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Pioneirismo e cientificismo: revistas jurídicas nos territórios germânicos

BREVÍSSIMAS”: ACENOS FINAIS

53 A expressão vem destacada como remissão ao sentido atribuído por Massimo Severo Giannini, na sua introdução

2.2 ENTRE CIÊNCIA E DOUTRINA OU PRÁTICA E LEGISLAÇÃO: OS PERIÓDICOS JURÍDICOS DO SÉCULO XIX EM PERSPECTIVA COMPARADA

2.2.1 Pioneirismo e cientificismo: revistas jurídicas nos territórios germânicos

O mérito de serem eles precursores e ainda os campeões por quantidade, certamente, não são traços definitivos para definir a relevância de revistas jurídicas singulares ou para avaliar a cultura literária de um país como um todo. Todavia, são ferramentas úteis que revelam indícios sobre a familiaridade de uma cultura jurídica com a imprensa. Não à toa, portanto, a Alemanha é a nação escolhida para inaugurar a perspectiva comparada do presente capítulo. Não se ignora o fato de que, no recorte selecionado – o século XIX – não se pode falar de Alemanha enquanto nação politicamente unificada antes de 1871. Todavia, parte-se do dado de fato que a unificação cultural e linguística é muito anterior, de modo que, em se tratando de

revistas jurídicas de língua alemã, é possível traçar características comuns em uma análise que

abranja todo o centênio.

Nesse sentido, Joachim Rückert, valendo-se dos três volumes da

Bibliographie der Zeitschriften des deutschen Sprachgebietes bis 1900 de Joachim Kirchner,

estima em cerca de 570 o número de periódicos jurídicos veiculados nos territórios germânicos ao longo do século XIX93. Tomando a obra em sua integralidade, vale destacar que o primeiro

introdução deste capítulo, se deu em uma universidade italiana, cuja biblioteca – junto ao acervo pessoal da professora Cristina Vano, que gentilmente o colocou à minha disposição – foi o canal principal de acesso à bibliografia do presente capítulo.

92 Do original: “Aus dem Umfeld können Rückschlüsse auf das Produkt, aus dem Produkt auf das Umfeld gezogen

werden”. Cf. STOLLEIS, 2006, p. 11.

93 A já citada bibliografia de Kirchner, como demonstrado, data da década de 70, e padece, como qualquer trabalho

volume da trilogia abrange um arco temporal superior, isto é, as revistas publicadas em países de língua alemã de 1670 a 1830. O primeiro jornal jurídico gravado lá aparece, como já citado nas páginas anteriores do presente capítulo, a partir de 1703. Incluindo este título, Kirchner lista 225 publicações até 1830. A maior concentração, evidentemente, é no período de 1781 a 1830, durante o qual dois terços das revistas (123) aparecem pela primeira vez.

O impulso no mercado editorial jurídico na virada dos séculos é contextualizado por Diethelm Klippel94 em função de acontecimentos nada banais como a eclosão da Revolução Francesa, o surgimento das chamadas codificações dos direitos naturais, o fim do Antigo Reich, o surgimento da Confederação Alemã, a reorganização estatal dos Estados Prussianos, o Congresso de Viena e o surgimento da Escola Histórica. Observa-se, entretanto, que apesar do aumento constante do número de novas publicações, as numerosas perturbações políticas conduziram-nas a uma morte precoce, de modo que não superavam a marca de poucos volumes. Somente na segunda década do século XIX é que se registra um aumento significativo na expectativa de vida das publicações. De qualquer maneira, o próprio número expressivo de revistas já é útil, aqui, para revelar a formação de um mercado editorial e de um público leitor de maneira bastante precoce se comparada a outros Estados europeus, mesmo antes da unificação territorial.

No período destacado, Klippel destaca alguns tipos de revistas que foram mais expressivas e que podem revelar alguns traços da cultura das revistas jurídicas em território alemão na virada dos séculos XVIII-XIX: (i) as revistas de revisão; (ii) as revistas voltadas ao direito particular dos territórios; (iii) as revistas especializadas em disciplinas jurídicas. As primeiras, em torno de 1800, foram um gênero importante e dedicado a publicizar os novos lançamentos editoriais jurídicos, oferecendo um repertório completo dos escritos mais recentes em todas as disciplinas jurídicas. Enquanto hoje a revisão de obras jurídicas não passa de uma seção dos periódicos de direito, esses veículos, naquele momento, eram exclusivamente voltados para esse fim. Eram empreendimentos, entretanto, que a longo prazo não tinham sucesso, o que se atribui, dentre outros fatores, a uma reivindicação enciclopédica quase impossível, tendo em vista que muitas delas não só se propunham a apresentar todas as novas

aproximadamente 575 revistas listadas por Kirchner no século XIX abragem uma gande quantidade de papéis oficiais, de um caráter científico questionável. Por conta disso, Rückert, após filtrar algumas dessas entradas e complementá-las com outras fontes (bibliografias elaboradas posteriormente), chega à cifra aproximada de 570 periódicos para este século. Cf. RÜCKERT, Joachim. Zur Charakteristik führender juristischer Periodika im 19. Jahrhundert in Deutschland. Juridica International, v. XVIII, pp. 19-39, 2010.

94 KLIPPEL, Diethelm. Die juristischen Zeitschriften im Übergang vom 18. zum 19. Jahrhundert. In: STOLLEIS,

Michael (Org.). Juristische Zeitschriften. Die neuen Medien des 18.-20. Jahrhunderts. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1999. pp. 15-39.

obras de direito, mas de diversas áreas científicas, além da dificuldade de recrutar revisores suficientes para todas as novas publicações. Entretanto, constituem fontes valiosas para o estudo da ciência do seu tempo, com o registro de obras que de outro modo não seriam conhecidas.

Quanto à segunda vertente, o estudo também demonstra que na transição dos séculos o número de periódicos voltados ao direito particular de cada território aumentou. A explicação sugerida para essas mudanças reside no fato de que durante as primeiras décadas do século XIX as atividades legislativas dos estados alemães foram muito intensas, de modo que os periódicos passaram a ser preenchidos com a publicação de textos legislativos e regulatórios. O autor, no entanto, aponta que a função desses periódicos foi muito além disso, direcionando também a aplicação e interpretação desses dispositivos. Fato é, entretanto, que muito de sua função foi perdida para os diários oficiais nos anos seguintes.

No que se refere à terceira tipologia, destaca-se o surgimento, ainda nesse período de transição, das primeiras revistas dedicadas a disciplinas específicas, sem que se se limitassem a determinado estado. Data de 1769 a primeira revista especializada em direito penal, aparecendo, no final do século XVIII revistas que tiveram desenvolvimento bastante duradouro nesse campo. Em matéria civil, essas publicações aparecem a partir da segunda década do século XIX. Ambos os gêneros estavam calcados em uma “ideia do todo” - “die Idee das

Ganzen” - isto é, uma premissa de base que buscava abranger o direito de todos os estados: no

direito civil, a ciência romanística era o fator de unificação; enquanto no direito penal, o substrato filosófico iluminista era o mote agregador dos territórios.

Já um olhar que encare o Oitocentos por inteiro, para além da transição entre os séculos, faz emergir quatro grupos principais em que se podem encaixar os periódicos jurídicos alemães, enumerados em ordem decrescente de acordo com sua representatividade quantitativa: (i) em maior número os periódicos práticos, com as coleções de decisões – geralmente revistas conduzidas menos pessoalmente e mais por instituições, como tribunais, autoridades administrativas, sociedades notariais, associações de juízes e advogados ou similares; (ii) periódicos científicos primários – conduzidos por professores de direito e acadêmicos, com longos ensaios dogmáticos, similares às monografias; (iii) em menor número, as revistas jurídicas populares para leigos, geralmente chamadas de “jornal” e com periodicidade semanal, sem um eixo temático definido; e (iv) as revistas principalmente profissionais, voltadas a um grupo específico, como juízes, ou policiais, ou advogados, que diferem daquelas voltadas à prática profissional de modo geral.

Para um último “olhar de pássaro” – die Vogelperspektive95 – sobre as revistas

jurídicas desse século, Diethelm Klippel e Gerald Arends96 registram que o número de publicações jurídicas após a unificação da Alemanha aumentou consideravelmente. Os autores sugerem que parte do motivo disso pode estar no fato de que a fundação do Reich e a unificação política trouxeram muitas normas legais novas, novas estruturas administrativas e um novo sistema judicial, o que, por sua vez, causou um aumento na demanda por informação que poderia ser satisfeito por jornais especializados. Além disso, a população destinatária da informação era agora toda a nação, de modo que o número de leitores potenciais de periódicos jurídicos - em comparação com os estados individuais da Confederação Alemã – também se elevou consideravelmente.

Toda essa análise quantitativa oferece um quadro bastante significativo sobre o desenvolvimento das letras jurídicas, do seu público leitor e do grau de especialização do direito alemão no século XIX. Todavia, há ainda um dado qualitativo maior a ser assinalado sobre a cultura das revistas jurídicas alemãs oitocentistas: o ambiente de vida muito específico das universidades alemãs e sua audiência acadêmica na primeira metade do século XIX97. Não à toa ali puderam florescer revistas como a já tão citada Zeitschrift für geschichtliche

Rechtswissenschaft, cujos idealizadores proclamavam abertamente estar fora do plano da

revista a imediata e mecânica facilitação da atividade judicial, da magistratura ou da advocacia. Como destaca Stolleis98, a revista de Savigny, Eichhorns e Göschen não esteve sozinha, pois também outros periódicos jurídicos nas duas décadas anterior e posterior a 1800 foram fundadas excluindo do programa da publicação o imediato interesse da atividade judicial.

95 Ivi, p. 20.

96 KLIPPEL, Diethelm; ARENDES Gerald. Die juristischen Zeitschriften im 19. Jahrhundert. Beobachtungen zu

den juristischen Periodika in der Zeitschriftenbibliographie von Joachim Kirchner. In: STOLLEIS, Michael (Org.).

Juristische Zeitschriften. Die neuen Medien des 18.–20. Jahrhunderts. Frankfurt am Mein: Vittorio Klostermann,

1999. pp. 41-52.

97 A reforma das universidades prussianas operadas por Friedrich Wilhelm Christian Carl Ferdinand von Humboldt

consagrou o que se conhece por “modelo humboldtiano” de universidade. Essa história tem início durante o período em que ocupou o cargo de Ministro da Sektion für Kultus und Unterricht im Preußischen Innenministerium entre 1809-1810, quando percebeu as condições de abandono em que se encontravam as universidades alemãs e exortou a necessidade de renová-las como o único caminho possível para recuperar a nação no campo da ciência e da arte. É dessa época o seu ensaio Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenschaftlichen

Anstalten in Berlin, considerada a tábua de fundação da universidade moderna, destinada a permanecer como

paradigma ultrassecular e modelo considerado eterno enquanto encarnação da própria ideia do mundo moderno. A ponta de diamante desse programa didático se encontra na universidade de Berlim, por ele fundada em 1810, laboratório primário da concepção de educação superior enquanto união de pesquisa e ensino. Savigny participa dessa construção desde seu início, ocupando o posto de direção da Faculdade de Direito. Para uma compreensão das bases filosóficas desse projeto, cf. TESSITORE, Fulvio. L’università di Humboldt e l’unità del sapere. In: MAZZACANE, Aldo; VANO, Cristina (Org.). Università e professioni giuridiche in Europa nell’età liberale. Napoli: Jovene, 1994. pp. 15-29.

Todavia, em comparação ao contexto europeu, era incomum e ambicioso esse programa jurídico-científico, aparecendo apenas na Alemanha de modo tão articulado, em grande parte apoiadas por professores, revistas jurídicas consolidadas enquanto acadêmicas na paisagem nacional das revistas. Em vez disso predomina no resto do continente um tipo de revista muito voltada à prática dos tribunais, “made by practioners for practioners”99.

Não que não houvesse esse tipo de revista jurídica também na Alemanha – Rückert já demonstrou que eram inclusive mais numerosas que as científicas -, também aqui as revistas com fortes demandas teóricas não predominaram no conjunto total de periódicos existentes. Todavia, em uma comparação entre o panorama das revistas jurídicas alemãs e aquelas “ocidentais” permanece o notório fato de que os mais importantes periódicos capazes de sobreviver em circulação mais ou menos constante no mercado e de influenciar de forma considerável na Alemanha foram as revistas jurídicas com maior pretensão científica na crucial fase do início do século XIX.

É a tradicional paisagem das universidades, como havia na Alemanha, o que permite que uma revista se dedique mais facilmente a um puro recorte teórico, o que explica ter sido um fenômeno jornalístico especificamente alemão a consagração das revistas jurídicas acadêmicas com elevado padrão teórico no século XIX. O próprio fato de existirem revistas desde o século XVIII – mesmo que de curta duração – já é um diferencial germânico, pois outros territórios tiveram que esperar até o século XIX para conhecer periódicos exclusivamente jurídicos.

A existência de órgãos específicos dedicados à teoria e outros à prática, isto é, alguns voltados para as atividades dos tribunais e outros para discussões acadêmicas100 requer ambientes previamente treinados e diversos leitores. De outro modo, as revistas precisam buscar, em sua fase inicial, na medida do possível atender a todos: professor com ensaios individuais aprendidos, o juiz e o advogado com a reimpressão de decisões e comentários, o funcionário administrativo com notícias oficiais e referências à nova legislação, o legislador com relatórios comparativos do exterior. Com a crescente diferenciação das necessidades, pode essa pretensão de atender todas as necessidades ser substituída pela especialização e divisão renovadas – desde que o mercado seja suficientemente grande e receptivo a ela.

99 A expressão foi colhida em: HEIRBAUT, Dirk. Law reviews in Belgium (1763-2004): instrumentos of legal

practice and linguistic conflicts. In: STOLLEIS, Michael (Org.). Juristische Zeitschriften in Europa. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2006. p. 348.

100 Nesse sentido apontava, já em 1820, Pellegrino Rossi, comentando o contexto alemão marcado pela separação

entre as “vocações” jurídicas: “En Allemagne la séparation était complète. Un Professeur n’avait jamais vu un tribunal [...]”. Cf. ROSSI, 1820, p. 4.

2.2.2 O praxismo da Restauração e os especialismos pós-unificação: periódicos da