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3. DESSOTERRANDO-ME: ARQUEOLOGIA DO MEU SER TÃO, NO

3.1. Indícios em mim

Sou natalense e potiguar. Homem das dunas móveis e fixas, da mata atlântica, do oceano atlântico, do litoral. Criado no bairro do Morro Branco, entre os anos de 1967 a 1982. Fui criança criada numa família de poucas posses materiais, mas da presença forte dos pais, da avó materna.

Quando criança brinquei na rua, sem viver em situação de rua. Construía meus brinquedos, sempre em cooperação com os amigos do Bairro. Brincava de tudo que a nossa inventividade individual e coletiva gerava.

Nessa primeira fase da minha vida, construíamos alguns brinquedos. Fazíamos a tábua de morro, a roladeira, o carro de lata, o carro de rolimã, dentre outros. E tínhamos várias brincadeiras, sempre de combinações em que o coletivo se misturava com a individualidade.

Brincar era um misto de vamos fazer assim, mas pensando como fazer assim e vivendo o que combinávamos fazer assim. Sempre havia uma conversa para se chegar a definição de qual seria a brincadeira do momento. Desde a definição do mirim22, em que o dono da bola era o próprio Deus. Sem ele em um time, não tinha

jogo. Conclusão, ele sempre tinha time, mesmo que fosse um perna de pau23.

Eu sempre fui uma criança das atividades coletivas. Para onde eu ia, sempre estava com um grupo de amigos. Essa marca da minha infância me forjou como uma pessoa que gosta de gente e de conviver com gente.

22 Trata-se de um jogo de futebol em que as traves eram pequenas e que não tinha goleiro no time. A bola poderia ser qualquer coisa que pudesse ser movida. Desde uma bola do tipo canarinho, dente

de leite, ou mesmo uma canarinho dentro de uma dente de leite. Mas também uma tampa de garrafa

ou uma bola de meia.

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Hoje, acredito que a cooperação, dentro de um coletivo, é um lugar de potencial criativo significativo. Como exemplo dessa criatividade cooperativa, nosso grupo de amigos era muito inventivo.

Uma brincadeira que nunca me esqueço, que inventamos juntos, e que até hoje não sai das minhas memórias mais vivas foi o tica-tica no alto de uma árvore, a mangueira. Decidimos juntos que todos deveríamos estar no alto da mangueira, o tica deveria sair para tocar em qualquer um de nós, de galho em galho. Se alguém caísse da árvore, automaticamente já era o tica. E assim o tempo de uma manhã inteira passava, mas esse temposempre era pouco.

Nesse tipo de brincadeira, talvez eu tenha aprendido, pela primeira vez, os rudimentos da política. Pois, toda brincadeira era combinada à exaustão. Só depois era que ela começava. E na brincadeira supracitada, uma das combinações que mais levou tempo para ser fechada, era a que definia que quem caísse da árvore, durante a movimentação entre os galhos da árvore, seria automaticamente o tica. Além de ser submetido a uma profunda gozação de todos, a não ser que o colega quebrasse um braço, ou tivesse uma lesão séria. Mas, mesmo assim, até nós constatarmos que a lesão era séria, ele sofria gozação.

Mas eu também vivi minha infância no interior do RN, mas apenas por sessenta dias, a cada ano. Precisamente entre Macau e um distrito do Município de Pendências, chamado de Porto do Carão. Nesse lugar querido, eu também vivia com um coletivo de amigos e brincávamos sempre juntos, reproduzindo as atividades do campo e aproveitando os elementos daquela paisagem.

Enquanto em Natal nós jogamos biloca com bola de gude, no Porto do Carão era com seixos. Íamos deixar os bezerros no roçado, montados em cavalos feitos de talo de carnaúba ou de vara de cerca. Sempre juntos, com os mesmos amigos, eram sessenta dias de intensa criatividade, cooperação, inventividade.

Semelhante aos amigos de Natal, também éramos adeptos da conversa para definir, ali na hora, qual brincadeira iríamos realizar ou criar. A mais legal de todas, que ainda me lembro como se fosse hoje, era atravessar o Rio Açu, no período da enchente, usando um pedaço do caule de uma bananeira, para não afundar durante a travessia caudalosa.

Hoje, com meus cinquenta e dois anos, compreendo que essa fase da minha vida ajudou a me construir como um ser humano do coletivo, do diálogo, daqueles que gostam da convivência com os outros. Conversando com os outros, sem muita dificuldade de relacionamento, aberto à cooperação e à criação. Até hoje aprendo a escutar as pessoas, tentando compreender o que elas estão dizendo ao falar.

Nessa época, sempre fui das atividades coletivas, seja nas brincadeiras de rua ou na prática do esporte. Era do mirim, do futebol de campo, do basquetebol, do handebol, das brincadeiras de garrafão, bandeirinha, batalha naval, tô no poço, pegar

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pedras, jogo de dama, tica-tica, carrinho de rolimã, tábua de morro, jogos com bola de gude, trinta e um alerta.

Todas essas experiências me apontam hoje para uma vivência rudimentar de uma convivência colegiada e de uma prática da política todas as vezes que tínhamos que tomar decisões sobre as brincadeiras dessa fase infanto-juvenil, da minha vida. Quando for falar da influência da minha família em mim, voltarei a tratar dessa questão.