• Nenhum resultado encontrado

4 “MISCELLANEA” POLÍTICO-JURÍDICA: ANÁLISE DOS DEBATES DOUTRINÁRIOS E POSICIONAMENTOS DO IAB ATRAVÉS DAS PÁGINAS

4.1 OS HIATOS E RENASCERES DA EDIÇÃO: TRÊS FASES EDITORIAIS DA RIOAB

Evidenciar nuances e reconfigurações no perfil da Revista é meio de demonstrar que raramente uma publicação periódica se apresenta de modo homogêneo no tempo; ao revés: seu caráter seriado insere novos tons à face de continuidade que a um primeiro olhar o objeto deixa transparecer. Mudanças sutis na forma de apresentação dos conteúdos, na organização interna das seções e inclusive nos critérios de seleção do material a ser publicado permitem dividir a análise do conjunto documental em blocos distintos que conferem novos significados ao todo e às partes, sem que se tratem de fronteiras inexpugnáveis. A atenção à tão enfatizada materialidade e historicidade de todos os elementos dos impressos fez com que cada um deles adquirissem sentidos específicos que, em suas repetições e novidades, admitem o agrupamento dos fascículos, no recorte selecionado, em fases distintas.

Tratando-se de uma Revista que não se encerrou no século XIX, menos ainda com o marco interruptivo do recorte deste trabalho (tendo sido retomada cinco após o último volume analisado nesta pesquisa, em 1893), é oportuno recordar que a análise de conteúdo aqui proposta está circunscrita aos anos de 1862 a 1888 não por mera escolha aleatória da pesquisadora para tornar viável a pesquisa. Guarda relação muito maior com a data historicamente convencionada como a queda definitiva do regime monárquico, por compreendê-la como um produto visivelmente vinculado à Instituição que a concebera e que permite dar especial ênfase ao vínculo que ela mantinha com o Governo Imperial. A reconfiguração pela qual o periódico e próprio IAB passaram após a proclamação da República poderiam dar azo a todo um inteiro e novo trabalho, não sendo o foco da presente pesquisa. O que importa assinalar, por ora, quanto ao recorte escolhido, é que a Revista não foi publicada de forma homogênea e constante durante todo o arco temporal selecionado.

Durante esse período, entre hiatos na publicação, que a suspenderam por um, dois ou até nove anos, e retomadas com novo fôlego, em contextos muito diversos, a Revista é

interrompida e reaparece, sob nova direção, com novo programa editorial, ou simplesmente reorganizada em sua estrutura e padrão estético, mudanças que já ensejam novas possibilidades de interpretação de seus conteúdos. Ao destacar esses pontos de aproximação e distanciamento, procura-se refletir sobre o inteiro recorte e não apenas sobre cada fase isoladamente: sob a dupla perspectiva diacrônica e sincrônica 508, a parte é reavaliada em face do conjunto, e o todo lido sob o confronto com cada fase.

No somatório desses vinte e seis anos, a Revista foi palco de exibições diversas de seus sócios ou das discussões sobre os temas a que o Instituto era chamado a se manifestar. Todavia, essas fases do periódico não podem ser entendidas como meros reflexos de fases ou mudanças na Instituição mesma, mas como momentos autônomos da própria publicação, que podem – e devem – ser situados na História do IAB, mas não podem só por ela serem explicados. Isso porque muitas vezes à mudança de Presidência ou política predominante na condução da associação não se seguiram imediatas mudanças na Revista; ou renovações na comissão editorial eram votadas permanecendo inalterada a direção do Instituto509.

As escolhas que presidiram a iniciativa editorial às vezes são, sim, o resultado de mudanças na direção da associação, mas outras dizem respeito somente a novas políticas da redação para renovar a publicação mesma, que vem compreendida em sua integralidade como objeto autônomo. Nessa possibilidade de leitura oferecida pela autora – já que a repartição não está expressamente registrada e declarada no periódico, mas facilita, a meu sentir, a compreensão sistemática do conjunto – a fase inicial da Revista coincide com os primeiros três volumes publicados no período de 1862 e 1865, dentro do qual se verifica um hiato de um ano entre o segundo tomo (de 1863) e o último. Após novo intervalo, a Revista volta a ser publicada em 1867 e reaparece totalmente reestruturada, em um molde que permanece praticamente constante até 1871. De 1881 (quando foi publicado o tomo correspondente ao período de 1871 a 1880) até o final do recorte estabelecido para a pesquisa, a Revista aparece sob nova designação, já sofrendo os impactos que as mudanças no Estatuto promovidas em 1880 introduziram na publicação. Em um esquema sinóptico:

508 A dupla perspectiva é leitura oferecida por Tânia Regina de Luca, no seu já citado trabalho monográfico sobre

a Revista do Brasil, para pensar, sob a primeira vertente, as diferentes fases da Revista articuladas entre si; e sob a segunda, refletir cada fase da Revista sincronizada com o seu próprio tempo. Cf. LUCA, 2011, p. 7.

509 No recorte temporal selecionado, há registros, em atas das sessões do Instituto, de oito eleições (1861, 1862,

1863, 1867, 1869, 1871, 1880 e 1882) para a comissão editorial, com significativas alterações de seus membros; enquanto a Presidência do Instituto, no mesmo período, mudou só três vezes (Agostinho Marques Perdigão Malheiros; José Thomaz Nabuco de Araujo e Joaquim Saldanha Marinho).

Quadro 1 – Fases da Revista (1862-1888)

Fase 1 Fase 2 Fase 3

1862 – 4 números 1863 – 4 números 1865 – 3 números 1867 – 2 números 1868 – 2 números 1870 – 1 número 1871 – 1 número 1871 a 1880 – 1 número 1881 e 1882 – 1 número 1883 – 1 número 1887 – 1 número 1888 – 1 número

Fonte: produção da própria autora, 2018.

Essas idas e vindas já haviam servido de aceno, no capítulo anterior, para antever que a anunciada periodicidade trimestral não foi a regra mais religiosamente obedecida, apesar da pretensão inicial de que a Revista fosse publicada a cada três meses. Em todo recomeço, entretanto, esta promessa era renovada, seja para atender a fins mercadológicos, seja para contribuir para melhorar a reputação da Instituição, como se verá a seguir. Sob novas roupagens e com diferentes recursos para atingir o público-leitor, o periódico se distingue, nesses três momentos por (a) aspectos visuais – capa, inserção de divisa no fronte, diagramação; (b) materiais – tipografia, número de páginas por volume; (c) estruturais – redatores, colaboradores, designação das seções em que se dividia, ordem em que apareciam e o espaço que era conferido a cada uma delas; (d) conteúdisticos: principais temas tratados e tipos de documentos inseridos. As diferenças, portanto, são da face interna e externa de cada volume.

É importante pontuar, também, como esses aspectos estão inter-relacionados. Afinal, a forma como o conteúdo vem estruturado fala muito sobre ele mesmo e sobre a importância a ele atribuída: uma revista dividida em seções é atravessada de hierarquias. Apresentar determinados documentos no início ou no fim é uma escolha repleta de significado, assim como o é consagrar-lhe maior ou menor fatia no total de páginas do volume. Questionar o que está sendo privilegiado e o que permaneceu esquecido, “cuál es el valor que organiza el resto de

los valores”510 são perguntas obrigatórias para um periódico e que as revistas respondem, através de sua geografia e a topografia de seus tópicos, como “uma vía regia hacia su

imaginario cultural” 511. Para uma primeira abordagem panorâmica comparativa entre as três fases, é oportuno confrontar as três capas que descerram os fascículos inaugurais:

510 Cf. SARLO, 1992, p. 12. 511 Id.

Figuras 3, 4 e 5 – Capa do fascículo inaugural da primeira, segunda e terceira fase

Fonte: RIOAB, v. 1, n. 1, 1862; RIOAB, v. 4, n. 1, 1867; RIOAB, v. 8, n. 1, 1871-1880.

A mudança de tipografia gera um impacto visual externo pela diferença da fonte do impresso e do tipo de papel da primeira em relação às duas últimas, mas essa não é mera transformação estética: responde a uma escolha editorial precisa, como se verá adiante, que marcou a busca por reduzir os preços da impressão e torná-la mais adaptada às pretensões de lucro do Instituto com a venda de exemplares. Servindo a esse mesmo propósito pode ser compreendida a inclusão do “anúncio”, abaixo do título, das seções em que a Revista estaria dividida, como um chamariz para potenciais leitores.

Além disso, a inserção da divisa “legum scribere jussit amor”, embaixo da assinatura da “respectiva comissão”, mostra que esse era um recado dela marcando sua responsabilidade e protagonismo na reconfiguração da iniciativa editorial. Indicar a existência de uma comissão de redação ativa e presente é um sinal de organização e da existência de uma política editorial bastante definida. Por fim, vale destacar que o título da Revista sofre alteração na última fase, com a retirada do termo “Ordem” em razão das modificações estatutárias aprovadas pouco antes da publicação daquele número e que acabaram respingando no próprio periódico.

O redelineamento da capa, a partir da segunda fase mais detalhada quanto ao conteúdo do periódico, pode ser lido como um prenúncio do incremento de conteúdo que a Revista passaria a abrigar: o número médio de páginas por volume quase dobrou da primeira fase em relação à segunda. Na terceira, assim como o frontispício, o tamanho dos tomos anuais permaneceu constante, sendo os aspectos que a diferenciam em relação às demais, novamente,

muito mais o resultado da reorganização interna porque passou o Instituto do que o reflexo de mudanças estruturais do próprio periódico como as verificadas a partir de 1867. Uma comparação, em números, da extensão média de cada volume pode ser conferida a seguir: Tabela 3 – Número de páginas por volume e por fase

Volume Número de páginas Média por volume

Fase 1 1862 1863 1865 231p. 189p. 67p. 162p. Fase 2 1867 1868 1870 1871 423p. 414p. 248p. 268p. 338p. Fase 3 1871-1880 1881 e 1882 1883 1887 1888 371p. 451p. 312p. 362p. 288p. 356p.

Fonte: produção da própria autora, 2018.

Esses notórios acréscimos no conjunto, por sua vez, são resultado da reestruturação de cada seção em particular, que passaram a ocupar novo espaço dentro do periódico, sob nova designação e acolhendo outros tipos de documentos. Como resultado dessa paradigmática metamorfose registrada em 1867, a Revista deixa de lado as nomenclaturas que adotava até então e que lhe eram muito particulares enquanto um periódico institucional e passa a se adequar à clássica tripartição entre “doutrina, jurisprudência e legislação” que marcou boa parte dos periódicos jurídicos do século XIX, mesmo em culturas jurídicas estrangeiras, como discutido no primeiro capítulo. Em que pese materiais do gênero já fossem publicados pela

Revista desde a sua fundação, é a partir da segunda fase que passam a ser nomeados como tal,

em uma demonstração de que a comissão da revista buscava adaptá-la a suas congêneres coetâneas e reforçar seu caráter científico no âmbito do direito.

Quadro 2 – Seções em que cada fase era dividida

Fase 1 Fase 2 Fase 3

Seções Parte Primeira:

Decisões do Instituto sobre questões de Direito e de Jurisprudência. Primeira Parte: Doutrina. Primeira Parte: Doutrina. Parte Segunda:

Atas das sessões ou conferências.

Segunda Parte: Legislação.

Segunda Parte: Legislação. Parte Terceira:

As decisões dos Poderes do Estado, contendo interpretação jurisprudencial. Terceira Parte: Jurisprudência. Terceira Parte: Jurisprudência. Parte quarta: Miscellanea. Quarta Parte: Actas do Instituto. Quarta Parte: Actas do Instituto. Parte Geral/Miscellanea/ Parte Secundaria. Boletim. Fonte: produção da própria autora, 2018.

Àquela clássica tripartição compreensivelmente era acrescentada uma seção dedicada à divulgação das atas das seções do Instituto, porção fundamental em uma Revista de vinculação institucional e que servia, também, como instrumento de divulgação dos atos do Instituto e de composição da sua memória. Por sua vez, a “Miscellanea”, seção que foi renomeada nas três fases, às vezes mais de uma vez em cada uma delas, mas mantida em praticamente todos os fascículos, não possuía um eixo temático tão definido. Nela apareceram desde discursos pronunciados em sessões comemorativas (apêndice B), documentos produzidos por outras instituições, até crônicas e capítulos de obras selecionadas (apêndice E). A depender da fase o que se percebe, entretanto, é maior ênfase em textos produzidos pelos próprios associados e documentos totalmente alheios à Instituição, mas de relevância para a doutrina jurídica.

Importa, por ora, consignar que, para além de constituir um veículo de expressão de uma société savante512, a Revista é o retrato de práticas científicas e padrões editoriais de uma

época: por que neste momento era tão importante ter uma seção de legislação e de jurisprudência, que hoje praticamente desapareceram das revistas jurídicas? Para não mencionar os impactos que a veiculação eletrônica dos atos oficiais acarretou nas publicações periódicas a partir do final do século XX, e que dizem muito sobre o desaparecimento dessas seções, basta recordar que, naquele momento, o mercado de bens culturais impressos ainda era muito incipiente e o mesmo se aplicava para os meios de publicação dos documentos produzidos pelo Estado. O próprio Diário Official do Imperio fora criado no mesmo ano da

512 Remete-se ao texto de Lúcia Maria Paschoal Guimarães, intitulado “O periódico de uma société savante: a

Revista do Instituto Geográfico Brasileiro (1839-1889)” e citado no capítulo anterior, que assim se refere ao IHGB

enquanto associação científico-literária, cujo periódico institucional, a propósito, também possuía uma seção dedicada a publicizar as atas das suas conferências. Cf. GUIMARÃES, 2012.

RIOAB513, não tendo ainda circulação grande o suficiente para esvaziar o papel de divulgação de outras publicações periódicas não oficiais. Ante esse cenário, uma Revista que reunisse em si todo o tipo de conteúdo fundamental para a atuação do jurista era de maior interesse.

Mesmo que a essência de todas as seções, ainda que com diferentes designações, tenha permanecido pouco alterada em todas as fases, o percentual atribuído a cada uma delas no total de páginas do conjunto de volumes de cada um desses períodos variou muito. Isso porque o espaço dedicado às decisões dos Poderes do Estado na primeira fase (correspondente às seções de “legislação” e “jurisprudência” da segunda e terceira) era insignificante, às vezes não ultrapassando três páginas, com a inclusão de um ou dois resumos de acórdãos e o mesmo tanto de avisos do Poder Executivo. Maior proeminência, ao revés, era atribuída à seção equivalente à “doutrina”, intitulada “decisões do Instituto sobre questões de Direito e Jurisprudencia”, contendo a redação na forma de texto de discussões e decisões tomadas em conferências internas a partir de questionamentos levantados pelos sócios.

A proeminência geral, neste primeiro momento, cabia, entretanto, à “miscellanea”, composta basicamente de discursos comemorativos dos Presidentes em sessões aniversárias, cujo teor jurídico acabava minimizado pelo caráter essencialmente político de que se revestiam. É um gênero literário que será melhor discutido, mas neste momento de comparação geral entre os três momentos, serve de indício da preocupação predominante do periódico de divulgação interna e composição de memória, sedimentando a narrativa oficial que o Instituto buscava eternizar sobre a própria História e seus nomes mais ilustres. Abaixo, uma representação estatística do quanto cada porção representava no conjunto:

513 O primeiro número do Diario Official do Imperio foi publicado 1.º de outubro de 1862. Antes dele, o Governo

se valeu desde 1808 de diversos outros jornais privados ou mesmo folhas efêmeras impressas na Imprensa Nacional, mas não exclusivas, para publicar seus atos oficiais, como a Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821),

Gazeta do Rio (1822), Diario do Governo 1823-184; Diario Fluminense (1824-1831), Diario do Governo (1831-

1833), Correio official (1833-1840), Diario do Rio de Janeiro (1821-1878), Gazeta Oficial do Imperio do Brasil (1846-1848), até que finalmente em outubro de 1862 é criado o Diario Official do Imperio do Brasil, que circula até 1889, data da proclamação da República. Cf. BIBLIOTECA NACIONAL. Exposição comemorativa do

Gráfico 1 – Primeira fase: proporção do espaço ocupado por cada seção da Revista no conjunto de volumes

Fonte: Produção da própria autora, 2018

Confrontando as duas últimas fases separadamente, já que a estrutura de ambas era muito mais similar entre si do que em relação à primeira, chama atenção que a distribuição de páginas entre as seções era muito mais homogênea, sem as discrepâncias que caracterizaram a primeira fase. Isso porque as seções de legislação e jurisprudência ganham peso com a publicação de numerosas sínteses de acórdãos, às vezes até julgamentos completos, e sem- número de avisos ministeriais decidindo questões de direito, a ponto de tornarem-se as seções mais volumosas. A Revista assumia uma posição muito mais instrumental e informativa voltada para a prática profissional, expandindo a preocupação primeira de publicizar a produção do próprio Instituto.

Gráfico 2 – Segunda fase: proporção do espaço ocupado por cada seção da Revista no conjunto de volumes

Fonte: Produção da própria autora, 2018.

13%

18%

8% 61%

Parte Primeira - Decisões do Instituto sobre questões de Direito e Jurisprudencia

Parte Segunda - Actas das sessões ou conferencias do Instituto

Parte Terceira - Decisões dos Poderes do Estado, que contêm interpretação de Direito ou Jurisprudencia Parte Quarta - Miscellanea ou trabalhos diversos

15%

25%

21% 19%

20%