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IV A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE

O referencial teórico adotado nesta pesquisa sustenta-se na abordagem sócio-histórica de psicologia, fundamentando o estudo sobre a identidade do professor coordenador. Essa concepção compreende o psiquismo humano em sua determinação histórica e social; vê o homem como ser que se constitui nas relações sociais, que apreende consciente ou inconscientemente conhecimentos que possibilitarão continuamente sua formação e transformação, bases para seu modo de ser no mundo.

O referencial sócio-histórico vê o homem como um constante “vir a ser”, marcado pela plasticidade (Vigotski, 1988) e pela metamorfose (Ciampa, 1998), que ocorre no movimento de inter-relação social (Berger e Luckmann, 1985; Habermas, 1983), possibilitando um contínuo desenvolvimento na forma de pensar, agir, comunicar e sentir. Entendemos que o homem é um ser inerentemente social e suas capacidades e habilidades são produtos do processo de aprendizagem, que ocorre por meio das relações sociais. Rodrigues, ao ilustrar essa situação, explica que:

“O Homem não se define como tal no próprio ato de seu nascimento, pois nasce apenas como criatura biológica que carece se transformar, se re-criar como Ser Humano. Esse ser deverá incorporar uma natureza em tudo distinta das outras criaturas. Ao nascer não se encontra equipado nem preparado para orientar-se no processo de sua própria existência. O ato de formar o ser humano se dá em dois planos distintos e complementares: um de fora para dentro, e outro, de dentro para fora. Pelo primeiro, ele precisa ser educado por uma ação que lhe é externa, de modo

similar à ação dos escultores que tomam uma matéria informe qualquer, uma madeira, uma pedra, ou um pedaço de mármore, e criam a partir dela um outro ser. Assim como não se deve esperar que um objeto escultural apareça de modo espontâneo, também não se deve esperar que o ser humano seja fruto de um processo de auto-criação.” (RODRIGUES, 2001:67)

Marx e Engels (1998: 101), afirmam que “a essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”, concebendo o homem como um ser concreto e singular, produzido e produtor da realidade social e não puramente um reflexo do meio ambiente, constituindo-se como ser em contínua construção.

Assim, sob a tese de que o homem é um ser social marcado por um processo contínuo de construção que se dá numa relação dialética com a realidade, entendemos que a Identidade é a síntese do processo de construção do “eu”. Carvalho, ao discutir a categoria identidade como processo que revela a (re) construção do “eu”, afirma que:

“Embora essa síntese seja expressa pela totalidade dos traços, atributos, imagens, conceitos e sentimentos que o indivíduo reconhece como sendo dele mesmo, isto não significa defini-la como a somatória dos ‘dados objetivos’ e ‘sentimentos subjetivos’, mas apreendê-la como um processo no qual interiorizamos nossa raça, sexo, nome, atributos, valores, papéis sociais etc., que nos são conferidos pelos outros e, também, como encarnamos determinadas personagens ao longo de nossa existência. Em síntese, isto significa entendermos como o indivíduo se individualiza na medida em que se socializa.” (CARVALHO, 2004: 45)

Os trabalhos desenvolvidos por Berger e Luckmann (1985) e Habermas (1990) concebem a identidade como uma construção social marcada pela formação, conservação e transformação que ocorre no decorrer da vida dos homens.

Berger e Luckmann (1985), ao estudarem o processo de construção social da realidade, vêem a sociedade como produto de uma ação objetivada, em que o homem representa um produto social desta ação. Habermas (1987), com sua teoria da ação comunicativa, ajuda a compreender a necessidade do homem contemporâneo de apreender formas de ação (comunicação) adequadas para a formação de pessoas autônomas e de uma sociedade emancipada.

Esses trabalhos contribuíram para o desenvolvimento da Teoria da Identidade de Ciampa (1987), que a tem como uma construção singular do indivíduo e cujo processo é marcado pela metamorfose, traduzindo dialeticamente a construção e reconstrução do “eu” na psicologia social.

Ciampa, em sua teoria da identidade, rompe com as análises limitadas pela dicotomia homem/mundo, contribuindo significativamente com uma teoria materialista dialética do processo de constituição do sujeito, O autor trata a identidade como uma categoria ontológica do psiquismo humano, marcada pela multiplicidade de aspectos que se relacionam de forma contínua no mundo histórico e social em que o homem vive.

Podemos afirmar que Ciampa tem como ponto de partida o pressuposto de que homem e identidade só se constituem na e por meio das relações sociais; afirma ele:

“(...) o indivíduo isolado é uma abstração. A identidade se concretiza na atividade social. O mundo, criação humana, é o lugar do homem. Uma identidade que não se realiza na relação com o próximo é fictícia, é abstrata, é falsa” (CIAMPA, 1985:86)

Podemos considerar que a identidade é construída com base nas múltiplas e distintas determinações presentes nas relações e na estrutura social num determinado momento histórico.

O autor aponta que um dos primeiros acontecimentos na constituição da identidade é o processo de interiorização, que corresponde à apreensão daquilo que os outros nos atribuem, de forma que se torna nosso, pela apropriação de traços que nos tornam únicos, constituindo uma identidade que concomitantemente nos iguala e nos diferencia, revelando o movimento presente nesse processo.

No processo de interiorização nos apropriamos de papéis sociais que ao serem adotados passam a constituir parte de nossa identidade, nos igualando e nos diferenciando à medida que os desempenhamos, pois ao nos apropriarmos de um papel social dotado de procedimentos padronizados recriamos esse papel mediante as perspectivas diante do mesmo e da sociedade. Rodrigues sintetiza bem essa relação entre diferença e igualdade, ao afirmar que:

“(...) a identidade é em parte igualdade (semelhança) entre indivíduos que exercem os mesmos papéis, mas é também a diferença (distinção) de como cada um se identifica com estes papéis.” (RODRIGUES, 2004:56)

Ciampa esclarece que o nome e os papéis sociais apreendidos pelo homem não são a identidade, mas uma representação dela, pois somos capazes de transformar um papel social em individual e em nossa convivência nos apropriamos de uma gama de significados, possibilitando a produção de sentidos pessoais que subsidiarão a reconstrução de personagens e a constituição de uma identidade própria (emancipação).

O autor entende identidade como síntese da atividade e de sua relação intrínseca com a consciência. A identidade surge como resultado de um processo contínuo de identificação, que se dá no confronto entre o mundo interno e externo. Ciampa afirma a possibilidade do indivíduo representar-se a si mesmo, de forma a se fazer conhecer pelo outro como personagem.

O outro personagem aqui é visto pelo pesquisador como a alterização da identidade do sujeito, como uma superação da identidade pressuposta e no desenvolvimento de uma “nova” identidade, que gera no indivíduo uma série de mudanças quantitativas levando-o a mudanças qualitativas, por meio das relações sociais de trabalho que se constituem num dado espaço e momento histórico. O autor nos coloca que:

“(...) a identidade é o movimento de concretização de si, que se dá, necessariamente, porque o desenvolvimento é concreto e, contingentemente, porque é a síntese de múltiplas e distintas

determinações. O homem, como ser temporal, é ser-no-mundo, é formação material. É real porque é a unidade do necessário e do contingente.” (CIAMPA, 1995:199)

Ciampa alerta que a pesquisa da identidade deve superar o estágio da descrição e da coleta de um elevado número de informações, tendo a necessidade de captar significados implícitos “(...) desvelando o que se mostra velado” (CIAMPA, 1985:103) e desenvolvendo uma compreensão dialética dos diferentes processos que interferem direta e indiretamente na constituição da identidade de uma pessoa.

Consideramos relevante chamar a atenção para o “fetichismo da personagem”, que é o movimento de proposições substantivas e predicações que ocorrem em nosso cotidiano e que engessam o movimento de metamorfose da identidade, gerando e mantendo uma identidade-mito, marcada por uma aparente constância, que pode ser denominada de mesmice, ocultando a possibilidade de transformação presente no processo de constituição da identidade.

Rodrigues afirma que as personagens representam a forma empírica de nossa identidade se expressar, sendo “(...) a identidade é uma unidade construída pela totalidade das múltiplas personagens que ora se conservam, ora se sucedem; ora coexistem, ora se alternam” (RODRIGUES, 2004:57), indicando diferentes modos de produção da identidade (a identidade-mito e a identidade-metamorfose) ,ambas marcadas por uma característica singular constituída nas relações sociais vividas pelo indivíduo.

Ciampa, em sua obra, propõe três importantes momentos no processo de constituição da identidade; são eles: a pressuposição, a posição e a

reposição.

O primeiro momento é marcado pela pressuposição da identidade, em que a predicação é atribuída ao indivíduo pelo ‘outro’, a identidade torna-se algo dado, atribuído ou outorgado pelo outro e mediada por este. Na pressuposição da identidade, o indivíduo se caracteriza como ser social, é um “ser-posto”, em que sua identidade é supostamente antecipada.

O segundo momento se dá a partir da incorporação da identidade socialmente atribuída pelas pessoas significativas do grupo social com o qual o indivíduo se identifica, assumindo e articulando uma posição em relação a seu grupo e seu mundo. Esse momento é marcado pela interiorização, pelo indivíduo, da identidade pressuposta: “seu processo interno de representação é incorporado na sua objetividade social.” (CIAMPA, 1990, p. 161)

O terceiro momento de constituição da identidade é marcado pela “re- posição” da identidade, que fora pressuposta e posta em suas relações sociais. A “re-posição” é vista pelo indivíduo como algo dado e não como construído por meio de um processo contínuo de identificação e sua identidade se configura como algo permanente e estável, processo este denominado pelo autor de “mesmice de si mesmo”.

São esses os processos que constituem a identidade como metamorfose. A identidade deve ser considerada, portanto, como um contínuo processo de transformação.

Assim, cabe destacar que o processo de reposição da identidade carrega consigo a dialética da relação ocultamento e revelação das personagens que compõem uma determinada identidade, revelando a transformação no momento em que uma personagem é reposta.

Assim sendo, podemos afirmar que o ser humano constantemente se transforma; favorável a essa posição, Carvalho afirma que:

“(...) por mais que um individuo possa resistir a mudanças, ou seja, impedido de mudar por alguma circunstância, ainda que reproduza uma cópia fiel de si mesmo diariamente ele é mudança, mudanças que ao deixarem de ser meras reposições passam a ser transformação – metamorfose; não uma metamorfose miraculosa, mas uma metamorfose progressiva, no sentido de aberturas para o mundo, de um leque de possibilidades em que toda humanidade contida em cada indivíduo vai gradualmente se concretizando e dando um norte emancipatório ao movimento de transformação”. (CARVALHO, 2004:60)

Ciampa chama a atenção para a mesmice imposta que é a impossibilidade de transformação, restando apenas a opção de reproduzir réplicas si mesmas, situação esta em que se enquadram atualmente milhões de seres humanos, que por viveram em condições sub-humanas vêem impossibilitadas a esperança de transformação que permitiria a emancipação, rompendo com a reposição e tornando-os capazes de vir-a-ser um ser-para-si.

Há, portanto, a necessidade de se registrar que a identidade como metamorfose é a síntese de múltiplas e distintas determinações, se dá numa base social concreta, pois a identidade é pressuposta nas relações sociais

materializadas e é pressuposta, assumida e re-posta, sob a luz da realidade historicamente construída. Sobre esta questão, Ciampa afirma que “(...) na práxis, que é a unidade da subjetividade e da objetividade, o homem se produz a si mesmo. Concretiza sua identidade”. (CIAMPA.1990: 201)

Para concluir a exposição acerca da Teoria da Identidade, faz-se necessário enfatizar que todas as considerações de Ciampa partem do princípio de que a identidade humana se forma e se transforma numa determinada realidade histórica e social, dando ao indivíduo condições, ou não, de se apropriar de significações que produzirão sentidos pessoais, fornecendo condições ao indivíduo de atingir um estágio de autodeterminação que pode favorecer a emancipação.

Entendemos também que a mesmice e a metamorfose são elementos fundamentais no processo de constituição de identidade e são estimuladas ou impedidas pelas condições objetivas e subjetivas, condições estas que possibilitarão ou não a formação de uma identidade emancipada.

A identidade, nesta pesquisa, é compreendida como um processo dialético (superando a dicotomia sujeito e o objeto) de constituição do indivíduo, que ocorre nas relações que o homem estabelece com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo, face ao mundo histórico e social. Tornar-se humano implica a apropriação da cultura acumulada pela humanidade ao longo de sua história. Sobre isso, Duarte afirma que:

“O desenvolvimento sócio-cultural do indivíduo é o desenvolvimento de um indivíduo histórico, portanto situado na história social humana. Para que esse desenvolvimento ocorra é necessário que

o indivíduo se aproprie dos produtos culturais, tanto aqueles da cultura material como aqueles da cultura intelectual”. (Duarte, 2000:5)

A transmissão dos conhecimentos socialmente produzidos em nossa sociedade é uma atividade realizada intencionalmente pelos adultos e é concebida na psicologia vigotskiana como o principal fator do desenvolvimento de nossas crianças.

Para apreender as contradições que revelam o processo de constituição da identidade adotaremos o método materialista dialético, tal como defendido e utilizado por Marx, por ser este capaz de revelar a dinâmica e os elementos que participam da constituição da identidade.

Este trabalho, cujo objeto é a identidade do professor coordenador, tem seu foco numa função articulada à profissão de professor, o que exige uma análise que considere os papéis e sua articulação com a constituição da identidade do sujeito. Assim, é importante reconhecer que, no processo de interiorização, apropriamo-nos de papéis que, segundo Berger e Luckmann (1998), representam a tipificação dos desempenhos de um indivíduo, tipificação esta constituída por significados institucionais impressos na consciência, de forma a garantir a adoção de procedimentos que mantêm a ordem institucional.

Esses autores, ao defenderem o processo de apropriação de papéis, afirmam que não se trata da reprodução de desempenhos socialmente esperados, mas de um processo de apropriação e de análise de desempenhos tipificados subjetivamente (que segundo os autores é representado por “uma conversa interna entre os diferentes segmentos da personalidade”),

condicionando a reprodução do papel apropriado socialmente, constituído, porém, de uma particularidade do sujeito do processo.

O processo de apropriação e transformação de papéis socialmente estabelecidos dá condições para se compreender a transformação do indivíduo em sua determinação social.

Os papéis sociais adotados passam a constituir parte de nossa identidade, nos igualando e nos diferenciando à medida que os desempenhamos, pois ao nos apropriarmos de um papel social dotado de procedimentos padronizados nós o recriamos mediante as perspectivas socialmente dadas.

Em síntese, acreditamos que a teoria da identidade possa contribuir para uma maior compreensão dos sujeitos da educação, neste caso os professores coordenadores, em busca de novas bases para se realizar os processos formativos, em direção à construção de novas identidades, rompendo com a mesmice e promovendo condições para a metamorfose emancipatória.

V. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Este capítulo foi desenvolvido a partir das informações obtidas com a coleta de dados10 e tem o propósito de desenvolver a apresentação, a análise e a discussão dos dados coletados na construção da história de vida de nosso professor coordenador.

Antes de iniciarmos essa atividade, acreditamos que vale destacar que da apresentação dos dados coletados nas três entrevistas realizadas com o professor coordenador da rede pública estadual de ensino de São Paulo, serão expostas seqüencialmente, de acordo com o método de análise adotado e a ser brevemente explicitado .

Acreditamos que vale destacar que o participante dessa pesquisa é do sexo masculino, é solteiro, possui 44 anos de idade e atua como coordenador pedagógico nessa escola a aproximadamente 05 anos; sua atuação como docente não é recente e já possui na rede pública de ensino a 16 anos de atuação; apresenta uma ampla formação acadêmica, pois é formado em história, língua portuguesa e pedagogia e além disso, possui um curso de Especialização Lato-Sensu de Literatura, revelando ser um professor em constante aperfeiçoamento. Em sua forma de falar, de agir e de se posicionar é marcada por uma acentuada serenidade, pois por estabelecer em todas as entrevistas um clima de calma e descontração possibilitou a coleta dos dados de forma muito tranqüila e confortável.

10 Vale lembrar que os dados foram obtidos por meio de entrevistas não diretivas que tinham como

Vale destacar que antes de se iniciar o processo de coleta de dados tivemos a preocupação de estar participando de várias atividades desenvolvidas na escola em que o nosso entrevistado atua. Tal participação se constitui dotada de intencionalidade, pois buscamos verificar qual o trabalho realizado por nosso professor coordenador, a fim de buscar apreender algumas informações que pudessem iluminar significados presentes na atividade de nosso professor coordenador e proporcionando talvez a possibilidade de aproximarmos das zonas de sentido que movem a ação de nosso participante.