• Nenhum resultado encontrado

Os mestres e a iniciação

1 Introdução

4.5 Os mestres e a iniciação

O tempo passou, mas eu não perdia uma oportunidade de estar em contato com o palco. Já na adolescência, no Ginásio, com os meus 14 anos, tenho lembranças de quando montei uma outra coreografia com palhaços. Havia torta na cara e tudo. Fiz a maquiagem de todos os palhaços, mais de trinta ao todo. Com 15, participei de um grupo de teatro na cidade e percebi que queria ser atriz. Mais tarde, na minha primeira oficina, percebi que estava no caminho certo. Recebi um incentivo do ator e professor Antônio Januzelli, mais conhecido por “Janô”, que me disse,

seriamente, os aspectos mais importantes sobre o meu trabalho de atriz e que teve, na verdade, uma influência muito importante. Janô tinha uma leveza na forma de compreender, de se relacionar com as pessoas e de fazer entender o quanto é especial o aprendizado do ator. Em meados de 2005, Janô convidou-me para lecionar na mesma universidade32 em que trabalhou como professor responsável pelas disciplinas de expressão corporal e de interpretação. Nesta última, trabalhei, sempre no 1o semestre de cada ano, a iniciação de clown dos alunos.

Naquela época em que eu estava iniciando no teatro, Janô falou da Escola de Arte Dramática na USP, onde atuava como professor. Isso me levou a tomar a decisão de procurar uma escola para fazer um aperfeiçoamento na arte do ator. Prestei vestibular na UNICAMP, na qual escolhi fazer Artes Cênicas. Então, um mundo cheio de novidades e de surpresas surgiu. Ao conhecer Luís Otávio Burnier, fiz uma opção profissional pela linha de pesquisa do LUME, linha essa baseada inicialmente na antropologia teatral de Eugenio Barba. Até hoje, guardo como a mais importante influência e realização profissional, com intensa vida pelos caminhos desafiadores.

Considero Burnier o mestre fraternal, de coração, de corpo e alma, pois ofertou o seu melhor aos atores que tiveram a oportunidade de conviver com ele, ofertou aquilo que ele acreditava ser uma verdade preciosa para o ator e o investimento na pesquisa de técnicas de representação. Sempre correndo contra o tempo, Burnier teve algum para passar tardes comigo no hospital Boldrini, em Campinas, olhando o meu trabalho de clown e conversando com as crianças hospitalizadas. A influência fraterna e ativa do mestre é tão presente que até hoje não me desvinculei dela, pois Burnier ensinou a cada pessoa que trabalhou com ele a possuir a crença no trabalho e a sempre protegê-lo como um tesouro precioso.

Sabemos que fomos iniciados não só no clown, na dança pessoal, na mímese corpórea, mas também em aspectos profundos da vida: na fraternidade, na generosidade que cada um poderia comungar para com o outro (inclusive entre nós, colegas de trabalho, ajudando a todos no que fosse preciso), na maneira de tratar o público, mostrando a própria verdade. Uma relação poética de alcançar a subjetividade do outro e de ter a própria alcançada pelo outro, pelo espectador, em qualquer lugar do mundo; o corpo como uma propriedade do relacionamento

humano, o qual expressa uma língua universal, uma homenagem. Outra influência foi a minha relação com a aparição generosa de Teotônio; o clown desafiador de Ricardo Puccetti que, tocando a sua gaita com toda sua vida causava-me uma profunda dor naquele dia de espetáculo. Soube o que ele sabia quando não queria parar de tocar seu instrumento – uma pequena gaita que soava a dor da despedida. No espetáculo de clown, realizado pelo LUME, “ValefOrmos” (1992), na cena final, era doloroso para Puccetti o momento de terminar e tirar o nariz depois de tudo, depois de uma vida, de mostrar e revelar a sua obra de arte, tendo de entrar novamente na sua pele quotidiana. Eu soube disso naquele momento, mesmo sem saber que, um dia, escolheria o mesmo caminho e sentiria a mesma vontade de não tirar o nariz vermelho no fim de um espetáculo e durante uma vida.

Depois disso, passei a observar os alunos de Burnier trabalhando seus

clowns no corredor do departamento de Artes Cênicas da UNICAMP – Campinas-

SP. Aquilo me fazia largar tudo o que eu estava fazendo e ir atrás deles, tomada por uma aparição. Espiava aquelas pessoas divertindo-se com uma forma diferente de ser. Encontrei-me, um dia, com uma amiga minha e perguntei como eles faziam aquilo. Ela me disse: “É no Retiro”. Eu fiquei imaginando o que seria aquilo, pois ela não me disse muito. Descobri, posteriormente, que Luís Otávio era um iniciador de

clown e pedi a ele que me avisasse quando houvesse um curso. Luís Otávio pediu-

me, então, que lhe enviasse cartas para lembrá-lo de minha intenção. Passei a colocar uma carta por semana no seu escaninho no Departamento de Artes Cênicas da UNICAMP. Fiz isso durante dois semestres. No ano seguinte, ele me avisou de que haveria um curso, em Minas Gerais, nas férias de julho e que eu enviasse ao LUME uma carta de intenção. Aguardei pelo chamado e, até uma semana antes do início do curso, eu não sabia se havia sido selecionada, porém já estava com quatro malas prontas.

Enfim, fui a Sabará. Lembro-me de ter tido um sonho algum tempo antes da ida. Sonhei que eu estava numa praça de uma cidade que não conhecia. Subindo uma montanha, entrei numa igreja enorme, a qual guardava, dentro de si, uma outra igreja. Pensei muitos dias naquilo, até que, por conta das atribulações do dia a dia, acabei esquecendo. Mas em Sabará, cidade onde iria ser realizado o retiro de clown, chegamos a uma praça, subimos um morro e lá estava a igreja dentro da igreja de meu sonho. Lembrei-me, daí, do que Jung (1990) fala sobre acontecimentos sincronísticos nos quais o sentimento de déjà vu [sensação do já visto] baseia-se,

com a oportunidade de verificar em numerosos casos, em uma precognição do sonho e em caso de vigília. Jung denomina de sincronicidade ”o paralelismo de espaço e de significado dos acontecimentos psíquicos e psicofísicos, que nosso conhecimento científico não foi capaz de reduzir a um princípio comum.” Talvez eu já tivesse sido selecionada, naquele sonho, para sonhar a aprender a ser clown, um sonho que me escolheu muito antes de eu saber. Talvez a minha infância e aquele gosto sentido na prática da arte tenham-me levado a perseguir o sonho de me tornar um clown num tempo e espaço qualquer.

O retiro de clown, “O sentido cômico no corpo”, trouxe à vida a “Dolores Dolarria”, uma aspirante a clown. O sonho de infância e o momento da arte adentraram minha vida para ensinar que a criança sabe acreditar na arte e precisa dessa referência para não deixar de sonhar, pois quem cultiva a arte colhe sonho para o resto da vida.

Após a iniciação do clown, passei a atuar com meu trabalho na área de oncologia infantil. Realizei, então, um trabalho de campo, o qual denominei “O Clown Visita-dor”. As perguntas agora eram as pessoas que faziam: “O que um clown faz dentro de um hospital? Como é possível o circo dentro de um hospital?”. Essa possibilidade do “como um está contido no outro” resultou na dissertação de mestrado “O clown visitador no tratamento de crianças hospitalizadas”. O objetivo da interação era trocar o riso com a criança no momento da sua dor e sistematizar procedimentos de atuação do palhaço naquele ambiente hospitalar.

Lembro-me de que, ainda criança, quando as pessoas ficavam doentes em casa, eu gostava de diverti-las fazendo um teatrinho com bonecos na beirada da cama. Retornei a fazer essa mesma atividade no hospital, já quando adulta. É uma coisa dentro da outra: como pode o riso caber na dor? Como cabe um clown em uma criança doente? Foi novamente tentando responder a perguntas como essas que comecei a iniciação do clown das crianças hospitalizadas. A iniciação tinha duas maneiras: uma no próprio leito e outra no picadeiro de clown33. O que procurei fazer na iniciação de clown das crianças passa por um critério diferenciado da iniciação do adulto. O adulto muitas vezes está distanciado da linguagem da lógica primária do

33 Atividade realizada semanalmente, no pátio do Centro de Investigações Onco- Hematológicas Dr.Boldrini, com crianças que vinham para consultas. Para entender melhor o trabalho prático, sugiro a leitura da dissertação de mestrado “O clown visitador no tratamento de crianças hospitalizadas”,1999.

quotidiano, na qual a criança está totalmente imersa: ela entende tudo ao pé da letra. Montei uma estrutura em que as crianças pudessem jogar com seus elementos naturais. Isso quer dizer que elas ensaiaram seus números e criaram a sua aparição no picadeiro, integrando o seu próprio processo criativo de clown com o tratamento.

Assim, iniciava-se, a partir do momento em que se manifestava, a predisposição para atuar no picadeiro. Tive que reviver todo o processo realizado com os pacientes infantis (com a observação de crianças com quatro e cinco anos de idade pelo tempo de um ano) no intuito de compreender onde estava a minha base para ensinar os iniciados nesta pesquisa de doutorado. As pistas para o entendimento atual estão no passado de minhas descobertas na vida de clown, recriadas naquelas crianças por meio de um processo criativo que desvelou, para elas, outra forma de olhar o mundo, tratando o corpo pelo espírito criativo. Tudo isso me forneceu o suporte para observar atualmente a iniciação do clown de um adulto

Realizei, como assistente de Teatro na Fundação Síndrome de Down – Campinas - SP, um outro trabalho, em 1994, com crianças e adolescentes portadores de Síndrome de Down. Realizamos uma estrutura de circo, em que os alunos treinavam números circenses: malabarismo, corda bamba, equilibrismo, danças. Dessas 22 crianças que queriam ser clowns, apenas uma dava continuidade a seu aprendizado fora da escola. Leonardo, o palhaço Anjo, como ele se denominou, fazia assessoria de clown comigo, no LUME. Depois, trabalhei com o

clown de crianças com risco social na Fundação Orsa, fiz apresentação em APAES,

escolas, ruas, casas de família, favelas, praças, ônibus, postos de saúde, hotel, mercado municipal. Todas essas oportunidades fizeram com que o clown tomasse conta de meu mundo, que, por sua vez, cada vez mais tomou conta do clown. Comecei a realizar palestras e demonstrações artísticas e, numa dessas palestras, na Universidade Federal de Santa Maria, fiz contato com Rozane Cardozo, que me convidou para realizar o meu primeiro curso de clown para professores na Universidade.