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Art. 4° A disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção:

I – do direito de acesso à internet a todos;

II – do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos; III – da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso; e

IV – da adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados.

I – DOUTRINA

Promoção como objetivo do Marco Civil. Promoção é o ato de promover que, no sentido do Marco Civil, significa dar execução aos princípios e direitos estabelecidos nos incisos inseridos no artigo. Os incisos do art. 4o não

são numerus clausus, fechados. O Marco Civil, até mesmo por conta de sua redação confusa e equívoca, deve permitir que novos objetivos, que não constaram da redação original, sejam construídos e apresentados nas decisões judiciais. A promoção será pautada pelos incisos e deverão orientar o legislador na formulação de políticas públicas e reinterpretação das leis vigentes. A partir do Marco Civil, algumas leis entrarão em contradição ou serão ampliadas no seu alcance. Por exemplo, o art. 154 da Lei Geral de Telecomunicações que versa sobre o compartilhamento de redes de telecomunicações poderá ser implementado para ampliar o acesso de todos à internet. Por outro lado, práticas e leis que instituam obstáculos e empecilhos à implementação desses princípios deverão ser alteradas especificamente para questões de internet. Uma das leis que mais entram em conflito com o Marco Civil são relacionadas à propriedade intelectual.1

Inciso I

Do Direito de Acesso à internet a todos. A Assembleia Geral da ONU, em 2011, determinou que o direito de acesso à internet é um direito humano fundamental básico, tal como a água, a eletricidade e a saúde.2 A Estônia,3 a Finlândia4 e a França5 já determinaram o direito de acesso à internet como um direito fundamental. O Brasil é o primeiro país da América a seguir o relatório da ONU, o que é um pequeno avanço.

Crítica ao direito atrelado à tecnologia. Já alertei sobre o equívoco de se atrelar um direito a uma tecnologia.6 Ao se atrelar um direito a uma tecnologia, esvazia-se de sentido a axiologia das lutas e combates envolvidos nas causas que formam a exclusão e o não acesso de todos à internet e às redes de informação e comunicação. Os valores, representativos de construções e significados históricos e sociais, não podem ser reduzidos a uma tecnologia-poder de um determinado período. Direito como valor atravessa os tempos e as verdades do conhecimento embutidos em tecnologias. Já pensou num direito atrelado à catapulta? O triunfalismo tecnológico não pode absorver direitos nem a transformação social.7 Pierre Lévy reforça esse pensamento:

“As técnicas não determinam nada. Resultam de longas cadeias intercruzadas de interpretações e requerem, elas mesmas, que sejam interpretadas, conduzidas para novos devires pela subjetividade em atos dos grupos dos indivíduos que tomam posse dela. Mas ao definir em parte o ambiente e as restrições materiais das sociedades, ao contribuir para estruturar as atividades cognitivas dos coletivos que as utilizam, elas condicionam o devir do grande hipertexto. O estado das técnicas influi efetivamente sobre a topologia da megarrede cognitiva, sobre o tipo de operações que nela são executadas, os modos de associação que nela se desdobram, as velocidades de transformação e de circulação das representações que dão ritmo a sua perpétua metamorfose. A situação técnica inclina, pesa, pode mesmo interditar. Mas não dita.”

Caminhar acriticamente na direção de atrelar direitos à tecnologia é alcançar lugares vazios e inóspitos à cidadania e a tudo que deveria lutar o Marco Civil da internet.

Inciso II

Do acesso à informação e ao conhecimento. A promoção das leis de internet no Brasil deverá promover o acesso à informação e ao conhecimento. Buckland definiu informação em 3 partes: informação como coisa, informação como processo e informação como conhecimento.8 Assim, para Buckland, a informação, apesar de representar um processo de conhecimento, diferencia-se, pois não há sentidos e significados a ela. Já o “conhecimento, crença e opinião são pessoais, subjetivas e conceituais”.9 O conhecimento é o sentido e o significado que cada pessoa atribui a uma informação como coisa.

Essas definições são importantes para entender o significado da promoção do acesso à informação e ao conhecimento. Na internet, os cidadãos devem ter acesso à massa de dados que são produzidos por e sobre ele, bem como aqueles que lhes fazem sentido e os autodeterminam como seres humanos. E com o Marco Civil, não é necessária a regulamentação desses mandamentos, mesmo que seja relevante uma lei de proteção de dados pessoais10 nos moldes do que foi desenvolvido na União Europeia.11

As informações e dados produzidos pelas e nas redes de informação e comunicação sobre os usuários devem respeitar o sentido desse inciso e o que determina o art. 43 do Código de Defesa do Consumidor para serem “os dados objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos”.12 Assim, quanto ao acesso às informações, considera-se “de caráter público todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações”.13

Ter acesso à informação e ao conhecimento está atrelado também à privacidade do usuário de internet. Assim, dentro do Marco Civil, cabe a discussão relativa à guarda de registros de conexão (logs), que será realizada na análise do art. 15, sobre como esses dados podem ser acessados. No caso desse art. 15, há uma agravante. Pelo que está exposto no texto normativo, os dados pessoais, sensíveis e não sensíveis, podem ser acessados a qualquer tempo e sem prazo definido, por autoridades policiais e pelo Ministério Público, tornando-se uma ameaça bem real aos direitos fundamentais dos cidadãos usuários de internet.

Promoção à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos? A redação do Marco Civil peca em muitos momentos pela total falta de critério técnico, jurídico, histórico e social. Qual é o sentido de promover a participação da vida cultural com disciplina na internet? É a vida cultural na internet? Promover a vida cultural seria ter acesso a bens culturais? A vida cultural seria ter acesso aos bens protegidos por propriedade intelectual? E em relação à condução dos assuntos públicos, é o mesmo que democracia? Condução dos assuntos públicos é transparência das informações definidas pela Lei no 12.527/2013? Não há como compreender o sentido e o alcance que

o legislador quis atribuir a esses mandamentos. Aliás, não servem nem de parâmetros coerentes para magistrados julgarem ações.

Inciso III

Da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso. A questão da inovação, levantada pelo Marco Civil, é complexa e perpassa a problematização do Estado como estimulador de políticas públicas. Algumas políticas, nesse sentido, já vêm sendo desenvolvidas.14Mas elas necessariamente devem encarar as questões educacionais, culturais, históricas e sociais que acabam por gerar a exclusão social e digital.15

Inciso IV

Adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados. O Marco Civil repete a Lei de Processo Eletrônico (Lei no 11.419/2006) que, em seu art. 14, impõe que os “sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário

deverão usar, preferencialmente, programas com código aberto, acessíveis ininterruptamente por meio da rede mundial de computadores, priorizando-se a sua padronização”. Contudo, na prática, isso não tem ocorrido. A adoção de sistemas fechados, tal como o PDF, é amplamente difundida. Nesse caso do Poder Judiciário, o PDF facilita a interoperabilidade e acessibilidade, mas com certeza possui inúmeros problemas relacionados à segurança de informação e desenvolvimento de inovação, tal como determina o inciso III do art. 15 da Lei nº 12.965/2014.

Mesmo amplamente divulgados e estudados mundialmente, os padrões abertos requerem uma série de mudanças estruturais, principalmente nos órgãos públicos, para construção de sistemas que possam ser acessíveis e interoperáveis. Contudo, inúmeros problemas e enfrentamentos são verificados nas escolhas de padrão aberto que vão desde a contratação de desenvolvedores e empresas de desenvolvimento de software até o interesse das grandes multinacionais de software padrão fechado. Só recentemente o Supremo Tribunal Federal conseguiu decidir favoravelmente sobre a decisão do governo do Rio Grande do Sul de adotar softwares livres em lei. Diante desses problemas e situações complexas, o Marco Civil não acrescentou muito nem implantou inovações legislativas que poderiam abreviar essas demoras judiciais.

II – JURISPRUDÊNCIA

“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA PARA EXCLUSÃO DE RECLAMAÇÕES REFERENTES À SOCIEDADE EMPRESÁRIA – NÃO CABIMENTO – PROVEDOR DE PESQUISA – RESTRIÇÃO DOS RESULTADOS – IMPOSSIBILIDADE – CONTEÚDO PÚBLICO – DIREITO À INFORMAÇÃO – PRECEDENTES – LEI No 12.965/2014 (MARCO CIVIL DA INTERNET) – DECISÃO MANTIDA. – [...]

7. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1o, da CF/88, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje,

importante veículo de comunicação social de massa.”(REsp 1316921/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26-6-2012, DJe 29-6-2012). RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-PR – AI: 12357338 PR 1235733-8 (Acórdão), Relator: Gamaliel Seme Scaff, Data de Julgamento: 15-10-2014, 11a Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 1455 14-11-2014).

1Ver ABRÃO, Eliane. Direitos de autor e direitos conexos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Migalhas, 2014.

2Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/17session/A.HRC.17.27_en.pdf>. Acesso em: 7 maio 2014. 3Disponível em: <http://www.kapvert.com/noticias.php?noticia=1643>. Acesso em: 19 jul. 2010.

4Disponível em: <http://www.dw-world.de/dw/article/0,,5772062,00.html>. Acesso em: 19 jul. 2010.

5Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u579424.shtml>. Acesso em: 19 jul. 2010. 6GONÇALVES, Victor Hugo Pereira. Inclusão digital como direito fundamental. São Paulo: Delfos, 2013, p. 26-28. 7Ver a crítica sobre o triunfalismo das redes em MUSSO, Pierre. A filosofia das redes. Op. cit.

81. Informação como processo existe quando alguém é informado sobre aquilo que eles sabem que está sendo mudado. Nesse

sentido, informação é o ato de informar, comunicar o conhecimento ou novidades de algum fato ou ocorrência; a ação de contar ou fato de estar contando algo. 2. Informação como conhecimento. Informação é usada para simbolizar a percepção da informação como processo: o conhecimento comunicado referente a algum fato particular, sujeito ou evento; que algo é informado ou contado; inteligência, notícias. A noção de informação, desse modo, reduz a incerteza e pode ser vista como um caso especial de “informação como conhecimento”. Algumas vezes aumenta incertezas. 3. Informação como coisa. O termo “informação” é também utilizado atributivamente para objetos, tais como dados e documentos, que são referidos como “informação” porque eles estão relacionados a ser informados, tal como ter a qualidade de proporcionar conhecimento informação de comunicação; instrutivo. Tradução livre: “1. Information-as-process: When someone is informed, what they know is changed. In this sense ‘information’ is ‘The act of informing...; communication of the knowledge or ‘news’ of some fact or occurrence; the action of telling or fact of being told of something.’ (Oxford English Dictionary, 1989, vol. 7, p. 944). 2. Information-as-knowledge: ‘Information’ is also used to denote that which is perceived in ‘information-as-process’: the ‘knowledge communicated concerning some particular fact, subject, or event; that of which one is apprised or told; intelligence, news.’ (Oxford English Dictionary, 1989, vol. 7, p. 944). The notion of information as that which reduces uncertainty could be viewed as a special case of ‘information-as-knowledge’. Sometimes information increases uncertainty. 3. Information-as-thing: The term ‘information’ is also used attributively for objects, such as data and documents, that are referred to as ‘information’ because they are regarded as being informative, as ‘having the quality of imparting knowledge or communicating information; instructive.’ (Oxford English Dictionary, 1989, vol. 7, p. 946).” Disponível em: <http://people.ischool.berkeley.edu/~buckland/thing.html>. Acesso em: 9 maio. 2014.

9Idem.

10O Anteprojeto que está sendo discutido atualmente pelo governo brasileiro está disponível em:

<http://www.acessoainformacao.gov.br/acessoainformacaogov/publicacoes/anteprojeto-lei-protecao-dados-pessoais.pdf>. Acesso em: 9 maio 2014.

11Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELE-X:31995L0046:en:HTML>. Acesso em: 9 maio

2014.

12“Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e

dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. § 1o Os cadastros e dados de

consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos. § 2o A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo

deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele. § 3o O consumidor, sempre que encontrar

inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas. § 4o Os bancos de dados e cadastros relativos a

consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público. § 5o Consumada a

prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.”

13Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso em: 9 maio 2014.

14Existem os programas fomentados pelo FINEP (<www.finep.org.br>) e o Programa de Exportação de Softwares

(<http://www.softex.br/investimentos/prosoft/prosoft-expor-tacao/>).

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