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CAPÍTULO II – REVISÃO DA LITERATURA

2. A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989

2.3. Princípios Gerais

2.3.2. Interesse Superior da Criança

Outro princípio constante da Convenção sobre os Direitos da Criança é o princípio do interesse superior da criança48. Este princípio determina que todas as decisões tomadas pelas autoridades de um Estado e que afectem crianças, devem ter como consideração primordial o interesse superior da criança. Este princípio aplica-se às decisões tomadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, tribunais, autoridades administrativas, orgãos legislativos e pela família da criança, que deverão sempre ter o interesse superior da criança como uma preocupação primordial.

Para Pais (1999), o facto deste princípio constar da Convenção, veio cristalizar a concepção da criança como um ser autónomo. Conforme refere a autora “ It has placed the child at the centre ot the equation, on behalf of whom and because of whom decisions must be taken and taken in a particular direction” (Pais, 1999, p. 11).

O princípio do interesse superior da criança é um princípio geral de direito e, como tal, é uma fonte de interpretação do Direito Internacional, conforme consta no Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça (cfr. Monteiro, 2002, p. 146)49.

Para Monteiro (2002), já na Declaração de Genebra de 1924, existia um embrião deste princípio ao proclamar-se que “ A criança deve ser a primeira a receber socorro em tempo de perigo”50. Contudo, é na Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU de 1959, que, pela primeira vez, vem expresso este princípio, ao referir-se que “ A criança gozará de protecção especial (...). Na instituição das leis visando este objectivo levar-se-ão em conta, sobretudo, os melhores interesses da criança”51.

Na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, o princípio ganha uma particular acuidade, traduzindo o relevo dado pela Convenção à criança, sendo o seu interesse superior, considerado sempre um guia de referência.

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Art. 3º;

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Art. 38º, al) e);

50

Art. 3º;

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Para Alston (1994, pp. 15-16) a previsão do princípio do interesse superior da criança na Convenção sobre os Direitos da Criança, tem três funções: a primeira função é, conjuntamente com outras disposições insertas na Convenção, a de apoiar, justificar ou esclarecer determinadas abordagens de certas questões à luz da Convenção. Neste sentido, Alston (1994) refere que “ In this context, it is an aid to construction as well an element which needs to be taken fully into account in implementing other rights” (p. 16); a segunda função é a de servir de princípio orientador na resolução de conflitos de interpretação que ocorram entre diferentes direitos; a terceira função é a de servir de instrumento de avaliação das leis, das decisões administrativas e das práticas existentes nos Estados que ratificaram a Convenção.

Qualquer interpretação do conceito do “ interesse superior da criança” tem que ser feita no espírito da Convenção, tendo em conta o facto de se considerar a criança como um indivíduo, dotado de autonomia, com ideias e sentimentos próprios e na consideração de que a criança é um sujeito titular de direitos civis e políticos, bem como do direito a uma protecção especial.

Alguns autores realçam o facto do conceito do “interesse superior da criança” poder ser interpretado à luz de um certo relativismo cultural. Nesse sentido, Monteiro (2002) refere que o princípio do interesse superior da criança “ Poderá, pois, servir de cavalo de Tróia do relativismo e preconceitos culturais” (p. 149). Pretende o autor dizer com esta afirmação, que na interpretação daquele princípio, os Estados poderão atender às tradições culturais existentes no seio das suas sociedades e ao modo como elas encaram as crianças, podendo desvirtuar a sua aplicação. O autor reforça esta ideia do relativismo cultural na interpretação do conceito, com o facto do Preâmbulo da Convenção salientar “... a importância das tradições e valores culturais de cada povo para a protecção e o desenvolvimento harmonioso da criança”.

Alston (1994) salienta que, em muitos países, são usados argumentos de carácter cultural para justificar a rejeição dos direitos das crianças. Com efeito, para o autor:

They include arguments designed to defend the full range of practices relating to female circumcision, to justify the non-education of lower class or caste children,

or to justify the exclusion of girls from educational and otther opportunities which would make them less sought after in marriage. (Alston, 1994, p. 20)

Contudo, os Estados não podem interpretar o princípio de uma forma relativista, atendendo às suas tradições e princípios culturais, e à forma como a sua sociedade encara as crianças, não podendo deixar de reconhecer e assegurar os direitos que são reconhecidos pela Convenção (cfr. Hodgkin e Newell, 1998, p. 40).

O princípio deve ser interpretado, tendo em conta os restantes princípios da Convenção como um conjunto. Contudo, pela redacção do princípio constante da Convenção, depreende-se que o interesse superior da criança não deverá ser o único requisito a ser tido em conta, na tomada de decisões que lhe digam respeito. Segundo Hodgkin e Newell (1998), podem ocorrer situações em que diferentes direitos humanos entrem em conflito, como por exemplo, entre duas crianças, entre diferentes grupos de crianças ou entre crianças e adultos. Neste caso, os interesses da criança devem ser ponderados. Segundo aqueles autores, “ It needs to be demonstrated that children’s interests have been explored and taken into account as a primary consideration” (Hodgkin e Newell, 1998, p. 40).

O Comité dos Direitos da Criança considera que os Estados, quando adoptarem as medidas legislativas, administrativas e outras necessárias à realização dos direitos reconhecidos na Convenção52, deverão ter sempre em conta o princípio do interesse superior da criança. O mesmo deverá ocorrer na tomada de decisões que afectem as crianças, na afectação dos recursos materiais e humanos e na adopção das políticas a nível da administração central e local, destinadas a implementar os direitos das crianças (cfr. Hodgkin e Newell, 1998, p. 41).

Nesta perspectiva, deverão ser desenvolvidos mecanismos para avaliar o impacto sobre as crianças, das acções do governo, devendo os resultados dessa avaliação serem tidos em conta nas diversas opções políticas tomadas pelos Estados.

Também o Comité dos Direitos da Criança refere que os Estados deverão preparar um plano nacional com medidas destinadas às crianças, em que os princípios gerais da

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Convenção estejam implícitos, considerando que esta deve ser uma tarefa prioritária (cfr. Hodgkin e Newell, 1998, p. 41.

No orçamento dos Estados, bem como das entidades locais, devem estar previstas o máximo de receitas que se possam disponibilizar, destinadas a implementar programas e a disponibilizar serviços destinados às crianças, tendo-se sempre em conta na afectação dessas receitas, o princípio do interesse superior da criança. O Comité recomenda que essas receitas devem destinar-se a áreas prioritárias como a educação e a saúde, devendo ser dada especial atenção às crianças pertencentes a grupos mais vulneráveis, que deverão ser objecto de medidas de discriminação positiva (cfr. Hodgkin e Newell, 1998, p. 41). O Comité dos Direitos das Crianças ainda recomenda que os Estados devem tomar medidas no sentido de diminuir os efeitos adversos das políticas económicas e sociais que possam afectar as crianças, principalmente as pertencentes aos grupos mais vulneráveis (cfr. Hodgkin e Newell, 1998, p. 41).

Atendendo ao facto de que o conceito de interesse superior da criança é um conceito de difícil definição, o Comité considera que os Estados, ao tomarem opções políticas e no processo de tomada de decisões, devem analisar previamente o impacto dessas diversas opções nas crianças, antes delas serem tomadas. É o chamado ‘ child-impact analyses’, que diversos Estados têm implementado, em ordem a assegurar a defesa dos direitos das crianças (cfr. Hodgkin e Newell, 1998, p. 42).

O princípio do interesse superior da criança deve estar, assim, sempre presente no processo de tomada de decisões, nas políticas dos governos e na legislação aprovada pelos parlamentos de cada Estado.

O princípio do interesse superior da criança deve, assim, estar expresso na legislação interna de cada Estado, podendo ser invocado nas decisões tomadas pelos tribunais. A este respeito, o Comité dos Direitos da Criança salienta que o princípio está previsto na lei interna dos Estados em aspectos relacionados com decisões que digam respeito às crianças consideradas individualmente, como é o caso da adopção, divórcio, entre outras. Relativamente a políticas relacionadas com o desenvolvimento das crianças, o mesmo deveria constar nas áreas da educação, saúde ou segurança social, por exemplo mas, na

maioria das vezes, nada é referido expressamente na legislação quanto ao princípio do interesse superior da criança, havendo, assim, necessidade de colmatar tais lacunas ( cfr. Hodgkin e Newell, 1998, p. 42).

O Estado assume uma posição de garante, assegurando que toda a protecção e os cuidados necessários para assegurar o bem-estar das crianças, lhes são prestados pelos pais, pelos seus representantes legais ou outras pessoas que as tenham a seu cargo53. Na verdade, estes é que têm a seu cargo a guarda e a protecção da criança, funcionando o Estado como fiscalizador de que a criança está protegida e que o seu bem-estar está assegurado por quem as tem a seu cargo, tomando as medidas que se revelem necessárias, se se verificar alguma violação dos seus direitos.

Contudo, existem determinados deveres de protecção, que não podem ser assegurados pelos pais ou por outras entidades, mas tão-somente pelo Estado, como é o caso de proteger a criança contra a poluição, contra desastres ambientais, contra a guerra, entre outros. Nestes casos, o Estado é o responsável pela garantia da segurança e bem-estar das crianças. O mesmo ocorre com as crianças que vivem na rua, desamparadas pelos pais, em que o Estado tem o dever de as proteger e de lhes assegurar o seu bem-estar.

Existem situações em que o dever do Estado e dos pais na protecção e promoção do bem- estar das crianças está interrelacionado, como por exemplo, o dever do Estado assegurar a instrução primária a todas as crianças e o dever dos pais em assegurarem a sua educação, de acordo com o seu interesse superior.

O Estado, também, tem que assegurar a existência de instituições, serviços e estabelecimentos, que tenham a seu cargo as crianças, bem como o seu bem-estar e segurança, velando para que as normas estabelecidas pelas autoridades competentes sejam respeitadas, em especial no domínio da saúde, segurança, no número de recursos humanos que têm ao seu dispôr e na existência de fiscalização adequada.54 Também o Estado tem de garantir que todas as outras disposições da Convenção são respeitadas, como a não- discriminação, o interesse superior da criança, que as opiniões das crianças sejam ouvidas

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Art. 3º, nº 2 da Convenção sobre os Direitos da Criança;

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e tidas em consideração, que sejam respeitados todos os seus direitos e que sejam protegidas contra todas as formas de violência e exploração. Esta responsabilidade do Estado existe, quer essas instituições sejam públicas ou privadas, devendo inspeccionar e acompanhar as actividades dessas instituições regularmente.

Nesta perspectiva, o Estado deve dar uma atenção especial às crianças institucionalizadas, chamando o Comité dos Direitos da Criança a atenção, para que estas devam, de preferência, estar em famílias de acolhimento, monitorizando-se o seu acompanhamento, em ordem a protegê-las contra todos os abusos a que possam estar sujeitas. O Estado deve, também, assegurar que o pessoal destas instituições tenha uma formação especializada, salientando-se a necessidade destas pessoas saberem salvaguardar a dignidade das crianças e protegê-las contra maus-tratos, abusos e negligência. O Estado, deve ainda, procurar avaliar a formação das pessoas que trabalham com estas crianças (cfr. Hodgkin e Newell, 1998, pp. 45-46).

A educação, que é proporcionada às crianças, deve sempre ter em vista o seu interesse superior. Analisando-se os objectivos da educação constantes da Convenção55, verifica-se que a educação deve centrar-se na criança, respeitando-se, assim, aquele princípio.

Assim, a educação deve ter como principal objectivo o desenvolvimento da personalidade de cada criança, dos seus dotes naturais e das suas capacidades. Neste âmbito, deve ter-se em conta que cada uma é diferente, cada uma tem características e capacidades próprias, pelo que os métodos de ensino-aprendizagem devem respeitar os diferentes ritmos de aprendizagem da cada criança e as suas diferentes capacidades. Só assim, se pode respeitar o interesse superior da criança.

De acordo com Hammarberg (1977), para os alunos desenvolverem a sua personalidade, os seus dons e as suas capacidades físicas e psíquicas, dentro da medida das suas potencialidades:

Il est indispensable (...) que les programmes scolaires soient en prise sur la vie quotidienne des enfants et abordent ce qui compte pour eux: leurs relations

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sociales, la nourriture, l’hygiène et le milieu. L’école doit absolument être pertinente pour l’enfant, pour son présent comme pour son avenir. (pp. 18-19)

Deste modo, os programas das disciplinas devem ter uma relação com as referências sociais, culturais, ambientais e económicas dos alunos, procurando satisfazer as suas necessidades presentes e futuras, em termos de os prepararem para a vida activa, devendo cada aluno, antes de deixar a escola, estar preparado para enfrentar todas as dificuldades que vai enfrentar na vida real. Ou seja, os curricula devem preparar os jovens alunos para que, no futuro, possam tomar todas as decisões necessárias à resolução de todas as situações que vão enfrentar: resolver conflitos, levar uma vida saudável, desenvolver relações sociais amistosas, assumir responsabilidades, desenvolver o seu sentido crítico, a sua criatividade, bem como atitudes adequadas, adquirindo, assim, todas as ferramentas de que necessitam para levarem a cabo as suas opções de vida (cfr. UNICEF, 2006, p.11). Segundo Hammarberg (1977, p. 19), a falta de motivação dos alunos, factor que vai condicionar o seu aproveitamento escolar, deve-se ao facto das matérias que são leccionadas na Escola serem de carácter teórico, olvidando-se os aspectos práticos. Por outro lado, os professores estão mais preocupados com a avaliação e os exames, do que propriamente com as aprendizagens. Os alunos, ao sentirem que as matérias leccionadas não têm utilidade para a sua vida activa, alheiam-se e desmotivam-se. Assim, a educação proporcionada aos alunos nas escolas, deve ser pertinente para a vida dos alunos, pois é na escola que eles adquirem as aprendizagens para assumirem uma vida responsável na sociedade.

Na Quinta Conferência Internacional sobre a Educação dos Adultos, realizada em Hamburgo, de 14 a 18 de Julho de 1997, aprovou-se a Agenda Pour L’Avenir, na qual se realçam as profundas mudanças que têm vindo a ocorrer no mundo e a nível local, como a globalização, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a estrutura etária das populações, a mobilidade das populações, a emergência de uma sociedade fundada no conhecimento e no saber, a alteração na estrutura do emprego, a crise ecológica, as tensões sociais ligadas às diferenças culturais, étnicas e religiosas, à divisão de papéis

entre os sexos. Para fazer face a estas mudanças, salienta-se a necessidade da educação acompanhar os desafios deste mundo em constante evolução.

Na verdade, a educação deve acompanhar aquelas mudanças, preparando os alunos para enfrentarem as novas tensões que se apresentam no século XXI, entre o global e o local, entre o universal e o singular, entre tradição e modernidade, entre as soluções a curto e a longo prazo, entre a competição e o cuidado com a igualdade de oportunidades, entre o desenvolvimento dos conhecimentos e as capacidades de assimilação do homem, entre o espiritual e o material (Delors et al., 1996, pp. 14-15).

Para fazer face a todos estes desafios, a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI propôs o conceito de educação para toda a vida, educação essa que vai permitir que o ser humano, progressivamente e durante toda a sua vida, vá construindo a sua personalidade e a sua pessoa, através da aquisição de novos saberes e experiências, desenvolvendo as suas aptidões e capacidades, tomando consciência da sua pessoa e do meio que o rodeia, e ter um papel interventivo na sociedade, como trabalhador e como cidadão (Delors et al., 1996, pp. 14-15). Só, assim, o ser humano fica capacitado para enfrentar este mundo em constante mudança.

Por outro lado, a educação formal deve proporcionar ao indivíduo uma educação de qualidade que o prepare para aqueles desafios, transmitindo-lhe “ ...o gosto e prazer de aprender, a capacidade de aprender a aprender, a curiosidade intelectual” (Delors et al., 1996, p. 18). Só, assim, cada um ficará apto a aproveitar todas as possibilidades de aprender e de se aperfeiçoar (Delors et al., 1996, p. 18).

A propósito das mudanças que se apresentam à sociedade no século XXI, Hammarberg (1977), também, faz referência ao programa da Unicef para o Médio Oriente sobre a ‘Educação Global’, cujo objectivo é desenvolver projectos educativos concebidos sob a perspectiva de desenvolver uma educação global. Segundo o autor, “ L’accent est placé sur les aptitudes essentielles à la vie courante, sur le lien avec la communauté locale et sa vie quotidienne, mais aussi sur la relation avec le monde. Les racines locales et historiques sont considérées dans une optique tournée vers l’avenir” (Hammarberg, 1977, p. 19).

Assim, só uma educação cujos programas incorporem aquela noção de educação global, pode preparar os alunos para os desafios que vão enfrentar no século XXI, preparando-os para assumir as responsabilidades na vida activa, tanto no presente, como no futuro.

Nesta medida, só quando os responsáveis pela educação conceberem programas educativos que proporcionem aos jovens uma educação que os prepare para enfrentarem os desafios com que se deparam as sociedades do século XXI, é que estarão a considerar o interesse superior da criança como um factor primordial na concepção das políticas educativas.

Tendo sempre em conta aquele princípio, Hammarberg (1977, p. 20) defende que a escola deve ter uma maior ligação com o mundo do trabalho. Essa ligação passa pelas escolas serem mais flexíveis na adaptação dos horários escolares, aos horários de trabalho dos estudantes trabalhadores. As escolas devem, assim, estabelecer ligações com o mercado de trabalho, possibilitando aos alunos uma formação profissional realizada directamente nas empresas e não somente na escola, em contexto de sala-de-aula.

Deste modo, o autor defende uma maior ligação entre as aprendizagens escolares e o mundo do trabalho, pois só desse modo, os alunos adquirirão os conhecimentos e a experiência necessários para enfrentarem o mundo real.

Outro princípio inter-relacionado com o princípio do interesse superior da criança é o direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento, considerado um princípio universal dos direitos humanos, e que a Convenção adopta como princípio crucial na interpretação e implementação de todos os direitos nela reconhecidos. Vamos, assim, de seguida, desenvolver os aspectos fundamentais que caracterizam este princípio.