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1 Introdução

6.5 Ritos preambulares

1º momento circular: rodas dos andares

Sentamos em roda, em círculo, para propor um estado de concentração absoluta, pois a mandala de energia ou círculo mágico, na perspectiva de Jung (2008), representa simbolicamente a luta pela unidade total do eu, então respeitando essa premissa. Respeitamos que naquele circulo acontece um batalha interior, uma luta interna para a passagem ao território clownesco .

Primeiramente, há uma preleção sobre os princípios e o objetivo principal do exercício para que o grupo compreenda e mantenha um estado de muita concentração no colega que vai ao centro da roda. Cada participante passará pela atividade e será observado atentamente. O neófito, ao centro, precisa sentir-se acolhido pela roda para expressar-se em segurança, pelo olhar externo do espectador. O objetivo da roda é dar visibilidade para que o aprendiz demonstre como é seu andar cotidiano

O procedimento a seguir é que cada participante, na sua vez, deve ser levantar e caminhar normalmente, dentro do círculo, em todas as direções, como se estivesse andando na rua, indo ao banco ou caminhando com velocidades variadas, permitindo que os outros participantes observem seu modo de andar, especificamente a pisada no chão.

Cada pessoa tem um modo pessoal de andar; é basicamente uma forma de a pessoa posicionar sua postura. Por exemplo, uma mão balança mais que a outra, a cabeça está sempre mais à frente do pescoço, o pé abre apontando para fora, há um gingado diferente etc. Esses elementos são observados, e, com o decorrer do tempo do exercício, começo a ressaltar essas qualidades expostas e

peço aos participantes que ajudem aquele corpo que está sendo observado com algumas sugestões no sentido de ver aquilo que pode ser dilatado. Esse é um exercício em que todos ajudam a todos na observação do corpo, abrindo um caminho para que se reflita sobre a corporeidade do outro.

Todos que passam pela roda contribuem com a investigação da forma de pisar e do modo de andar dos outros colegas, descrevendo verbalmente o que observa. A princípio, o foco de observação é na pisada, ou melhor, em como a sola do pé entra em contato com o chão, por exemplo, se pisa mais com a borda externa do pé esquerdo, se pisa mais com o calcanhar e passa o pé inteiro pelo chão. Após determinar uma característica para a pisada daquele aprendiz, solicita-se que amplie, dilate, exagere. Assim, uma pessoa que anda apoiando os pés mais na borda interna do calcanhar pode evidenciá-lo e, em decorrência desse movimento evidenciado, a estrutura articular do corpo altera-se; assim, todos os outros segmentos, ao moverem-se, propiciam uma forma diferenciada de deslocamento, em que a qualidade do andar tem proximidade com uma noção cômica. A maioria dos andares alterados para essa qualidade tornam-se projetados externamente, mas não mecanizados; assim, descrevendo um exemplo, o peito para frente, a nádega para trás, um braço que balança mais que o outro etc., delineando um tipo de andar de base. Denominamos um andar de base ou matriz aquele que é construído a partir da observação do grupo. Esse andar será memorizado, fixado. O andar matriz pode ter características exageradas ou minimizadas, mas somente o experimento com outras dinâmicas indicará outras nuances, revelando outras qualidades de movimento.

Trata-se de um processo de observação muito detalhista, refinado, em que todos começam a observar o outro e a ajudar na construção do movimento corporal alheio. Não só a pessoa que observa sente vontade de rir, mas a própria pessoa que está na berlinda ri de si mesma ao perceber que a sua maneira de andar dilatada é muito estranha, que causa estranhamento, revelando a essência cômica.

Após já ter andado na roda, peço ao aprendiz que fique parado em pé, de frente para os outros colegas, ambos observando-se. O olhar perceptivo tem o objetivo de elucidar, em cada um, alguma característica física que chame a atenção no outro ou que seja “engraçada”. Exemplificando: uma orelha demasiadamente grande, nariz disforme, boca pequena ou lábios demasiadamente grandes, dentes

que sobressaem em relação aos lábios, pernas muito finas, panturrilhas muito volumosas. Após a investigação da comicidade corporal exposta, experimentam que tipo de sensação essa produz para cada um, internamente. Durante o processo, todos são participantes, observados ou observadores.

2º momento circular : a dança cômica

A mesma orientação dada na roda anterior é verbalizada aos aprendizes, para que se sentem no círculo e ouçam as regras. O neófito posiciona-se no centro, recupera a memória do corpo da roda dos andares, fecha os olhos e inicia o movimento. Após alguns minutos de uma dança de ações iniciada, as músicas do “Suite for Flute and Jazz Piano”, de Jean Pierre Rampal e Claude Bolling, estímulo sonoro para que o aprendiz dance. A proposta é que não é preciso dançar o ritmo da música, mas sim, que deixe a música simplesmente ser uma companhia. Assim que o aprendiz começa a desenvolver uma movimentação no seu corpo, peço-lhe que abra os olhos e dance para a primeira pessoa que estiver à sua frente e que tente olhar dentro dos olhos da outra pessoa, dançando sem abandonar o foco nos olhos, entregando a sua pessoa com toda a sua força e vontade como um presente de amor. Esse momento é único, é uma dança única, é a dança da vida, que só será feita naquele momento e não mais, mostrando quem se é para cada um, sem pensar, dançando sem críticas, simplesmente se mostrando, revelando suas emoções, seus fracassos, suas dores, alegrias, felicidade, momentos difíceis. Expressar-se integralmente corpo, alma e desejo. Nesse instante, a comunicação é não-verbal, é gestual .

A minha voz narra: “Agora é a vez do corpo integrado com o outro. Dentro dos olhos, existe um mundo, uma janela para o outro lado do outro, onde nós podemos ver em profundidade, tentando criar um momento de extremo e particular significado para a pessoa que se vê, em que ela é o foco das atenções dentro do olhar do outro, do público, daquele que está compartilhando a sua vida. É um momento ímpar, que não será repetido durante o processo.”

O principal objetivo desse exercício é a partilha de si mesmo com o outro, que começa a ser o seu primeiro público, bem como sua iniciação com o mesmo.

A roda tem um significado interessante de acordo com alguns experimentos nos cursos já realizados. Percebe-se que o formato circular pode imprimir força. Ela é, de uma certa forma, construída por pessoas presentes,

desenhada com os corpos dos aprendizes, uma mandala vida. Trata-se de onde é realizada a dança da vida. As imagens dos corpos mostram algumas vezes dança, outras um andar, outras saltos, tentativas de se expressar para o outro, de expressar o ser humano que se é. A voz acrescenta ao aprendizes em processo no exercício que “Somos pessoas que queremos aqui mostrar nossa particularidade, sem interferência alguma; suspendemos o tempo, o espaço e a nós mesmos; você é agora, aqui, o que quer mostrar que é; um momento único, no qual se dança tudo, se faz tudo, mostrando silenciosamente todos os gritos de prazer e de dor, a expressão de si em si, a expressão de um momento parado, um momento suspenso para se deixar abandonar na solidão de si, de existir em comunhão com todos os presentes”.

Ao final do experimento ritual, o neófito, volta para o centro da roda, fecha os olhos e continua sua dança. Vou abaixando o som e entro no círculo, aproximo- me da pessoa, falo baixinho, próximo ao seu ouvido, pergunto a ela se já havia dançado daquela forma antes, e como fora a intensidade da sua dança; falo a ela que esse fora seu batismo de clown, perguntando a ela se tivera a sensação de ter trazido ao corpo, de ter corpado, algum tipo de energia que se aproxima da noção cômica; se isso tiver ocorrido, peço que memorize; se não, peço que guarde o trabalho e os olhos dos outros colegas como uma sensação preambular de proximidade com o plateia. Depois disso, abraçamo-no e agradeço-lhe o que fez. Ela volta a sentar na roda outra vez. Outro participante vai para o roda e recomeça o processo. Quando todos terminam suas danças, ficamos em pé, abraçamo-nos e terminamos o ritual. Peço novamente que as pessoas anotem e guardem na memória corporal as sensações, sentimentos, emoções, olhares, noções preambulares da comicidade físicalizada; por último, as reações das pessoas fora da roda e a própria percepção como membro da roda.

O experimento ritual ajuda o neófito a compreender de forma sensível a liberdade que ele terá com relação a desenvolver uma noção do clownesco a partir de sua própria investigação. A única pessoa que pode revelar o clown pessoal é a própria pessoa, que o tem como sua referência do que é clown para si, o que ela percebe em si. Qual a sensação? O que adentra e é adentrado por ela?

Procura-se com essa prática aproximar o neófito da compreensão do que é clown no corpo do outro; colocar-se em seu lugar, entendê-lo e mostrar para o participante quais os caminhos para o clown. Tratamos aqui a questão autoral do

clown. Em cada ação corporal existe uma autoria criadora que aparenta uma intenção de ser engraçada, refaz-se a mesma e memoriza-se no corpo.

Pode-se entender a dança cômica como uma das partes da composição do rito de passagem, por meio da qual todos devem dançar até conseguir abandonar-se, conseguir criar a movimentação do seu corpo cômico, uma dança das profundezas, da liberdade de ser ridículo; é uma dança única, inusitada por nunca ter sido dançada. É um momento exclusivo, inédito, único. Dança-se naquele momento até despontar no corpo do participante a sua própria dança cômica, num primeiro instante, de olhos fechados, depois abrindo-os para que esse olhar penetre nos olhos dos outros que estão no entorno da roda. Todos devem receber a dança com muito respeito, pois ela é uma doação de quem está dançando, um ato de entrega de toda a sua pessoa. O clown precisa disso e precisa ser acolhido. No momento em que ele se sente acolhido, começa a liberar a dança cômica integralmente, com toda a sua verdade, sem medo de ser ridículo, sem medo de ser feio, de dançar estranho e diferente do padrão.

A dança, nesse sentido, é um experimento individual de “dançar a si mesmo”, com toda vontade, dançar por dançar, sem conter os movimentos, como um escrita corporal, aleatória em relação aos movimentos no espaço. Transcendendo o corpo que pensa, aparece a dança pessoal, que consegue corpar a imanência clownesca. Da dança cômica do corpo, das energias transgressoras, inusitadas, engraçadas, palhacescas, vamos ao território ritual que leva ao aparecimento do corpo em processo criativo de comicidade, em que os pequenos impulsos e lapsos de movimentos involuntários revelam as primeiras manifestações significativas cômicas no balançar corpóreo, como se olhássemos uma imagem desfocada do clown em devir. É a dança do corpo desnudado das formas codificadas, sem modelos, a dança da comicidade de um corpo que, ao atingir o seu auge, faz perder a noção de tempo e de espaço, penetrando num estado de transição da pessoa física para persona clown. Após, vem a minha verbalização para que o iniciado perceba esse estado latente, estado perceptivo que será considerado como o batismo da iniciação. Em sequência, partimos para a memorização desse momento, em que o neófito vai finalizando a dança, de olhos fechados, percebendo como está o corpo, o corpo latejante da dança, e sendo acolhido por mim. Pergunto, cochichando no ouvido do iniciado, se ele já havia dançado dessa forma e se essa forma lhe fez bem, se ele sabia que essa dança foi

o seu batismo de clown e se ele conseguiu conquistar o tesouro à procura do qual está. Estabelecendo um diálogo interno consigo mesmo e com sua dança, com o espaço, com o outro, tento perceber se o espectador se modificou e se foi atingido pela dança do novo clown.

A exercício da roda dos andares é um momento significativo à criação, pois os iniciados fazem coisas hilariantes nesse instante, estabelecendo um código interno de percepção concreta com a sua comicidade física, pessoal e intransferível.