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1 Introdução

2.3 Iniciações

Minhas perguntas retornam a meus iniciadores Ricardo Puccetti, Carlos Simioni, Luís Otávio Burnier, Philippe Gaulier e Jacques Lecoq (indiretamente), bem como aos Messieurs, que me iniciaram diretamente, nos dois retiros de clown, dos quais eu participei em 1992 e em 1995, com quem eu aprendi a ser clown, a achar o estado que me levou um dia a refletir sobre a iniciação dos clowns. Inclusive retorno às conclusões de minha dissertação de mestrado, com trabalho de campo num hospital. Nela, coloco as reflexões que me levariam a analisar um processo de trabalho com o mesmo tema do clown. Mas, no mesmo instante, vejo agora que o trabalho já se processava em mim quando iniciei o clown dos pacientes infantis hospitalizados. Essa mesma experiência encaminhou e desencadeou um processo criativo pessoal: os primeiros iniciados foram crianças portadoras de câncer, depois com Síndrome de Down e em situação de risco social, as quais me proporcionaram um modo peculiar de tratar com a forma de ensinar o clown, sem pensar em máscara social ou couraça (BURNIER, 2001). Acredito que isso tenha-me feito ver que mesmo um adulto tem as mesmas características das crianças; essas características estão ainda no adulto, escondidas sob as máscaras sociais. A forma de conduzir e de desencadear o processo é a mesma que é utilizada com as crianças. No primeiro curso que ministrei, a minha proposta foi a de olhar para as pessoas como crianças com quem iria brincar. Comecei a desenvolver o curso ainda como “Dona do Circo”, buscando talentos no hospital. Mas ao buscar talentos, fui desafiada a iniciar o clown das crianças, mas o maior desafio foi aprender com as mesmas o que é clown. Retomo esse momento do meu trabalho, em 2001, num curso de clown ministrado por mim no Teatro Renascença, em Porto Alegre.

Comecei a descobrir como é que cada vez mais eu poderia apresentar a exposição da pessoa com mais compreensão do que se fosse o clown, pois é difícil para uma pessoa adulta entender o que ele é, até ela estar nessa situação. A minha vontade era de fazê-la compreender o como.

Durante o trabalho desenvolvido, propus exercícios, jogos e brincadeiras variados, os quais fui criando a partir de referências pertinentes à minha trajetória de formação como atriz e professora junto a outros já estruturados, bem como adaptando jogos ao objetivo do contexto. Os jogos como uma forma de aquecimento

do grupo tinham por objetivo promover a observação da reação dos participantes durante as atividades. Também era proposto, focar determinada pessoa sem que ela percebesse que estava sendo observada em sua expressão livre, sem representação. Observando como essa pessoa se expressava. Num determinado momento, dizia a ela que o que ela fazia era o início, era um “flash”; que visse aquela dança, que aquilo que ela estava fazendo já revelava que ela começava a entender, a perceber no seu corpo e nos seus sentimentos, sensações, o que era a sua forma de ser “cômico”. Baseava-me nos jogos e nas brincadeiras com crianças iniciadas por mim; além disso, pensava no desprendimento das crianças.

Costumo sugerir ao aprendiz, quando percebo um sinal clownesco revelando-se, que compreenda o que fez e que faça de novo, que guarde a sensação e que sinta mais o andar e que ande mais, que experimente. Também que observe em si e no olhar dos outros que o olham como é que eles estão vendo. O clown começa a existir primeiro no desejo e, depois, no olhar do outro que o vê e que conta como está o corpo: com riso, com desprezo, com silêncio. Quem atua como clown faz-se presente, coloca-se em foco. Também reflete o mistério, quando a obra começa a falar com aquele que atua e com os outros. O clown fala silenciosamente nas entrelinhas do olhar, no ser de um andar, de uma risada, de uma piscada de olho, num olhar que penetra no olhar do outro, como se a imagem vivesse no espelho do olhar do público – ver e ser visto –; está na proporção de perceber-se atuando no outro e ele atuando na pessoa. O clown é uma imagem imediata e atuante nas emoções, nos sentimentos do público. É o ato entre duas humanidades em empatia.

Sempre guardo comigo o que aconteceu numa determinada apresentação na rua. Comecei a dançar e a dublar a música “Finally”28. O público estava muito distante. E então, percebi, por um momento, que precisava dilatar ainda mais o meu espaço corporal e tentar entender o que eu deveria fazer para conseguir a atenção do mesmo. Olhei para cima, vi o céu azul; constatei, mais uma vez, aquele momento de criança quando olhei nos olhos do público. Lembrei-me da minha primeira vez em cena, ainda criança, em que olhei e tive vontade de dançar mais. Naquele momento, na rua, tive vontade de dançar mais para o mundo inteiro e percebi que naquele número, naquele ato, existiu, em mim, uma vontade de suspender aquele instante,

28 Rodney K.Jackson/Ce Ce Peniston/Felipe Delgado & E.L.The adventures of Priscilla- Queen of the desert,1998.

deixá-lo parado para todos nós. Aquele espetáculo, com todas as pessoas presentes, tornou-me completa: eu queria ficar naquela dança, eu me divertia. Aquilo que eu ensinei e que aprendi em sala de trabalho também serviu naquele momento. Vi que nada do que fazia em cena estava funcionando. Pensei: vou fugir. Saí correndo, dançando, com imenso prazer de estar ali, senti a arte que corre e abre os braços para envolver o mundo: “Eu sou livre na hora que danço a minha música preferida, percebendo o meu corpo como um espetáculo cômico...”. Ali, naquele cheiro de combustível, na pressa dos frentistas, só me lembrei de olhar para o céu: pude ver o céu entardecendo, junto com a minha dança; azul marinho claro, estrelas, girei no céu e dancei a minha história de vida, a minha história de sempre dançar, apesar dos carros passando, dos motoristas apressados. As pessoas estavam olhando para outros lugares. Mostrei a minha dança e vi quem realmente silenciou para ver; olhei dentro dos olhos, das bocas, das barrigas que chacoalhavam, do céu. Como roda da dança cômica em mim, dancei no estacionamento, no posto de gasolina, com o guarda, com os carros que estavam abastecendo, na porta de vidro da Loja de Conveniência junto dos passantes, na vídeo-locadora e em cima do capô dos carros. Aquilo tomou conta da minha vida.

Percebi que a dança que dançou em mim nesses anos todos foi cômica e assim entendi que ela se revelou desde a minha infância. Naquele dia, no palco do cinema do Padre, quando eu tinha 6 anos de idade, dancei requebrando as cadeiras o “Carimbo”, na voz de Eliana Pitman, em volteios fogosos com braços e mãos; entrei em estado de intensa cumplicidade com a plateia; eu era só uma criança , mas devorei e digeri aquele público, e percebi o quanto era bom estar no palco sob a fixação de olhares. Perdi a vergonha de me expor e mais uma vez lancei-me naquele estado lúdico; para mim; era como brincar de cantar; cantei o “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa, na festa da escola, quando todos riam por eu não ter conseguido pegar um tom acima... Fracasso, as pessoas riam muito e resolvi cantar ainda “Marinheiro só”, num microfone quadradinho, que emitia um som quase rouco; eu não me intimidei.

As pessoas riam da minha ingenuidade, da minha inocência. Eu pensava que era a cantora mais importante do mundo, sem pudor, somente pela chance de cantar as duas músicas que eu havia decorado e preparado para cantar naquela festa da escola, festa que se transformou na minha iniciação artística. Hoje, vejo-me usando o fracasso como forma de gerar força nas pessoas na iniciação do clown;

para mim, remonta-me à sensação da festa, de estar num processo de descoberta, de estar naquele momento infinito de grande desafio, o que a arte do clown propicia- nos. A mesma sensação tenho aos 51 anos de idade, quando estou em cena: o prazer de estar fazendo a plateia rir da minha fraqueza; sinto-me uma garota ingênua de 6 anos de idade. Esses dizeres elucidam que somos seres delicadamente marcados a desafiar a nossa imanência secreta por meio da iniciação artística. Quando se abrem as cortinas e acendem-se os refletores, revela-se o misterioso fenômeno intuitivo, secreto e silencioso, que nos leva a sucessos ou fracassos, pertinente à criação. Assim, nas palavras de um aprendiz de clown, “Algumas buscas são meramente intuitivas. Depois que começamos a andar é que percebemos o caminho, no silêncio das coisas em nós (Clown denominado Marques, 2003). “

3

No silêncio das coisas

O senhor Palomar percebe: “Da superfície muda das coisas deve partir um sinal, um chamado, um piscar: uma coisa se destaca das outras com a intenção de significar alguma coisa... O quê? Ela mesma, uma coisa fica contente de ser observada pelas outras coisas só quando está convencida de significar ela própria e nada mais em meio às coisas que significam elas próprias e nada mais.” (CALVINO, 1994).