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O praxismo da Restauração e os especialismos pós-unificação: periódicos da península itálica

BREVÍSSIMAS”: ACENOS FINAIS

53 A expressão vem destacada como remissão ao sentido atribuído por Massimo Severo Giannini, na sua introdução

2.2 ENTRE CIÊNCIA E DOUTRINA OU PRÁTICA E LEGISLAÇÃO: OS PERIÓDICOS JURÍDICOS DO SÉCULO XIX EM PERSPECTIVA COMPARADA

2.2.2 O praxismo da Restauração e os especialismos pós-unificação: periódicos da península itálica

Em números quantitativos, o século XIX é igualmente representativo para os periódicos jurídicos da península itálica, que registram 533 publicações entre 1850 e 1900101. Entretanto, um olhar generalista sobre essa cultura jurídica, abrangendo o conjunto das revistas jurídicas oitocentistas, é igualmente desafiador por também se tratar de território que vivenciou uma unificação política tardia102 no século XIX, tendo se tornado uma única nação apenas em 1861103. Esse fato acabou, inclusive, por dificultar o trabalho da historiografia sobre periódicos jurídicos pré-unitários, tendo em vista a fragmentariedade desses materiais104. Por conta disso, a análise nesta subseção se concentrará sobretudo nas publicações iniciadas a partir da segunda metade do século XIX105.

101 Esses dados são extraídos do utilíssimo repertório produzido pelo bibliotecário fiorentino Carlo Mansuino,

colaborador da Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze: MANSUINO, Carlo. Periodici giuridici italiani (1850–

1900). Repertorio. Milano: Giuffrè, 1994.

102 Essa relação foi ilustrada na alegoria de Johann Friedrich Overbeck, Italia und Germania, pintura de 1828 que

simboliza a paridade das duas regiões culturais (que àquela altura ainda não eram países unificados) a partir do retrato de amizade entre duas mulhares que se apoiam em atitude amigável e afetuosa.

103 Todavia, entre os dois modelos existem diferenças fundamentais. Nos territórios germânicos existia uma

situação de equilíbrio no interior da Confederação alemã, cuja particular estrutura constitucional favorece a Prússia, interessada em modificar em vantagem própria os equilíbrios internos através de uma via gradual, que evitasse rupturas abertas. Na Itália, ao invés, até ao menos 1848 falta um estado que defenda como objetivo a realização da unidade nacional, e o próprio Reino da Sardenha, o único Estado italiano que por grandeza e potência poderia pensar em assumir tal papel, ainda estava muito estruturado naquela peculiar situação política. Alguns acenos comparativos podem ser colhidos dos ensaios presentes na seguinte obra: ALTAROZZI, Giordano; SIGMIREAN, Cornel (Org.). Il Risorgimento italiano e i movimenti nazionali in Europa. Dal modelo italiano alla realtà dell’Europa centro-orientale. Roma: Edizioni Nuova Cultura, 2013.

104 Um dado que contribui para esse cenário, evidentemente, não é somente a colocação temporal dos periódicos,

mas a mudança do contexto sócio-político em que floresciam: com a unificação mudam social e profissionalmente os protagonistas, não só autores e editores, mas também os destinatários, cujo número cresce sensivelmente. As próprias revistas sofrem modificações estruturais na contínua experimentação de modelos novos e mais modernos, e variam progressivamente os conteúdos e linguagens. A observação é de Patrizia Salvo, ao detectar profunda modificação em suas fontes de pesquisa – as revistas jurídicas sicilianas – a partir da década de 1860. Não por acaso, a autora admite ter conseguido realizar uma investigação mais aprofundada, com coleções inteiramente conservadas, somente a partir desse período. Cf. SALVO, Patrizia. La cultura delle riviste giuridiche siciliane

dell’Ottocento. Milano: Giuffrè, 2002. p. 19.

105 Não foram encontrados, durante a pesquisa para a revisão bibliográfica, ensaios dedicados a uma análise geral,

tampouco a periódicos específicos, das revistas jurídicas pré-unitárias. Apesar do pioneirismo e da tradição historiográfica italiana em matéria de periodismo jurídico, os trabalhos geralmente se ocupam de uma única revista, buscando enquadrá-la, com maior ênfase, dentro do setor disciplinar em que insere, sem grandes elucubrações sobre o quadro geral da cultura jurídica periódica de todo o centênio, em todas as regiões da península. São exemplos disso as contribuições ao já citado volume monográfico dos Quaderni fiorentini sobre as revistas jurídicas italianas (1865-1945), em que cada autor se dedica a exemplares-chave para determinado ramo do direito. Cf. GROSSI, 1983. Ou o volume organizado por Luigi Lacché e Monica Stronati no âmbito das revistas jurídicas de direito penal. Cf. LACCHÉ; STRONATI, 2012. A esta regra foge o trabalho de Patrizia Salvo, sobre a La cultura dele riviste giuridiche siciliane dell’Ottocento, que procura fazer uma reflexão sobre todo o século – para ser mais precisa, no setantênio de 1830 a 1900 –, todavia, por se concentrar em uma única região, tampouco contribui para o quadro geral de toda a península. Cf. SALVO, 2002.

Isso não significa dizer – é oportuno esclarecer – que se partilha de um juízo depreciativo, bastante difuso na historiografia moderna106, sobre a experiência jurídica da Restauração107 nos estados italianos pré-unitários, em virtude de seu caráter prevalentemente prático e voltado à atividade forense, que teria contaminado também a capacidade especulativa dos centros universitários. Ao contrário, reconhece-se que o habitus mental do jurista oitocentista é bastante heterogêneo, variado, certamente complexo108.

Não se ignora, portanto, que “per molti versi la Restaurazione è anche la prima grande

età delle riviste giuridiche” 109, e que muito antes de a Itália se configurar nos contornos de um Estado-Nação, as revistas já eram reconhecidas por juristas italianos como meio privilegiado para acompanhar o novo ritmo dos tempos110. De todo modo, até metade dos anos setenta o

106 O parecer negativo se difundiu a partir da publicação de Savigny, em 1828, na Zeitschrift für geschichtliche

Rechtswissenschaft das suas impressões sobre o ensino de direito nas universidades italianas, após uma de suas

viagens realizadas entre 1825 e 1827. Em 1850, vem republicado em SAVIGNY, Friedrich Carl. Ueber den juristischen Unterricht in Italien. In: Id. Vermischte Schriften. v. 4. Berlin, 1850. pp. 309-342. A decepção, basicamente, resultou da constatação de que grande parte dos professores eram ao mesmo tempo advogados e magistrados, e que os estudantes pouco frequentavam as aulas, o que o levou a concluir que o interesse geral se enderaçava à prática forense. O predomínio dessa atividade sobre a especulação científica, basicamente, seria a causa principal da baixa qualidade dos estudos acadêmicos e da involução do ensino universitário para um enciclopedismo pouco aprofundado. Mazzacane alerta para o fato de que, sobretudo na descrição do cenário napolitano, tratou-se de quadro substancialmente fiel, mas focalizado na universidade (e prevalentemente sobre o direito romano na universidade). É, portanto, um ângulo parcial e não suficientemente informado. Mais pertinente, ao invés, era a observação de que os estudos em Nápoles fossem realizados principalmente em escolas privadas e que a advocacia fosse o centro da vida jurídica. Como professor berlinense, defensor convicto de uma concepção elevada da universidade e protagonista do modelo humboldtiano, é compreensível que julgasse o fenômeno em modo negativo. Todavia, o precário fôlego dos estudos universitários não significa por si ausência de cultura jurídica. Cf. MAZZACANE, Aldo. Pratica e insegnamento: l’istruzione giuridica a Napoli nel primo Ottocento. In: MAZZACANE, aldo; VANO, Cristina (Org.). Università e professioni giuridiche in Europa nell’età liberale. Napoli: Jovene, 1994b. pp. 77-113.

107 É sempre oportuno destacar, para o público-leitor brasileiro, que se utiliza convencionalmente o termo

Restauração, sob o viés histórico-político, para designar o processo de reestabelecimento do poder dos soberanos absolutistas após a queda de Napoleão. Convenciona-se a sua data de início a partir de 1814-1815, quando da realização do Congresso de Viena entre as nações vencendoras das Guerras Napoleônicas para decidir o redelineamento das fronteiras territoriais europeias.

108 Essa é a interpretação oferecida pelo “canône eclético”, attegiamento ou postura do italiano da Restauração,

que permite compreendê-lo, sem reducionismos, no seu terreno privilegiado, enquanto profissional do direito no contexto forense. No foro se conciliam a teoria e a práxis, de forma que a advocacia e a magistratura permanecem, em boa parte do Oitocentos italiano, como a veia essencial do saber jurídico. É necessário saber reconhecer e apreciar essa diversidade, sem diminuí-la em prol de uma cultura cientificizante. Para essa perspectiva, cf. LACCHÈ, Luigi. Il canone eclettico. Alla ricerca di uno strato profondo della cultura giuridica italiana dell’Ottocento. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, v. 39, pp. 153-228, 2010.

109 Ivi, p. 171.

110 Para além da vocação predominante de divulgar os julgamentos das cortes jurisprudenciais e as novidades

legislativas de cada estado, que os periódicos já assumiam nesse período, é possível distinguir, logo após o início da Restauração, exemplares que se propõem a iniciar um debate sobre a formação e educação de operadores jurídicos e à profícua reflexão sobre os problemas da lei e do direito, animados pelos ventos do “progresso” e de renovamento da vida civil que sopravam naqueles tempos. Títulos com essa tendência, na experiência jurídica milanesa pré-unificação, são analisados em: STORTI STORCHI, Claudia. 'Preparare in ogni modo alla pratica'. Il programma dei periodici giuridici milanesi dal decennio di resistenza all'unificazione legislativa (1850- 1865). In: VILLATA, Maria Gigliola di Renzo (Org.). Formare il giurista. Esperienze nell'area lombarda tra Sette e Ottocento. Milano: Giuffrè, 2004. pp. 459-495.

panorama da imprensa jurídica é fortemente dominado ainda pelas revistas de jurisprudência, que se coadunavam seja com a orientação científica da Academia, que privilegiava comentário e exegese, seja com as exigências e demandas dos profissionais práticos111.

Nos anos que seguem, novos empreendimentos se iniciam, e um dos traços mais marcantes, no último quarto do século, que passa a caracterizar as revistas jurídicas italianas é o “especialismo” das revistas acadêmicas por setores disciplinares, divididas em subcategorias por ramos do direito definidos. Essa tendência é conectada, por Lacchè e Stronati112, a um processo mais amplo de cientificização que parte das Universidades, traduz-se em “discurso sobre o método” e também repercute no universo complexo e fragmentado das profissões jurídicas. São produtos desse renovamento científico as riviste-persone 113 , altamente

especializadas, que consolidaram inteiras disciplinas, como alguns títulos clássicos voltados ao direito penal114 e ao direito público115. Na virada do século, periódicos jurídicos hospedaram

111 O diagnóstico é de MOZZARELLI, Cesare. L’annuario delle scienze giuridiche, sociali e politiche (1880-

1883). Viaggio breve nella cattiva coscienza. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, v. 16, pp. 7-46, 1987. p. 10. Para além da difícil tarefa de construir o Estado Unitário italiano, os juristas também enfrentaram as demandas decorrentes da virada cultural da década de 70, onda de renovação vivenciada por diversas nações europeias, que compartilhavam o mesmo exaurimento da capacidade ordenante da forma de Estado liberal e da sua constituição, fundada sob o princípio da legalidade e sob a figura do sujeito-indivíduo. Para uma reflexão do papel dos juristas na “crisi dello Stato liberale” do final do século, cf. MAZZACANE, Aldo. Introduzione. In: MAZZACANE, Aldo (org.). I giuristi e la crisi dello Stato liberale in Italia fra Otto e Novecento. Napoli: Liguori, 1994a. pp. 18-22.

112 LACCHÈ; STRONATI, 2012, p. 12.

113 A expressão referenciada na nota 43 designa os casos em que o jurista editor-chefe configura a linha editorial,

escolhe os objetivos programáticos, coordena a redação, assume pessoalmente confrontos e polêmicas, ou seja, encarna o programa do periódico, sem que a revista perca – geralmente até reforçando-o – seu caráter representativo de uma área disciplina.

114 Exemplo pródigo de “rivista-persona”, com um programa editorial bastante definido, é a Rivista Penale di

Dottrina, Legislazione e Giurisprudenza, fundada por Luigi Lucchini em 1874, em Padova, sendo inclusive uma

das mais antigas e mais longevas (já atingiu seu 142o aniversário) voltadas a essa temática. Não à toa seu

idealizador não se priva de assinalar no primeiro volume que é a primeira, e àquele tempo única, exclusivamente dedicada às disciplinas penais. Seus fascículos constituem um arquivo riquíssimo, contendo ensaios sobre temas cruciais para a doutrina penal italiana da virada do final do século XIX, em especial a unificação do direito penal em torno de um novo código e o debate das escolas em disputa. Cf. SBRICCOLI, Mario. Il diritto penale liberale. La “Rivista Penale” di Luigi Lucchini (1874-1900). Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico

moderno, v. 16, pp. 105-183, 1987.

115 Após delineados os contornos político-territoriais de uma Itália unida, o processo de consolidação do Estado-

Nação a partir de uma estrutura administrativa ainda estava todo por fazer, o que exigiu novo e reforçado fôlego dos estudos juspublicísticos nas décadas seguintes. Nascem, desse modo, logo após a Unificação, diversos periódicos da necessidade de uma discussão coletiva entre os juristas de direito público sobre a nova fase de história constitucional que se criara para a forma-Estado. O marco inicial do que se tornou uma importante tradição de estudos pode ser localizado na fundação, no ano de 1891 em Palermo, do Archivio di diritto pubblico, dirigida por Vittorio Emanuele Orlando. Para uma narrativa detalhada desse itinerário, Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Alle origini di una disciplina giuridica: la giuspubblicistica italiana e le sue prime riviste (1891-1903). Quaderni

fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, v. 16, pp. 209-284, 1987. Apenas para destacar outro

exemplo de rivista-persona digna de nota, recorda-se a Rivista di Dritto Pubblico, concebida em torno do jurista bolonhês Cesare Albicini. Seu primeiro número vai à luz em 1889. Os ensaios veiculados em suas páginas partem do direito público geral, mas logo após os primeiros números chegam ao direito administrativo, registrando o fortalecimento dessa disciplina, até fundir-se em 1892 com a revista romana de “Giustizia nell’amministrazione”, o que marcou definitivamente sua transformação em uma “rassegna di amministrazione, seria, utile, difusa”. Notícias sobre a trajetória específica desse periódico se encontram em: PIRETTI, Maria Serena. Cesare Albicini e

importantes contendas doutrinárias para o renovamento da ciência jurídica italiana e plasmaram contribuições valiosas para uma inteira geração de juristas.