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Limites da renovação e freios de continuidade em uma ordem jurídica em transição: o advento da imprensa jurídica na Espanha

BREVÍSSIMAS”: ACENOS FINAIS

53 A expressão vem destacada como remissão ao sentido atribuído por Massimo Severo Giannini, na sua introdução

2.2 ENTRE CIÊNCIA E DOUTRINA OU PRÁTICA E LEGISLAÇÃO: OS PERIÓDICOS JURÍDICOS DO SÉCULO XIX EM PERSPECTIVA COMPARADA

2.2.4 Limites da renovação e freios de continuidade em uma ordem jurídica em transição: o advento da imprensa jurídica na Espanha

Assim como o hábito não faz o monge, o título da publicação não pode ser tomado automaticamente como crachá identificador do perfil de uma revista. Esse adágio popular é bastante útil para compreender por que a Gaceta dos Tribunales, criada no ano de 1834 em Madrid, em que pese seu pioneirismo na imprensa jurídica espanhola, não é considerada a primeira revista jurídica em sentido estrito da Espanha. Apesar da sua denominação, o periódico dedicava grande espaço a divulgar notícias e artigos sobre a política e economia do país, ultrapassando os confins da estreita moldura em que se insere um jornalismo especializado em

direito. Por conta disso, apenas em 1836, com o Boletín de jurisprudencia y legislación,

dirigido por F. Pacheco, M. Pérez Hernández y J. Bravo Murillo, inaugura-se uma nova época para a imprensa jurídica espanhola, em que se cristaliza uma determinada concepção do jurídico (por contraposição ao político) que serve de molde para a aparição de diversas revistas127.

O Boletin, e a maior parte dos periódicos dessa década, propõe-se a divulgar as novas leis e dar notícias dos tribunais, buscando suprir uma carência compartilhada pela maior parte dos Estados nacionais em consolidação: a inexistência de instrumentos oficiais que circulassem e tornassem acessível o novo material jurídico. Essa necessidade de divulgar a legislação estatal está na base da hipótese levantada por Antonio Serrano González sobre as publicações periódicas espanholas do século XIX: para o autor em regra não apresentam aqueles dois pressupostos necessários para que uma revista seja frutuosa para a cultura jurídica – o projeto e a comunidade de leitores –, razão pela qual não se poderia, em sua convicção, falar-se de uma literatura jurídica nacional criada ou estimulada pelas revistas, mesmo reconhecendo que revistas houve; e muitas128.

Essa característica se intensificaria a partir de 1848 com a chegada do novo Código Penal, texto de autoridade que exige para si muitas energias da imprensa jurídica para dar conta de sua reprodução, difusão e esclarecimento, a ponto de operar uma “fagocitación por parte de

la ley del discurso jurídico incorporado a las revistas”129. A existência concreta e tangível do que outrora era somente um projeto cultural anunciado acaba por inserir o temido fetichismo da lei estatal doméstica dentro da própria imprensa jurídica.

127 LORENTE, 1997, pp. 256-259. 128 GONZÁLEZ, 1997, p. 80. 129 Ivi, p. 84.

A lógica arraigada da submissão à lei e, sobretudo, ao tempo do Estado, torna as publicações periódicas sempre mais fugazes, transitórias, momentâneas e, negativamente, mais periódicas, à medida que se tornam obsoletas assim que novos dispositivos legislativos são promulgados. Todavia, é justamente a inclusão de uma seção dedicada à divulgação das leis é o que justifica a própria existência do periódico, que, no nível mais básico e urgente, satisfaz a demanda de leitores e assinantes de obterem informação atualizada sobre o direito aplicável. Acaba que esse encargo, porém, mitiga o potencial da revista de dar a conhecer para poder criticar, restringindo-se, na maioria das vezes, em dar a conhecer para poder meramente aplicar. A crítica ácida de González relaciona essa escolha editorial de submissão cultural à letra da lei a uma postura mental do próprio jurista de incapacidade de se elevar à categoria de produtor de discurso e de cultura. Sem rodeios: “las revistas informan sobre el poder y tienen voluntad de

poder; pero esto no implica que generen automaticamente saber”130.

Apesar da profundidade dessa crítica, parece oportuno registrar narrativa historiográfica divergente, na tentativa de esboçar o panorama mais amplo e variado possível dessa tradição jurídica. Fernando Martínez131 oferece explicação alternativa, que passa por uma compreensão da ordem jurídica do século XIX como uma ordem ainda arcaica, apesar do advento das do elemento inovador das codificações132. Mesmo com a sua natureza de ruptura e renovação da ordem jurídicos, os códigos não teriam sido capazes de substituir uma Denkform ainda jurisprudencial, própria de tempos que não se concebem superados, tampouco poderia ser a chave de leitura de toda aquela experiência jurídica. Desse modo, questiona as conclusões de González sugerindo que elas se equivocam por partirem de premissas erradas, categorias conceituais florentinas que não poderiam se adequar à realidade espanhola. Isso porque aquele raciocínio ignoraria que uma perfeita modernização do direito, a ponto de reduzi-lo ao monopólio da lei, ainda restaria pendente no século XIX, que não assistiu à substituição da completa da lógica de acumulação, incerteza e casuísmo do ius commune133.

130 Ivi, pp. 91-94.

131 MARTÍNEZ, 2004.

132 Apenas a título de informação, a Espanha conheceu um efêmero Código Penal em 1822; outro em 1848, que

constituiu a base do terceiro em 1870; um Código de Comércio em 1829, quase imediatamente obsoleto à prática; leis processuais (de ajuizamento mercantil, 1830, e civil, 1855), que nem sequer podiam ser considerados códigos; um Código Civil no final do século, em 1889, quando se renovam as leis processuais (1881, 1882) e o Código de Comércio (1855). Petit aponta que os textos não foram tantos, tampouco muito importantes, haja vista que padeceram da falta de definição de todo o ordenamento pela ausência prolongada de um Cödigo civil. E quando o Código civil chega não é capaz nem de unificar o território, nem de monopolizar as fontes jurídicas, tampouco de garantir a estatalização das fontes, recorrendo ao direito matrimonial canônico. Daí seu diagnóstico de “un código sustancialmente inexistente”. Cf. PETIT, Carlos. El código inexistente. Por una historia conceptual de la cultura jurídica en la España del siglo XIX. Anuario de derecho civil, v. 48, n. 4, pp. 1429-1466, 1995. p. 52.

Sob esse viés, as revistas não passariam de recipientes novos de conteúdos tradicionais, e a novidade residiria muito mais no formato do que na substância. A imprensa jurídica seria apenas uma representante apropriada de uma determinada ciência jurídica, e essa, a seu turno, de uma determinada sociedade política. Mas perceber suas limitações e carências não significariam, automaticamente, decretar sua incapacidade; apenas reconhecer uma condição congênita daquela sociedade134.

Por certo, não se trata de afirmar que inexistiam revistas com preocupações científicas, basta pensar nos exemplos profícuos trazidos por Carlos Petit135, mas seu caráter de excepcionalidade perante a paisagem total das revistas jurídicas serve apenas para confirmar a regra. Esse desencanto, em última instância, se refere a uma avaliação da qualidade da própria ciência jurídica espanhola do século XIX como um todo, da qual as revistas são apenas um reflexo. A natureza das publicações não passaria do sintoma de um diagnóstico mais amplo136. Sem que se espose nenhum dos posicionamentos em contenda como um juízo definitivo, reconhece-se ser necessário esperar até praticamente final do século para que esse marco estrutural da imprensa jurídica comece a se transformar, a partir do momento histórico – comum às realidades nacionais abordadas nas seções anteriores – de abertura das universidades a novos horizontes científicos, permitindo-lhes emancipar-se das sufocantes demandas da prática jurídica. É a partir de então que se começa a advertir que o princípio ativo da atualidade jurídica não pode ser colhido na dinâmica própria das instituições públicas, mas provém mais de cima: da especulação científica137.

2.2.5 As origens do longo casamento entre associativismo e periodismo: o exemplo de