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CAPÍTULO II – REVISÃO DA LITERATURA

2. A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989

2.2. Tipologia de Direitos

Pais (1999, p.7) entende que os direitos constantes da Convenção dos Direitos da Criança, são direitos fundamentais inerentes à dignidade de todo o ser humano, pelo que os enquadra na categoria dos direitos humanos e não numa categoria especial de direitos. A autora refere também que a Convenção não estabelece uma categorização dos direitos, nem uma hierarquia entre eles. Salienta que todos os direitos estão interrelacionados, são universais, indivisíveis, sendo todos fundamentais e com igual importância para a dignidade da criança.

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Tal não significa para a autora, que os Estados não devam estabelecer prioridades na implementação das medidas necessárias à realização dos direitos. De facto, de acordo com a realidade de cada país e atendendo às circunstâncias específicas de cada situação, é essencial identificar as acções prioritárias destinadas a assegurar a realização dos direitos das crianças e impedir a sua violação, garantindo, assim, a eficácia da intervenção do Estado e o uso adequado dos recursos existentes (cfr. Pais, 1999, pp.8-9).

A Convenção contempla todos os direitos e liberdades fundamentais da criança, sendo inovadora ao não categorizar os direitos, de acordo com a tradicional divisão entre direitos civis e políticos e direitos económicos, sociais e culturais. Contudo, a Convenção prevê todos os tipos de direitos e liberdades fundamentais enquadráveis naquelas tipologias, tais como a liberdade de expressão, de religião, de associação; direitos civis, como o direito ao nome e à nacionalidade; direitos económicos e sociais, incluindo o direito à saúde e à segurança social e direitos culturais, incluindo o direito à educação e à cultura (Pais, 1999, p. 8).

Canotilho (2003) define direitos civis como os “...reconhecidos pelo direito positivo a todos os homens que vivem em sociedade” (p. 364), enquanto os direitos políticos “...só são atribuídos aos cidadãos activos”. Sieyés (citado por Canotilho, 2003, p. 364), define direitos civis como aqueles que “ devem beneficiar todos os indivíduos”; pelo contrário, nem todos têm o direito a tomar parte activa na formação dos poderes públicos, beneficiando de direitos políticos, referindo-se, neste caso, aos direitos políticos.

Os direitos sociais (direitos económicos, sociais e culturais) são definidos por Canotilho (2003, p. 403) como direitos a prestações ou actividades do Estado, podendo ser também de particulares.

Atendendo ao objecto e conteúdo, Cunha (2000) refere que os direitos pessoais ou civis “... inscrevem-se no quadro de uma liberdade restritamente considerada, sem interferência dos negógios do Estado e sem qualquer veleidade à reinvindicação prestativa de índole social” (p. 242). São, assim, direitos situados no âmbito da autonomia privada da pessoa. Por outro lado, os direitos políticos implicam, segundo o mesmo autor, “...a participação dos cidadãos no poder” (Cunha, 2000, p. 242). Os direitos sociais, onde se enquadram os

direitos económicos, sociais e culturais, “ compreendem a dimensão social dos direitos e da liberdade...” (Cunha, 2000, p. 242).

Atendendo à estrutura daqueles direitos, Cunha (2000, p. 243) refere que os direitos civis e políticos são direitos de autonomia, participação e cidadania, enquanto os direitos sociais são direitos de integração que visam permitir uma igualdade de oportunidades de base mínima a todos, principalmente àqueles que vivem abaixo do limite mínimo de usufruto dos bens sociais, económicos e culturais. Segundo Cunha (2000, p. 244), os direitos sociais necessitam da adopção de políticas e medidas legislativas de carácter social, que tenham como objectivo proporcionar condições para a efectivação da dignidade social.

Segundo Miranda (2000, pp. 91-92), atendendo a um prisma valorativo, os direitos civis ligam-se à autonomia, à liberdade e à segurança da pessoa; os direitos sociais decorrem da sociabilidade da pessoa, tendo em vista objectivos de promoção, de comunicação e de cultura; os direitos políticos estão ligados à ideia de participação.

Acerca da distinção daquelas duas categorias de direitos, na Convenção sobre os Direitos da Criança, Pais (1999, p.7) faz referência a dois argumentos que são utilizados para se proceder à sua diferenciação. Um desses argumentos diz respeito ao modo de implementação dos direitos e outro diz respeito à afectação dos recursos disponíveis na realização de cada uma das categorias desses direitos.

O argumento utilizado para distinguir cada uma das categorias dos direitos, atendendo ao modo da sua implementação, é de que os direitos económicos, sociais e culturais seriam implementados de forma progressiva, ao contrário dos direitos civis e políticos, que seriam implementados de imediato.

Para a autora, este critério não permite efectuar qualquer distinção entre os dois tipos de direitos, uma vez que os Estados estão obrigados a adoptar, de imediato, todas as medidas legislativas, administrativas e outras necessárias à realização de todos os direitos reconhecidos pela Convenção19, independentemente da tipologia em que se enquadram. Apesar da Convenção prever que as medidas relativas aos direitos económicos, sociais e

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culturais devem ser tomadas no limite máximo dos recursos disponíveis pelos Estados 20, para a autora isso não pode ser interpretado no sentido dos Estados poderem adiar a tomada de medidas destinadas a realizar os direitos das crianças, nem pode ser interpretado no sentido de que só quando um Estado atinja um determinado nível de desenvolvimento económico, é que esses direitos podem efectivamente ser realizados (cfr. Pais, 1999, p.7). Para Pais (1999, p. 7) a realização progressiva dos direitos económicos, sociais e culturais deve ser interpretada no sentido de que a total e universal implementação desses direitos não pode ser alcançada num curto período de tempo, requerendo uma atitude activa por parte dos Estados, no sentido de desenvolverem continuadamente esforços, para melhorarem as condições em que as crianças podem exercer esses direitos.

Em relação ao segundo argumento referido por Pais (1999), utilizado para se proceder à distinção entre direitos civis e políticos e direitos económicos, sociais e culturais, está na dimensão dos recursos disponíveis por parte dos Estados, afectos à adopção das medidas necessárias à realização dos direitos pelas crianças. A Convenção refere que, para se alcançar a realização dos direitos económicos, sociais e culturais, os Estados devem tomar as medidas necessárias para a realização dos direitos reconhecidos pela Convenção, até ao limite máximo dos seus recursos disponíveis21.

Na opinião da autora, este argumento não permite distinguir as duas tipologias de direitos, uma vez que os direitos civis e políticos, também, carecem de recursos para serem implementados.

Entende ainda a autora que, independentemente do desenvolvimento económico de um país, os recursos disponíveis devem destinar-se primordialmente e até ao seu máximo limite, a assegurar a realização dos direitos económicos, sociais e culturais das crianças. Esta interpretação é consentânea com o princípio do interesse superior da criança, que deve orientar todas as decisões que a envolvam.

Lansdown (1994, p. 36), agrupa os direitos constantes da Convenção de 1989 em três categorias, as chamadas 3-P’s a que se refere Verhellen (2001, pp- 180-181):

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Art. 4º;

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Direitos de provisão – onde se englobam os direitos sociais das crianças, tais como os ligados à defesa da sua saúde, educação, segurança social, cuidados físicos, vida familiar, recreio, cultura e repouso-

Direitos de protecção – relacionam-se com a necessidade de protecção da vulnerabilidade e da dependência da criança. Estas fragilidades devem ser garantidas pelo direito à protecção, face às escolhas e ao poder dos adultos, de todos os actos e práticas que lhe possam causar mal. Incluem-se aqui direitos, tais como o direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento, bem como os direitos da criança relacionados com a sua protecção relativamente à discriminação, abuso físico e sexual, exploração, injustiça e conflito.

Direitos de participação – Esta categoria engloba um conjunto de direitos que reconhecem à criança o direito de ela própria fazer escolhas e de transmiti-las aos adultos, que as devem ter em consideração. Englobam-se aqui os direitos civis e políticos, tais como o direito ao nome e identidade, o direito a ser consultada e ouvida, o direito ao acesso à informação, à liberdade de expressão e opinião e o direito a tomar decisões em seu proveito.

Para Verhellen “ These participation rights bring children back into society by recognizing them as ‘meaning-makers’ – by recognizing their citizenship.” (2001, p. 181)

Soares (2002, p. 4) salienta que, relativamente aos direitos de provisão e protecção, o discurso é consensual, o que não acontece com os direitos de participação, que têm sido objecto de controvérsias. Na verdade, não existe culturalmente o hábito de ouvir as crianças.

Lansdown (1994) refere que “ It is that third set of principles, which, if fully respected, would represent a significant shift in the recognition of children as participants in society and which pose a substancial threat to the traditional boundaries between adults and children” (p. 36).

Outra questão que se levanta, é a de saber se ao reconhecer-se os direitos às crianças na Convenção, se se trata de atribuir o gozo ou o gozo e o exercício dos direitos simultâneamente.

Na verdade, estamos no campo da capacidade jurídica ou de gozo de direitos, quando atendemos à quantidade de direitos e vinculações de que cada sujeito é titular e a que pode estar adstrito, enquanto a capacidade de exercício de direitos consiste na medida de direitos e vinculações, que um sujeito pode exercer por si, pessoal e livremente, ou mediante um representante voluntário.

Monteiro (2002, p. 123) cita o Relatório sobre a Introdução no Direito Francês da Convenção sobre os Direitos da Criança, elaborado pelo Alto Conselho da População e da Família, que põe a questão de saber o que é que a Convenção entende sempre que reconhece um direito à criança. A este propósito, refere-se no Relatório que:

reconhecer um direito em benefício da criança pode significar três coisas, pelo menos:

a) ou se reconhece à criança apenas o gozo desse direito, cabendo o seu exercício ao representante legal;

b) ou se reconhece à criança o gozo desse direito e o respectivo exercício, sob reserva de que ela o exerça com o concurso do seu representante legal;

c) ou se lhe reconhece pura e simplesmente o gozo e o exercício desde direito. (Monteiro, 2002, p.123)

Assim, o Alto Conselho afirma que nem sempre a Convenção é clara na redacção dos artigos que estabelecem os direitos da criança, não se sabendo exactamente se a Convenção, ao atribuir um direito à criança, atribui o seu gozo e exercício pela criança ou se atribui o seu gozo, reservando o exercício ao seu representante legal ou à criança em concurso com o seu representante. Mais salienta o Alto Conselho que não foi criado nenhum mecanismo pela Convenção para resolver os conflitos que possam surgir entre as crianças e os seus representantes, quando a criança tenha somente o gozo dos direitos, sendo o seu exercício reservado ao seu representante ou da criança com o concurso do seu representante (cfr. Monteiro, 2002, p. 124).

Também, segundo Monteiro (2002, p. 124), o Alto Conselho refere que a Convenção contemplou três métodos para regulamentar os direitos da criança:

a) Primeiro método: a regulamentação directa e completa do direito reconhecido à criança: é o caso daqueles artigos que reconhecem um direito à criança, sem permitir que lhe sejam impostas limitações pelos Estados, como é o caso do direito à vida22;

b) Segundo método: a regulamentação directa e parcial do direito reconhecido à criança: é o caso dos artigos que regulam um direito, mas permitem que os Estados estabeleçam certas restrições e limitações, como é o caso do direito à liberdade de expressão.23

c) Terceiro método: a regulamentação indirecta do direito reconhecido à criança: é o caso de um artigo que, não atribuindo directamente um direito à criança, limita-se a estabelecer uma obrigação a cargo do Estado, de reconhecer um direito à criança e de adoptar disposições destinadas a salvaguardar esse direito. Este é o método com maior flexibilidade e o mais utilizado24.

Por sua vez, Fernandes (2004, pp. 33-37) considera os direitos subjectivos, que a criança pode exercer por si, e os direitos que requerem a intervenção do Estado. Exemplo daquela primeira categoria são: o direito à audição, o direito à petição, o direito à liberdade de pensamento, de consciência, de crença e de expressão, o direito à liberdade de associação e participação e o direito à liberdade de circulação. Segundo o autor (2004, p.33), estes direitos podem ser exercidos directamente pela criança, ficando a cargo dos seus representantes legais ou do Estado criar as condições para que a criança possa efectivamente exercê-los por si. Na categoria dos direitos que requerem a intervenção do Estado, considera o autor aqueles direitos cuja garantia tem de ser prestada, à partida pelo Estado, secundando ou mesmo substituindo a família. O autor enquadra, nesta categoria, os direitos relativos a crianças sem família, crianças maltratadas, abandonadas ou 22 Art. 6º; 23 Art. 13º; 24 Art. 34º;

exploradas, crianças com pais em situação económica que não lhes possam prestar os devidos cuidados e, em geral, a crianças que vivam em situações de risco.

Após abordarmos as diversas tipologias de direitos constantes na Convenção, vamos, de seguida, descrever os princípios gerais dos direitos da criança, que se encontram subjacentes em todo o articulado da Convenção.