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Independência política e dependência jurídica: estratégias de autonomização do ordenamento nacional no Império

BREVÍSSIMAS”: ACENOS FINAIS

3 UM INSTITUTO “EM PROVEITO GERAL DO ESTADO E DA SCIENCIA DA JURISPRUDENCIA” E A CRIAÇÃO DA SUA REVISTA

3.1.1 Independência política e dependência jurídica: estratégias de autonomização do ordenamento nacional no Império

Se para os juristas é difícil se desvencilhar da crença de que os processos históricos se desenrolam por uma tradição agregativa, em que as soluções mais antigas são aperfeiçoadas e atualizadas por novos arranjos em uma linha de continuidade, para os historiadores não é nenhuma novidade o cuidado metodológico de, sem superestimar as grandes rupturas, desconfiar dos continuísmos, percebendo esses movimentos como duas faces da dinâmica de transformação política e social no tempo. Para a história do direito – em especial, aqui, do

ordenamento jurídico – após a Independência, esse binômio se relaciona de maneira muito

particular.

O festejado grito do Ipiranga – com toda a carga de fantasia que a representação de Pedro Américo contém – de emancipação da Colônia em relação à Metrópole não teve ressonância suficiente para romper laços umbilicais que ainda conectavam as duas pontas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Não à toa tornou-se clássica na historiografia sobre o Império a leitura de Raymundo Faoro ao constatar que na “continuidade da burocracia de D. João, nacionalizada nos propósitos, mas não nos sentimentos, irá repousar a estrutura política do país” 293. Não menos atrelados ao antigo monarca podíamos ter restado: seu filho era o Imperador, com as suas leis, da sua ex-colônia. Trocou-se a Coroa da cabeça de um para o outro e entregou-se a D. Pedro I a herança de uma pessoa viva: a estrutura burocrática, o padrão de formação das elites, o aparato jurídico.

Já se introduziu, aqui, a ideia de que o processo de Independência do Brasil não se iniciou em um evento radical no 7 de setembro de 1822; é igualmente verdadeiro que se prolonga para muito além desta data, o que nos conduz a rejeitar narrativas episódicas e preferir

293 Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo,

a perspectiva de uma emancipação gradual. Não resultou de uma convenção, de uma declaração formal, de conteúdo jurídico preciso e categórico. Tampouco decorreu de um instrumento único, de finalidade prévia e organizado em fórmulas peremptórias.

Antes, garantiu-se a continuidade muito mais por um empirismo adequado pelas circunstâncias do momento do que por qualquer ato definitivo. Foi fruto de uma série de decisões fragmentárias, contraditórias, negociações, improvisos e contestações que, considerados em seu conjunto, permitiram que se constituísse a Nova Monarquia no hemisfério ocidental “como Nação soberana entre as demais, num quase miraculoso amálgama de velhos e novos princípios jurídicos sabiamente condensados e postos em prática naqueles dias de incertezas e vacilações” 294.

Essa peculiaridade do processo de Independência brasileiro muito se deve à presença da Corte no Rio de Janeiro desde 1808. Mesmo que a cidade já tivesse sido transformada em capital do Estado do Brasil (quando este ainda se tratava de uma Província do Reino de Portugal) e elevada à condição de Vice-Reino desde a segunda metade do século XVIII, contando, por isso, com uma administração relativamente aparelhada, foi a instalação da Corte que transformou essa estrutura em aparelho de Estado295.

A transplantação de todo um aparato burocrático, trazido de Lisboa ou formado aqui, era condição necessária para que o Governo da metrópole se projetasse sobre o novo território, o que foi favorecido pelo reconhecimento do estatuto de Reino Unido. Desse modo, entre o direito colonial propriamente dito e o direito nacional novo, inseriu-se esse período de transição desde a vinda da família real portuguesa, que facilitou a passagem legitimista e monárquica quando da Independência296

No que se refere ao aparato jurídico-institucional, o Estado que se constituiu em 1822 continuaria regendo-se pelo arcabouço normativo português, cuja legislação foi declarada

294 Cf. CÂMARA, 1966, p. 3.

295 Cf. Para um estudo sobre a racionalização estatal e o sistema de justiça no Brasil colonial, cf. WEHLING, Arno;

WEHLING, Maria José Cavalleiro de Macedo. Direito e justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1751-1808. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

296 Exemplo das implicações dessa continuidade nos arranjos do novo Estado é citado por José Reinaldo de Lima

Lopes em texto dedicado à difusão das ideias iluministas e jusnaturalistas entre os juristas da primeira metade do século XIX. O historiador do direito recorda que foi Clemente Pereira, magistrado do regime colonial, já quando a Colônia se transformara em Reino Unido, o responsável por promover, na Câmara da cidade do Rio de Janeiro a aclamação de D. Pedro I. Acrescenta aqui que durante os seis primeiros anos de vida nacional o sistema judicial foi todo herdado do regime colonial ou do Reino Unido, sendo que os tribunais superiores serão reformados somente em 1828, quando então darão lugar ao Supremo Tribunal de Justiça (cujos ministros, evidentemente, foram tirados em sua maioria da mesma magistratura que compunha os tribunais apenas extintos). Cf. LIMA LOPES, José Reinaldo de. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, Editora UNIJUÍ, FAPESP, 2003. p. 200-211.

direito vigente enquanto não se organizassem novos Códigos ou fossem editadas alterações, conforme o disposto na Lei de 20 de outubro de 1823297. Em outros termos, isso implicava que o novo Estado – formado justamente por um ato de ruptura com a antiga metrópole – escolhia permanecer-se intimamente conectado à pátria-mãe pela cipoada298 das Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal.

Isso significou também – e não será um detalhe secundário na análise do conteúdo e discursos veiculados na Revista do IAB no próximo capítulo – continuidade em relação às tradições romanistas, que eram, ainda, com todas as limitações introduzidas durante a era pombalina pela Lei da Boa Razão, direito vigente e parte do ordenamento jurídico de direito comum em Portugal299. Se nas discussões sobre o ensino jurídico a ser implantado nas

297 O texto normativo possuía a seguinte redação: “Declara em vigor a legislação pela qual se regia o Brazil até 25

de Abril de 1821 e bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D. Pedro, como Regente e Imperador daquella data em diante, e os decretos das Cortes Portuguezas que são especificados (...) Art. 1o As Ordenações, Leis,

Regimentos, Alvarás, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelissima, actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Côrte; e todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de Alcantara, como Regente do Brazil, em quanto Reino, e como Imperador Constitucional delle, desde que se erigiu em Imperio, ficam em inteiro vigor na pare, em que não tiverem sido revogadas, para por ellas se regularem os negocios do interior deste Imperio, emquanto se não organizar um novo Codigo, ou não forem especialmente alteradas. Art. 2o Todos os Decretos publicados pelas Côrtes de Portugal, que vão especificados na Tabella junta,

ficam igualmente valiosos, emquanto não forem expressamente revogados. Paço da Assembléa em 27 de Setembro de 1823.”. Cf. BRASIL, 1823. Cinquenta e dois anos depois, decretos do gênero ainda eram editados no Brasil, o que demonstra como o ordenamento jurídico brasileiro ainda conviveu com a jurisprudência portuguesa e com textos legais transplantados por muito tempo. Exemplo disso é o Decreto n. 2.684 de 23 de outubro de 1875, que deu força de lei em todo o Império a assentos tomados na casa de Suplicação de Lisboa, depois da criação do Rio de Janeiro até à época da Independência, com exceção dos que tenham sido derrogados pela legislação posterior. Cf. BRASIL. Decreto n. 2.684, de 23 de outubro de 1875. Collecção das Leis do Imperio do Brazil. Poder Executivo: Rio de Janeiro. 27 out. 1875.

298 O termo é utilizado propositalmente no seu sentido de “labirinto” e “confusão”, pois a legislação aqui importada

em 1822 já estava condenada em Portugal muito antes disso. Prova é que a Rainha D. Maria I, por Decreto de 31 de Março de 1778, criara uma Junta para examinar Leis Extravagantes e coordenar um novo Código. Cf. MELLO FREIRE, José Paschoal de. Ensaio do Codigo Criminal, a que mande proceder a Rainha fidelissima D. Maria I, Paschoal José de Mello Freire, que a sua a sua Magestade fidelíssima, o Senhor D. João VI, Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, oferece e dedica Miguel Setário, a quem liberalmente o cederão em publica utilidade os dignos herdeiros de seu benemérito Autor. Lisboa: Typographia Maigrense, 1823.

299 Para uma discussão sobre a recepção do direito comum em Portugal, cf. também “A ordem jurídica de Antigo

Regime”, pp. 128- e “Recepção do direito comum” em, pp. 138, em: HESPANHA, António Manuel. O Direito

dos Letrados no Império Português. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. Para além disso, vale destacar que

nas Ordenações Filipinas, texto normativo base do Reino de Portugal à época da Independência, constava um dispositivo esclarecendo como se julgariam os casos que não fossem previstos pelas Ordenações, onde as tradições romanistas, como haviam sido interpretadas pelos juristas medievais, eram reconhecidas como fonte subsidiária nos seguintes termos: “E se o caso, de que se trata em pratica, nào fòr determinado por Lei de nossos Reinos, stylo, ou costume acima dito, ou Leis Imperiaes, ou pelos sagrados Canones, então mandamos que se guardem as Glosas de Accursio, incorporadas nas ditas Leis, quando por commum opinião dos Doutores nào forem reprovadas; e quando pelas ditas Glosas o caso nào fòr determinado, se guarde a opniào de Bartolo, porque sua opinião commumente he mais confome á razào”. Cf. Livro 3, Titulo LXIV em: PORTUGAL. Codigo Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I. Decima-quarta edição segundo a primeira de 1603 e a nona de Coimbra de 1824, addicionada com diversas notas philologicas, historicas e exegeticas, em que se indicão as diferenças entre aquellas edições e a vicentina de 1747 ... desde 1603 ate o prezente. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomatico, 1870. p. 662.

Faculdades de Direito do Império, como veremos na próxima seção, houve algum tipo de contestação ao estudo do direito romano, na arena dos litígios judiciais e dos discursos políticos ele continuava sendo fundamento discursivo e argumento de autoridade para qualquer controvérsia jurídica300.

Em razão disso, o Império do Brasil teve de se debater, em seus primeiros anos, com uma dupla tensão, sintetizada por José Reinaldo de Lima Lopes: o direito do novo Estado (a) nem podia ser exclusivamente nacional, já que não se podia implantar301 um sistema ab ovo, rejeitando-se a prática anterior, colonial e de origem portuguesa; e (b) tampouco podia ser totalmente liberal-constitucional (na forma e conteúdo) e estabelecido por atos de vontade, pois havia de conviver com a ordem tradicional e suportar ainda alguns privilégios, não só pela aristocracia nobiliárquica que conservava títulos e cargos, como pela mentalidade patrimonial da colônia de exploração que sobrevivia302.

A contradição resultante desse quadro, ainda na leitura de Lima Lopes, era inevitável e foi condição partilhada por quase todas as ex-colônias americanas, em contraste com o processo de formação dos Estados Nacionais na Europa: o direito antigo não era somente o de uma autoridade que extinta, mas passava a ser considerado o de uma autoridade estrangeira. Não poderia haver nada mais gravoso à nacionalidade que se pretendia afirmar a partir da separação em relação à antiga metrópole do que incorporar o seu direito. E isso não passava despercebido aos seus juristas, como o aponta Carvalho Moreira, 2o Presidente do IAB, em memória lida no 2o aniversário da associação: “Somos uma família emancipada, que formou suas leis a parte, que tem necessidades suas, e que é ainda forçada a reger-se por leis estranhas. Que em grande parte contradizem as que para nós formamos, e que empecem a marcha de nossa prosperidade”303.

O primeiro grande documento normativo de que foi dotado o Império do Brasil foi a

Constituição Politica de 1824, impregnada, ao mesmo tempo, de ideias e instituições

300 O recurso às tradições romanistas para resolver conflitos como direito vigente não era afronta gravosa à

nacionalidade que se procurava consolidar como o eram o direito régio estrangeiro, em virtude da autoridade que ainda gozavam essas tradições enquanto patrimônio científico de que eram tributários todos os ordenamentos jurídicos do Ocidente. Para uma discussão sobre como essas fontes foram manejadas por juristas no Império em defesa da escravidão ou da liberdade, cf. PENA, 2005, p. 36.

301 Não é novidade, para juristas, o princípio da imanência da ordem jurídica, da continuidade do direito que não

admite vazios, razão pela qual uma nova ordem genérica jamais elimina plenamente a anterior, mas se lhe sobrepõe com revogações específicas, de forma expressa ou implícita. É o chamado jus abhorret vacuum. Cf. VALLADÃO, Haroldo. História do Direito: especialmente do Direito brasileiro. 3a ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos,

1977. p. 108.

302 LIMA LOPES, 2003, p. 200.

303 Cf. CARVALHO MOREIRA, Francisco Ignacio de. Da Revisão geral e codificação das leis civis e do processo

no Brasil. Memoria lida em sessão do Instituto a 7 de setembro de 1845, e oferecida ao mesmo Instituto pelo socio effectivo. RIOAB, v. 1, n. 3, 1862. p. 157.

marcadamente liberais304, e de mecanismos que garantiam a centralidade e extensão do Poder Imperial. Esses eram paradoxos inevitáveis em um documento constitucional outorgado305 que institucionalizou uma monarquia parlamentar mais pelas mãos do Imperador do que do Parlamento. Não era essa a única contradição: a Carta também esbarrava no confronto com a realidade social agrária e o regime escravista ao proclamar idealmente “a inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros” e silenciar sobre a condição dos escravos, que além de principal mão-de-obra, eram parcela significativa da população do Império.

A primeira legislatura ordinária, recomposta após o conturbado processo constituinte, logo percebeu o caráter de urgência de que se revestia a Reforma da Justiça e da Administração, tratando de extinguir, dois anos depois, duas estruturas-chave do sistema de justiça português e que para cá haviam sido transplantadas durante o Período Colonial - o Desembargo do Paço e a Casa de Suplicação -, substituindo-as pela instalação do Supremo Tribunal de Justiça, além de criar os juizados de paz e promover reformas nas câmaras municipais306.

304 Não sem ambiguidades o termo pode ser invocado, ainda mais no contexto brasileiro pós-emancipação, mas

utiliza-se o termo com a mesma opção metodológica de José Reinaldo de Lima Lopes, que toma o vocábulo como sinônimo de constitucionalismo, isto é, da adoção de um texto jurídico-político fundamental que garantisse explicitamente as regras do exercício do poder soberano e incorporasse a ideia de repartição de poderes (ou de exercício limitado da soberania), representação e garantia de direitos individuais (direitos civis). No que concerne às extensões de tais direitos individuais, de representação e participação política, são justamente eles que dividem os liberais e, no caso do Brasil, os separavam dos conservadores. De todo medo, aquele núcleo comum é o sentido que se adota no texto. Cf. LIMA LOPES, 2003, p. 198. Interpretação semelhante se confere em: SLEMIAN, Andréa. Sob o império das leis: Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). 2006. 339f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

305 Não é possível mencionar a Carta constitucional de 1824 sem remeter, ainda que brevemente, aos atropelos de

seu processo constituinte. A Assembleia Constituinte, convocada por D. Pedro em junho de 1822 – o qual, desde o primeiro instante demonstrara-se favorável à constitucionalização do Império e se declarava inclusive partidário de ideias liberais – em novembro de 1823, ficando a cargo do Conselho de Estado a tarefa de criar a Constituição, que acabou outorgada. O oferecimento de um texto constitucional era um modo de suavizar sua imagem de tirano após a dissolução, submetendo-o à aprovação “dos povos” através das câmaras municipais, das quais se esperava obter a ratificação. Não sem significado foi essa opção do Imperador: José Reinaldo da Lima Lopes denuncia que, ao optar pelas câmaras enquanto órgãos responsáveis por ratificar sua proposta de constituição, D. Pedro as confirmava como instância política e de representação e ao mesmo tempo negava à assembleia papel fundamental no Estado. Escolher refazer o pacto político com “corpos intermediários” vindos da tradição pré-liberal implicava em negar a soberania popular de uma assembleia, que se imaginava investida do poder constituinte. A ambiguidade do gesto era explícita: submetia uma constituição supostamente liberal e, portanto, de ruptura em relação ao sistema anterior – a órgãos de legitimação do poder antigo. Essas ambivalências e contradições, evidentemente, acompanharão todo o processo de consolidação do Estado Imperial e de nacionalização do direito ao longo da primeira metade do século XIX, à medida que o velho e o novo eram integrados em uma cultura e instituições frequentemente incompatíveis. Cf. LIMA LOPES, op. cit., p. 195.

306 Cf. BRASIL. Lei de 18 de setembro de 1828. Crêa o Supremo Tribunal de Justiça e declara suas attribuições.

Collecção das Leis do Imperio do Brazil. Poder Executivo: Rio de Janeiro, 9 out. 1828; BRASIL. Lei de 1 de

outubro de 1828. Dá nova fórma ás Camaras Municipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz. Collecção das Leis do Imperio do Brazil. Poder Executivo: Rio de Janeiro, 20 out. 1828. É iniciativa que, para Lima Lopes, revela a clareza, para esse primeiro Corpo Legislativo, do quanto valia o direito para a construção da nova ordem. Um gesto de plena compatibilidade com a moderna ideia de direito sobre a lei como instrumento de poder, mas que chega a beirar o excesso de modernidade em uma sociedade em que o Estado não chegava em toda parte. Cf. LIMA LOPES, 2003, p. 208.

Duas revisões constitucionais sofreu o texto, em 1834 com o Ato Adicional e em 1840 com a Lei de Interpretação deste ato (ambas no período regencial), de sentido político reverso, mas equivalente. A primeira tratou de gerar maior autonomia regional, distribuindo atribuições aos governos provinciais, e extinguir o Conselho de Estado, outro importante braço do poder central; a segunda, seguida pelo restabelecimento do Conselho de Estado, diminui aquela tendência, restaurando a centralização político-administrativa como reflexo do regresso conservador. Sem adentrar no mérito das reformas introduzidas por nenhum desses dispositivos – o que fugiria ao intuito do presente capítulo – o que se quer assinalar é que a Constituição e as emendas que lhe sucederam tiveram apenas o escopo de organizar e consolidar a estrutura política, restando pendentes, ainda, a renovação de muitas outras dimensões do ordenamento jurídico.

É certo que a necessidade de adotar medidas para nacionalizar o direito pátrio já fora predita pela própria Constituição de 1824 quando determinara a opção por um instrumento reformista e voluntarista por excelência, também escolhido pelas nações europeias contemporâneas para empreender a modernização do direito através de impulso estatal: a codificação. Conforme a previsão constitucional, que se lia no art. 179, XVIII, urgia-se a criação de um Código Civil e um Código Criminal, “fundados em sólidas bases da Justiça e Equidade”307. O dispositivo acentuava o caráter impositivo e vertical da codificação à medida que inseria esse instrumento no horizonte de fontes do Estado brasileiro sem que tivesse sido precedido de amplo debate sobre sua conveniência e necessidade, o que na Europa já ocorria desde o século XVIII e mesmo assim não contava com a unanimidade dos juristas, como já introduzido no primeiro capítulo.

De todo modo, essa disposição constitucional foi parcialmente cumprida, fazendo com que o quadro de desordem normativa sofresse alterações significativas, mas não renovação completa: o Império conheceria Códigos Criminal, de Processo e de Comércio, mas não o desejado Código Civil (que, ao revés, fora a via inaugural da Nação Francesa, pioneira na implementação de uma codificação em sentido pleno). Evidentemente que legislações esparsas, nesta matéria, foram editadas durante o período, mas se faz referência, aqui, a um documento que organizasse e refundasse o inteiro ramo do direito.

A promulgação do Código Criminal não tardou a acontecer308: o segundo arcabouço

307 Cf. BRASIL. Constituição (1824). Constituição Politica do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro, 25 de março de

1824.

308 No que se refere à importante discussão sobre as circunstâncias que justificaram a priorização da disciplina

penal, compartilha-se a leitura de Rafael Mafei Queiroz, que, partindo da análise dos debates parlamentares que