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ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

2.1 O lugar do Estado brasileiro

A discussão sobre a materialidade da legislação antirracista no âmbito das políticas educacionais proposta neste estudo exige a compreensão a respeito do papel do Estado dentro do sistema capitalista e qual a função do racismo dentro de uma sociedade estruturada de forma desigual excludente.

Por meio da engrenagem abaixo buscamos ilustrar que o racismo é parte do sistema capitalista e não está separado da estrutura que interliga Estado, exploração e ideologias.

Assim temos que

A função do Estado é manter a ordem capitalista pautada na exploração;

A exploração é mantida por meio da reprodução de ideologias de controle e naturalização das desigualdades;

A educação é um dentre os aparelhos ideológicos do Estado;

O racismo garante a abastecimento do Exército Industrial de Reserva13 ao direcionar o segmento social negro às ocupações de menor prestígio social.

Numa sociedade de classes, ao contrário do que se costuma imaginas, o Estado não está acima delas, ocupando o lugar de ente conciliador dos conflitos; diferente disso, ele configura-se enquanto instrumento da classe dominante em favor de seus interesses visando a perpetuação de privilégios. Dito isto, entende-se que o Estado é capitalista, não importa quem está governando. Estado é uma peça do capitalismo, sendo então, necessariamente e essencialmente capitalista (MASCARO, 2013).

O Estado é parte do sistema e serve a determinados fins. Portanto, a grande questão não é “mudar” o Estado por meio da eleição de novos/as governantes, mas a compreensão de que a sociedade está fraturada em classes sociais e dentro dessa divisão antagônica, a manutenção da segregação racial significa a continuidade da reserva de mão de obra barata (Idem, 2013).

Significa afirmar que os processos discriminatórios baseados no racismo são semeados em nome da manutenção da divisão de classes agindo como facilitador da exploração do trabalho. Clovis Moura (2014, p. 219) assevera que

O negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivência social, cultural, e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as técnicas de seleção profissional, cultural, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do Negro, pois o interesse da classe dominante é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no seu conjunto.

Em diálogo com Clóvis Moura (2014), entende-se que a organização social em classes veio acompanhada de barreiras raciais que foram sendo postas como mais um mecanismo de manutenção da exploração. A segregação racial tem o intuito de garantir que determinado segmento social permaneça com dificuldade de mobilidade social. O racismo serve, portanto, à manutenção de um exército industrial de reserva como parte da engrenagem do sistema capitalista dada a necessidade de provimento de mão de obra precarizada.

13A lei acumulação do capital exige que parcela dos/as trabalhadores/as seja mantida desempregada ou em

subempregos. Esse excedente de mão de obra Marx denominou exército industrial de reserva (MARX, 1980).

Tais constatações nos permitem verificar como o racismo é produtor e reprodutor das condições materiais históricas estruturantes das relações sócio-raciais desde o estágio pré-capitalista.

Ianni (1988) afirma que as relações escravagistas não sucumbiram por converterem-se em atividades improdutivas em si, mas por se tornarem obsoletas em relação a uma forma de produção mais rentável que surgia para atender ao capitalismo emergente. O autor chama a atenção para a visibilidade marcante de negros ocupando as classes assalariadas revelando que raça e classe unem-se reciprocamente num processo de dupla alienação produzida historicamente e afirma:

Depois da abolição, ocorrida em 1988, em várias partes do país, o negro tornou-se um desempregado, e mesmo lumpenizou-se14 devido às

condições adversas que precisou enfrentar na competição com o branco, o imigrante, o italiano, o alemão e outras categorias do ambiente racial brasileiro. Nessa época, ele é talvez o principal elemento do exército de trabalhadores de reserva. Depois, pouco a pouco, vai sendo absorvido nas ocupações assalariadas que se multiplicam e de diferenciam com a urbanização e a industrialização. Assim, pouco a pouco, ele se transforma em negro operário, na indústria ou na agricultura. (p.98-99)

A relação entre racismo e escravidão está na realocação de ex-escravizados – por meio da discriminação racial velada – como desempregados/as ou ocupando as funções rejeitadas pelas pessoas brancas como trabalhadores/as não qualificados ou subalternizados. Trata-se da passagem do escravismo para o capitalismo industrial marcada pela transformação das relações de produção em que as classes substituem as castas – formadas de um lado, por senhores, e do outro, pessoas escravizadas (IANNI, 1988).

O excesso de oferta de trabalhadores/as garante uma seleção pautada não apenas na qualificação profissional, mas em função do pertencimento racial, étnico, religioso ou mesmo filiação política. O resultado é ampliação e sofisticação das possibilidades de discriminação, inclusive entre trabalhadores/as pertencentes à mesma classe social. Verifica-se que os problemas raciais tendem a se intensificar em contexto capitalista. Num palco de competitividade desigual com o/a branco, a pessoa negra é impelida a compor o exército industrial de reserva. O racismo atua, portanto, como um eficaz instrumento para a garantia de exploração dos trabalhadores (IANNI, 1988). Isso porque o excedente de mão de obra – de maioria negra– permite larga margem de

14 A expressão lumpem proletariado indica a condição de pessoas que, em tempos de extremas crises e de

desintegração social separarem-se de sua classe formando uma massa “desgovernada”, compondo um grupo extremamente vulnerável à disseminação de ideologias reacionárias (BOTTOMORE, 2001).

possibilidades de opressão no mundo do trabalho uma vez que, por mais precarizado que possa ser um trabalho assalariado, pode parecer suficiente se comparado ao desemprego ou atividades subalternizadas onde estão localizadas as pessoas negras.

Nizan Almeida (2014) assevera como as relações étnico-raciais foram acompanhando a lógica dos diferentes modos de produção e a forma como o expansionismo territorial, ligado às restrições à liberdade e ao direito à educação, afetou a população negra. Para o autor, a construção da invisibilidade e da exclusão racial envolveu a cuidadosa elaboração de ideologias por segmentos dominantes, visando manter a concentração de riquezas e poder por meio das explorações etnocêntricas que consideravam classe e raça.

Com a alteração dos modos de produção, o fim da exploração e da necessidade de acumulação de riquezas, o racismo, que se pautou nesses pressupostos capitalistas – primeiro como escravidão e depois como forma de manutenção de privilégios – perderá sua lógica de reprodução.

Não queremos, com essa interpretação, afirmar que o racismo desaparecerá de forma automática. Diferente disso, construções ideológicas cristalizadas pelo capitalismo não prescindem de ações contundentes que possam reverter as Representações Sociais racistas construídas e reformuladas durante séculos. Não temos dúvidas, porém, de que em um contexto social em que o capital não figure acima de qualquer pressuposto ético e legal, o combate ao racismo ganhará espaço e condições de efetivação.

As sociedades coloniais tiveram suas relações econômicas organizadas atendendo a lógica do mercantilismo marcando o modo primitivo de acumulação. A lógica mercantil reguladora do tráfico era um importante componente na manutenção e expansão da escravatura que, somada à exportação do excedente econômico, ampliava a acumulação de capital dos países europeus, sobretudo da Inglaterra. O modelo de acumulação primitiva envolveu um conjunto de transformações que garantiram as condições históricas necessárias à transição para o capitalismo marcada pela cisão entre força de trabalho e meios de produção (IANNI, 1988).

Moura (2014) postula que, no período de transição do trabalho escravo para o livre, o segmento social dominante via dois problemas que precisavam ser solucionados: a questão da mão de obra e a distribuição das terras. Nesse sentido, ele aponta cinco medidas estabelecidas durante a transição do escravismo para o trabalho livre durante o escravismo tardio15:

15 Moura (2014) divide o escravismo brasileiro em duas fases: o Escravismo pleno que vai de

1. Tarifa Alves Branco (1844): medida protecionista do setor industrial