscando incluir a população negra no mercado de trabalho, por exemplo. Porém, a natureza e o número desses empregos permanecem intactos. No caso do reconhecimento afirmativo, que busca reparar injustiça racial, há um esforço de assegurar respeito às pessoas negras por meio da valorização da negritude. Permanece, porém, o código binário branco/negro que pauta a relação.

Assumimos que as reais transformações que almejamos, sobretudo no campo educacional, não prescindem da inclusão, para além de mecanismos simbólicos, de dispositivos materiais que possam garantir a permanência qualificada de estudantes negros/as ao longo de todo o percurso educativo por meio de medidas que afetem a organização-sócio racial brasileira. Tais dispositivos correspondem à junção entre políticas transformativas de reconhecimento com políticas transformativas redistributivas, uma vez que, isoladamente, elas não conseguem transformar realidades.

É crucial a compreensão de que não há intenção de negar que as medidas afirmativas até então adotadas são necessárias e trazem resultados. As reflexões apresentadas nesta produção devem ser entendidas como um alerta para que as Políticas Públicas não se limitem a concessões capazes de silenciar os movimentos sociais.

Este é um debate denso que não pretendemos esgotar neste trabalho. Acreditamos que uma postura transformativa pede alterações estruturais na sociedade. Temos em nossas políticas arranjos que mantêm a estrutura social desigual, mantendo o cerne das injustiças sociais intacto.

O ponto crucial do debate nesta pesquisa é a necessidade de correção das desigualdades na educação básica – o que não significa anular políticas afirmativas para ingresso na graduação, pós-graduação e concursos públicos.

Nesse sentido, pautamos a necessidade de consolidação de ações na Educação Básica – para além do âmbito formal – acompanhadas de novas demandas que considerem o plano macro em que tais ações estão postas, de modo que possamos avaliar as reais possibilidades de mudanças. Pretendemos discutir as fragilidades dessas ações no campo educacional, tendo em vista os recentes acontecimentos no Brasil, que representam sérios retrocessos de políticas sociais por meio de medidas provisórias ou decretos presidenciais, ações que desconsideram o diálogo com a sociedade e impõem um modelo de ensino que atende aos interesses hegemônicos.

CAPÍTULO 3

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTICO-RACIAIS: