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1 Introdução

4.6 O primeiro curso

Comecei a iniciar os clowns de adultos no ano de 1997. Quando convidada pela Faculdade de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria- RS, foi-me solicitado criar um curso para iniciar o clown dos adultos que, por sua vez, iriam iniciar os próprios alunos, crianças portadoras de necessidade especiais.

Como eu já havia realizado um trabalho com crianças com Síndrome de Down na cidade de Campinas-SP, preparei o curso. Havia 25 profissionais, entre atores e professores.

No primeiro dia do curso, por se tratar de um trabalho basicamente corpóreo, que levava à descoberta do clown na prática, percebi uma certa dificuldade dos profissionais da área de pedagogia. Alguns pensaram que iriam enfrentar um curso teórico. Quando fui convidada e informaram-me qual era o público-alvo, percebi que não seria tão simples ministrar o curso, já que eu não havia trabalhado com adultos.

Uma outra questão era que o curso não seria somente para adultos, mas para adultos que iriam iniciar o clown das crianças. Algum tempo antes de ministrar o curso, pensei, num primeiro momento, que, para os professores iniciarem o clown de suas crianças, eles precisavam passar pelo processo de iniciação, porque não haveria como ensinar um processo de iniciação artística a alguém que não tivesse passado pelo mesmo processo criativo.

Seguindo algumas orientações de Ricardo Puccetti , pois nesse ano eu ainda fazia parte do corpo de pesquisadores do LUME, elaborei, portanto alguns exercícios e jogos, mas que foram recriados na prática de acordo com o público alvo do curso, os pedagogos.

Um dos exercícios propostos eram os grupos de desafio. Dividindo o grupo em dois, para que se desafiassem, com coisas muito ridículas que soubessem fazer. Os mesmos puderam mostrar o que cada um de seus integrantes sabia fazer a fim de expor como provocação ao outro, apenas como forma de estimular a expressão ridícula individual. Propunha bailes e festas de piquenique que exigiam do participante vestimenta a caráter. Tais atividades poderiam revelar, por exemplo, que tipo de roupa o clown vai usar. A roupa é considerada parte da máscara porque ela também pode revelar o ridículo da pessoa. No outro exercício, a pessoa pode adentrar o mundo do circo e verificar qual é o número circense que ela tem na memória e que poderia fazer ali.

Outros exercícios são importantes, como se relacionar com uma outra pessoa e fazer a triangulação (Exercício do capítulo 6), o desfile de modas, uma dança em que se coloquem elementos horríveis, criar uma musiquinha interna e dançar aquilo sem que as pessoas saibam qual é o estímulo, fazer uma banda e trabalhar com os instrumentos, ouvir uma música e montar uma coreografia.

Enfim, as pessoas preparam-se para expor o seu número, pois a dona do circo iria chegar ao final do processo para fazer a seleção. No final do curso, tivemos a estrutura de um espetáculo de iniciação. No último dia do curso de 30 horas, todos os participantes estavam com o clown iniciado e sem mais aquela diferença entre atores e professores. Percebi que os clowns dos professores e dos atores eram semelhantes.

Aí estaria o meu papel: fazer-me compreender em mim, repensar o meu processo, as minhas dificuldades, a luta para entender, as confusões. Percebi que tinha que dispensar o distanciamento e simplesmente olhar para o outro como para mim mesma. Eu tive dificuldades, mas foi a partir delas que eu pude começar a compreender que não haviam sido em vão. Agora, minha proximidade com o aluno substituiria o meu antigo vazio, aquele de não saber o que era clown. Hoje, percebo que a gente nunca sabe, mas segue um caminho de busca, sempre. O clown nunca está pronto e nunca é totalmente compreensível, ele é um mistério. Desde o momento em que a dificuldade fez-se aliada de mim e do mistério. Tento ensinar e doar tudo o que posso sobre clowns aos alunos.

Comecei a trabalhar com o que eu não entendia nas pessoas. Não o que elas não mostravam, mas uma expressão escondida: como elas poderiam mostrar que sabiam o que não sabiam. Pensei que poderia atuar onde elas não sabiam, aí entraria a minha contribuição. Um dia eu soube o que era não ser e isso era muito frágil para mim, mas justamente daí tirei a minha força.

O desafio criou, então, a possibilidade do desenvolvimento de um processo de ensino. Eu o sabia pela minha própria experiência, pelo que eu havia visto e compreendido, do que vi e vivenciei. Mas como poderia fazer a afirmação de que isso é ou não é clown? Perceber o outro a partir do meu próprio clown foi o que fiz. É pensando não a partir dessa experiência que eu gostaria de entender o trabalho. O clown não está pronto do dia para a noite; ele é uma essência com um conteúdo de criação do conhecimento e seu aprendizado é constante.

No ano seguinte, 1998, fui novamente convidada para mais uma iniciação de clowns e manutenção do trabalho de clown em Santa Maria-RS-Brasil. Da mesma forma, constatei que eu poderia definir elementos clownescos na expressão das pessoas e apontar qual era a dificuldade para alguns se tornarem clowns e outros não. Nesse percurso de iniciadora de clowns, percebi que conseguia iniciar o

LUME, pois no método de iniciação existia um distanciamento dos iniciadores em relação aos iniciados. A posição do Monsieur é de atribuir ao neófito a revelação do seu clown. O Monsieur deseja que o clown se mostre. Mas como mostrar algo que ainda não sabemos o que é? Por meio do processo, percebi que poderia tentar entender junto aos iniciados esse desejo. Quando fui iniciar os clowns em Santa Maria, tive a intenção de ensinar e de observar esse processo de como ser um

clown, envolvendo-me ao invés de me distanciar.

Contudo, outras perguntas sempre pairariam no ar: por que as pessoas me pedem para iniciar os clowns? Por que escolhem o clown? Imaginei que poderia estar partilhando e contribuindo com a pesquisa, dentro da linha clownesca do LUME, com mais uma possibilidade de iniciar clowns. Isso foi muito interessante, embora não fosse prioridade; afinal eu tinha a pesquisa com as técnicas Mímese Corpórea e a Voz como grandes paixões minhas.

A partir da problemática de ensinar o neófito a aprender o que é clown é que dou início à sistematização de um processo de criação, para o qual tive de criar termos, os quais definirei mais adiante, aliados à minha forma de ensinar. Com a experiência do primeiro curso e as questões elaboradas sobre o mesmo, começo a refletir sobre como eu ensino e como as pessoas aprendem o clown. Comecei a tentar alcançar o íntimo da pessoa, percebê-la, tal qual diz Hillman (1997), “ser é ser percebido” – percebendo o ser para perceber o clown. Quando o clown é ser, ele é percebido, senão ele não é ele mesmo, não é clown.

Após as experiências acima, comecei a iniciação de clown e a orientação de trabalhos na cidade de Porto Alegre, durante um ano. O segundo sonho de grande relevância que tive foi quando já morava no Rio Grande do Sul. Sonhei com Burnier que, rindo e muito feliz, deu-me um forte abraço e disse que me queria dar uma coisa. Deitei a cabeça no seu ombro. Eu pensava, no momento do sonho, e não sabia se ele tinha voltado de verdade, mas sabia que eu havia me encontrado com ele mais uma vez. Aquilo me emocionou muito e comecei a lembrar a presença ausente daquele momento. Ele sempre nos abraçava quando o trabalho mexia demais com a gente. Tudo seria bem diferente se ele estivesse aqui. Naquela época, trabalhando com ele, toda preocupação era criar, pois ele era o suporte do restante. Acordei pensando muito em Burnier, na sua morte, no sonho e em como ele desapareceu dentro de uma floresta imensa. Naquela noite, a sua aparição ofertou- me um valioso presente, para um recomeço da minha vida que estava se esvaindo

de mim e na qual eu voltei a crer – a ausência do mestre é uma presença. E acredito que o ensinamento e o aprendizado pertencem àqueles que creem que o ensinamento pode ser compartilhado e presente em tudo o que fazemos. Naquele momento de sombra, comecei a vislumbrar a possibilidade de ser escolhida.

Tempos depois, quando eu já havia me desligado do LUME, em 1999, convidaram-me para reiniciar um trabalho de clown na cidade de Porto Alegre. Senti que o chamado ainda permanecia, pois a voz dos clowns que desejavam nascer chamava por mim.

Anos depois, retorno para o doutorado em Artes da Cena para validar um trabalho de pesquisa com temática comicizada, retornando ao chamado para que a arte de ator seja contemplada com a presença do clownesco e da encarnação da máscara como presença viva de mobilidade da comicidade no corpo do ator.

Atualmente, sou docente do Curso de Teatro-IARTE da Universidade Federal de Uberlândia-UFU. Atuo na área de interpretação, ministro disciplinas de Interpretação com enfoque em Comédia, além de optativas de iniciação ao clown e iniciação do clown no contexto hospitalar. Além dessas, coordeno um projeto de extensão denominado “Pediatras do Riso”, o qual propõe visitas semanais ao HC com os alunos iniciados como palhaços nas disciplinas citadas.

Retornei à imagem do sonho: Ela sempre revelava

a mesma voz de confiança,

a voz do mestre, me desafiando a

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Um Movimento Clownesco

Apesar de, às vezes, parecer de fora como se nós fossemos a mesma coisa na realidade, sempre mudando, mas lentamente, nós somos como o mar. O movimento das ondas acima é mais visível que as correntes abaixo, mas, apesar disso, há um movimento na profundidade. Mesmo que, de tempos em tempos, nós levantemos nossas cabeças acima da água, rapidamente retornamos ao “forte” fluxo constante da corrente implícita. (LECOQ, 2001).34