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Travessia da corda bamba

1 Introdução

6.2 Preliminares

6.3.5 Travessia da corda bamba

A introdução do exercício da corda bamba dá-se pela brincadeira de pular corda, que promove o contato com o objeto, apresentando-nos certos desafios corpóreos ligados à precisão e à destreza. Pensar no como entrar, às vezes, dificulta a entrada. A proposta é que pulem e não pensem, deixem o corpo achar a lógica da corda associada ao corpo. Essa brincadeira é realizada só uma vez no curso, tem começo, meio e fim.

O exercício dá-se da seguinte forma: fazemos uma fila e começamos a bater a corda; peço que os participantes passem pela corda sem pular; em seguida, peço que pulem uma vez, depois duas, três, quatro, cinco, seis vezes; as formas de pular são as mais diferenciadas, pois cada participante pula como quer, entra na corda do jeito que prefere; em seguida, batemos a corda mais rápido, “foguinho”; então, fazemos cobrinha no chão para que as pessoas saltem.

Alguns, apesar da dificuldade de entrar na corda, não desistem de pular; com muita criatividade, todos pulam à sua maneira. Aqueles que não conseguem, recebem ajuda do grupo, que forma uma torcida naturalmente, sem que se peça para fazer isso. Dá-se apoio àquele que está em dificuldade. Tudo isso é feito com a intenção de promover um aquecimento corporal para o exercício seguinte, o da corda bamba.

A travessia é feita num primeiro momento por todos os participantes, equilibrando-se como se fosse uma corda bamba de verdade, mas ali ela é posta no chão. De olhos abertos, os participantes cruzam a corda de um lado ao outro. Esse contato tem por objetivo criar uma familiaridade do pé com a corda, dando base para o outro momento de passar na corda. Todos passam e brincam com a imagem de uma corda bamba de verdade. Após a passagem de todos, peço que se sentem e que se preparem para a seguinte etapa, que é andar na corda com os olhos vendados.

Peço um voluntário e vou buscá-lo; seus olhos são vendados e levo-o ao início da corda para que faça a travessia sozinho. Ele pisa com os pés descalços na corda. Faço algumas perguntas: qual o nome, CIC, RG, se a família sabe que ele está ali e que vai fazer a travessia. Em seguida, solto a sua mão e ele fica só. Em

seguida, anuncio o número e o nome do artista da corda bamba, invento uma nacionalidade para ele e um nome artístico, como, por exemplo:

Senhoras e senhores, com vocês o grande corda bambista Fredo, “o Grande”, ele vem da Grécia, vai atravessar a Av. Paulista a 500 metros de altura. Se ele cair, não sobreviverá, pois realizará sua travessia sem rede de proteção.

Em seguida, peço silêncio.

A regra é que, se a pessoa cai, deve segurar-se na corda de qualquer forma – com as mãos, com os pés – e sempre estar com alguma parte do corpo ligada à corda. Quando não consegue sair do lugar, vou dando comandos de voz, encorajando o participante ou pedindo ajuda à torcida para se concentrar na travessia do outro e, algumas vezes, peço incentivos em voz baixa, torcendo para que o neófito consiga atravessar. Caso seja muito difícil, apoio o participante, dando- lhe a minha mão.

Durante e após a travessia, peço ao participante que guarde, na sua memória, como seu corpo reagiu no momento em que andava pela corda bamba. Apresentam-se as situações mais variadas: uns atravessam rapidamente, outros com dificuldade e caem muito, outros com classe, alguns não conseguem atravessar e pedem ajuda. Esse é um exercício simbólico em certo sentido, pois coloca o participante em contato com desafios, com o desconhecido. Fazer algo de olhos abertos é muitas vezes simples, mas, ao fechar os olhos, tudo pode mudar: o corpo perde algumas referências espaciais e tem de agir de outra forma, mostrando ações e movimentos não codificados, surpreendentes. É o que acontece quando estamos em público: a reação do público, como a nossa, é inesperada.

Na corda bamba, de olhos fechados, o corpo em espasmos, reações algumas vezes engraçadas, mostra o desequilíbrio, reage livremente ao perigo, à necessidade do momento. Peço que retomem a sensação do corpo da travessia e tentem fazê-la com os olhos abertos. Essa situação é imprevisível. O participante está entre o abismo e a conquista, a conquista de uma travessia em busca de seu

clown, em busca de seu objetivo, em busca do seu desejo.

Depois, num segundo momento, peço aos participantes que fechem os olhos novamente e tentem recuperar, na memória corporal, o momento da sua travessia.

Prestar atenção naquele instante é recuperar a dinâmica do corpo que, sem pressupostos, teve de passar por uma determinada situação sem ter onde se apegar. Vamos transformando essa sensação num andar, por exemplo, numa ação física, numa forma de olhar, etc., passando para outras situações essa sensação e essa percepção corporal do desequilíbrio, do corpo emitindo ações não programadas e não esperadas. São ações que estão no imediato, como aquelas que emitimos como forma de defesa numa situação de pânico ou perigo. Tudo isso está diretamente ligado ao processo de criação do clown, contribuindo para a configuração da “desforma” inesperada do corpo.

6.4 “Desforma”, sem forma

“Desforma” é uma atividade para ser praticada pelos aprendizes, parte de composição de um exercício que pode ser realizado de preferência no escuro ou na penumbra. É parte integrante do exercício da subida da montanha. Os alunos começam a subida da montanha por uma trilha estreita e, num determinado momento, entram numa floresta. Os participantes passeiam por uma floresta imaginária, entram em vales desconhecidos e à noite se transformam em seres sem formato. Nesse momento, interessa a vivência da proposta, que entrem num estado de “desforma” durante o tempo da duração do exercício. A “desformação” do corpo proporciona a não-forma num primeiro momento. Os neófitos penetram na floresta e, seguindo as instruções da voz da mestre que conduz o processo ritual, submetem- se a experimentar a noção de um corpo sem forma, “desforme”. Vivenciam esse momento por meio dessa noção na intenção de subtrair as referências do mundo social, da identidade pessoal. Individualmente, são livres para agir a partir da interação com o inusitado. Depois de um tempo, encontram-se com os outros “desformados” e compõem um grande grupo onde de olhos fechados, sentindo a presença uns dos outros; a partir disso, interagem com a ausência da linguagem verbal. Divididos em dois, cada grupo vai dormir por um tempo; ao serem despertados pela voz da iniciadora, que passa a dar algumas instruções para que passem a viver juntos, criam um som para o grupo, um vocabulário não verbal, estabelecem uma comunicação com os próprios membros do grupo sem usar gestos do cotidiano, mas uma língua “desforme”. Em seguida, inventam uma música “desforme” para marcar o território do clã. Os membros de cada grupo desenvolvem várias situações durante um tempo determinado, neste criam uma identidade de

grupo, de família, de gangue, etc. Essa proposta de “desformar” o conhecimento é inserida desde o primeiro momento de entrada no processo ritual, no estado liminar, até o dia anterior ao nascimento do clown.

A passagem ao mundo subterrâneo onde moram os “desformados” é feita através de uma caverna (buraco imaginário), na qual o despertar é realizado durante a noite, para as atividades mais inusitadas, desde encontrar alimento para matar a fome até para uma disputa física como por exemplo um campeonato de dança do horrível, estabelecendo um prêmio em alimento para o grupo ganhador. Aquele que conseguir dançar mais “disformemente” levará um saco de comida para saciar a fome . Os dois grupos vivem entocados em seus buracos, todos juntos, dormindo e vivendo agarrados uns aos outros em famílias sem forma, que não falam uma língua articulada, mas que descobrem sons sem forma, comunicam-se de maneira “desforme”. A única coisa familiar entre eles é a comunicação através da qual o clã é marcado. Cada participante vai estabelecer livremente como quer ser, qual a “desforma” que vai assumir, sem forma corporal, bem como criar um som horrível, em comum, com que vai tentar interagir com o outro do grupo.

Cada participante estabelece a sua “desformidade”. Cada grupo pode ocupar ou roubar o lugar do outro grupo, ocupar a posição do outro, roubar membros. Pode disputar o poder.

Na verdade, tudo parte para inverter a ordem, virar no avesso, propor o estranho e, pela sensação que isso provoca, o exercício é feito por meio da condução da voz da iniciadora, condução esta que propicia uma vivência da corporalidade horrível, estranha, até atingir a “desformação” pessoal.

Os grupos também desenvolvem um tema um grito de guerra, com gemidos, urros, suspiros, escatologias e gramelots. Cada grupo faz a sua demonstração individualmente, provocando a ira do outro. Depois, os dois grupos encontram-se para se desafiarem. Quem conseguir apresentar com mais intensidade o horrível vence a disputa.

O concurso de dança do horrível, muitas vezes, é tão estranhamente engraçado, ridículo, patético, que provoca o riso nos grupos adversários. Uma dança-tribal, ao mesmo tempo, une o grupo e passa a ser o mote de desafio aos adversários. A desforma, embora pareça tecer aproximações conceituais com o Bufão ou a gangue de Bufões, assunto abordado em Burnier( 2001, p. 207), pode usar a estrutura de grupo, mas não desenvolve no neófito o princípio da deformação,

ou melhor desenvolve um estado ou noção de esvaziamento das formas como desmodelagem corporal.

Durante o estado de disputa, músicas do grupo Red Hot Chili Peppers e do Chico Science servem como pano de fundo para a dança da desforma. Os dois grupos têm um espaço entre eles para a apresentação. Cada membro de grupos opostos vai ao centro e faz a sua demonstração; assim, sucessivamente, todos os participantes vão ao centro e desafiam os outros. Quando todos os participantes terminam a sua demonstração, dançam todos ao mesmo tempo, estabelecendo um verdadeiro caos. Nesse momento, a voz da iniciadora avisa que a polícia chegou e pergunta aos participantes se eram eles que estavam dançando àquela hora da noite, fazendo algazarra, gritaria e confusão. Em alguns experimentos, os “desformados” acusam os colegas do grupo adversário de estar bagunçando e perturbando a ordem da floresta naquela hora da noite. Assim, sem ganhar, nem perder, mas com fome, correm para seus buracos e vão dormir, todos juntos, grudados, obedecendo o comando de voz da mestre de iniciação.

O guarda florestal, representado por mim, tenta restabelecer a ordem, dizendo a eles que evacuem aquela floresta, que se metam em seus buracos e que durmam profundamente.

Após alguns minutos, outro comando de voz é dado para que comecem a voltar para a sala de trabalho. Aos poucos, começam a despertar, pois o dia já vem raiando, o sol começa a clarear tudo. Peço a eles que abram os olhos e tentem guardar a sensação.

A palavra “desforma” foi encontrada na prática de trabalho, após serem experimentados outros termos para o exercício da caverna, tais como “deformar” ou “desconstruir” o corpo. Essas palavras não produziram sentido para os neófitos, eram elementos não reagentes, não causaram qualquer ação ou manifestação no corpo. Já a palavra “desforma” criou uma certa condição ativa. Foi palavra-chave que estimulou e que contribuiu com elaboração do processo, no sentido de que o corpo interagiu com o inesperado e com o surgimento de ações inéditas e momentâneas, de que o corpo sempre se relacionava com o chão, buscando se espalhar no mesmo. Esse momento do curso era o único em que os aprendizes não se portavam eretos, mas curvados ou no nível médio.

A “desforma” dos corpos, embora produza uma semelhança externa com a característica física ou linguagem verbal destorcida como em uma figura grotesca,

como por exemplo o bufão, não possui a mesma intencionalidade, já que o desformado é criado e recriado a partir da não ancoragem em referências em técnicas pré-existentes . O termo bufão não foi utilizado como forma de estimular a vivência e a elucidação de princípios inéditos para o aprendiz; suspendendo referências quotidianas conhecidas ou experimentadas em outros contextos, para despertar a busca de uma lógica particular criativa inusitada, a inventividade clownesca .

6.5 Ritos preambulares : a roda dos andares e a dança do olhar ou