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Foto 9 JOAQUIM NUNES ROCHA

3.1 A PEDAGOGIA DOS CORONÉIS

3.1.1 João Galo

Antes de realizar a excursão pela história do Garças e Araguaia, torna-se importante falar da relação entre os coronéis e os jagunços16. Para tanto, serão apresentados dois relatos que, embora jocosos, foram testemunhas da tenuidade da confecção dessa relação também marcada pela fidelidade, pela confiança, pelo reconhecimento e pela valentia, ao mesmo tempo em que mostram o grau de violência existente nas regiões de garimpo.

Em relação à ordem cronológica, os relatos são posteriores aos fatos sobre os quais se reportará nos próximos tópicos. Eles servem, no entanto, para medir a intensidade da valentia do jagunço e como ele se apresentava diante do povo. O primeiro desses relatos foi colhido a partir da experiência do advogado Florisvaldo Flores Lopes, da cidade de Barra do Garças, Mato Grosso. Os eventos relatados no texto são posteriores a 1933, porque já relatam a existência de Poxoréu com alguma estrutura de segurança, e anteriores a 1937, quando ocorreu a chacina do Tesouro, que será relatada ainda neste capítulo. Trata-se de um relato

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Por coronel entende-se aqui o conceito usado em todo o território nacional para indicar o indivíduo, geralmente proprietário rural, ocasionalmente um burocrata, comerciante ou profissional liberal do interior do país, que controlava o poder político, social e econômico de uma região, em especial durante a primeira República, entre 1889 e 1930. Porém, a sua origem é mais antiga. Sua origem pode ser encontrada em 1831, quando foi criada a Guarda Nacional. No período imperial, os quadros da corporação eram nomeados pelo governo central ou pelos presidentes de província. Com a influência dos latifundiários sobre a estrutura da guarda nacional, a patente de coronel da Guarda Nacional se tornou quase que um título de nobreza, que era concedida aos grandes proprietários de terra. Daí vem a autoridade do coronel.

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Aqui se poderia fazer um diálogo com Victor Nunes Leal, em relação à obra Coronelismo de Enxada e Voto. No entanto existem diferenças significativas entre o coronelismo ao qual faz referência aqui difere em muitos pontos do coronelismo analisado por Victor Nunes Leal. O que existe de comum entre os coronéis que Victor Nunes Leal faz referência é a estrutura agrária, a coexistência de um regime político de base representativa na qual se manifesta o poder dos senhores de terras e o compromisso, a troca de favores entre o poder público e os líderes locais, além do mandonismo, do filhotismo, do nepotismo e da desorganização dos serviços públicos locais.

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Preferimos usar aqui o termo jagunço por diversas razões. Em primeiro lugar, porque é comum principalmente no Nordeste chamar jagunços os homens que se colocavam a serviço dos coronéis. Eram assim chamados, por exemplo, os homens que serviam Horácio de Mattos, na Chapada da Diamantina. Jagunço é também o homem contratado por outro para ser o seu guarda-costas. No Garças e Araguaia, no entanto, o coronel José Morbeck se utilizava dos serviços dos próprios garimpeiros, enquanto que Carvalhinho, além dos seus ajudantes vindos na expedição de 1922, após ser inocentado da morte do amante da esposa, ele se viu na obrigação de voltar à Bahia para contratar novos jagunços para atuarem nas lutas que se seguiriam ao assalto de Santa Rita do Araguaia. Os jagunços também são chamados de asseclas e peões.

que mostra que os jagunços tinham entre suas características a criação de relações livres, amistosas e até de igualdade com os coronéis.

Florisvaldo relata: Meu pai mandou que eu fosse ver quem estava batendo à porta àquela hora. Chegando lá, dei com uma figura esguia, alta, de um moreno avermelhado, porte imponente, vestindo terno de brim cinza-claro, chapéu de abas largas com bambolim pendendo no queixo quadrado, botas reluzentes, esporas enormes rosetas prateadas, com

uma comprida piola de três argolas no braço e dois enormes ‘38’ pendurados na guaiaca.

Atrás de si, mastigando o freio, uma grande mula baia, arreada com um cutiano manteado de couro, coberto com um volumoso pelego vermelho e na garupa um grande alforje de fivelas largas, marcado com duas letras vistosas amarelas: ‘JG’. ‘É filho do Elpídio?’. Não foi preciso responder-lhe, pois meu pai, que estava na cozinha remendando uma bateia com breu quente, apareceu e trocaram um longo abraço. Juntos entraram, e só mais tarde fiquei sabendo que ali estava em carne e osso um dos homens mais famosos dos garimpos do leste: o João Gato do Poxoréu. A amizade com meu pai tinha raízes profundas, pois ainda rapazola viera em sua companhia, nos idos de 1933, juntamente com outros baianos, tendo atravessado Minas Gerais e Goiás, sempre a pé, em busca dos lendários garimpos do Lajeado. Meu pai, que deixou a família toda na Bahia, ficou por aqui, ora no Bandeira, ora no Alcantilado, enquanto o João fincou os pés pros lados do Coité e da Raizinha, região do Poxoréu, a mais rica e violenta do Estado. Ali, quem não era valente acabava morto nas brigas noturnas dos puxa-facas, nas disputas das famosas raparigas que, segundo contam, exigiam dos garimpeiros que forrassem o chão com notas de 500 mil réis, para que elas dançassem em cima. Mas o pior não era morrer, o terrível para qualquer garimpeiro era ser preso e amarrado no mourão que a polícia, na falta de cadeia, tinha fincado no meio das ruas das corrutelas. Um dia, tentaram amarrar, aliás, amarraram um sócio do João num mourão na Raizinha. Era o Baianinho, um crioulinho baixo e de fala mansa, que se recusara a ir buscar palhas para cobrir a barraca da enrabichada do sargento, comandante do destacamento. Quando João chegou à corrutela, à tarde, e soube do acontecido, foi até a casa do sargento, que na hora jantava, e de revólver em punho o obrigou a ir até o mourão cortar as cordas que amarravam o Baianinho, isto às vistas de mais quatro policiais armados que não esboçaram qualquer reação. A partir daí, o João, que era apenas João, passou a ser chamado de João Galo. E suas proezas não terminaram. Contam, ainda, que uma vez chegou lá um tenente famoso pelas bravuras que fizera no Gatinho, dizendo a todos que ali estava para cortar os esporões do João Galo, arrancar-lhe as penas e depois deixá-lo como galinha

choca. O João, que estava numa grupiara, rio abaixo, foi avisado dos intentos belicosos do tenente, e simplesmente mandou dizer-lhe que no sábado pudesse esperá-lo, que ele ia lá fazer-o-saco. No sábado, a corrutela parou, pois desde cedo o tenente, carregando um enorme mosquetão, andava de bolicho em bolicho, comendo cana e arrotando valentias, contando as malvadezas que fizera no garimpo do Gatinho, sentado no balcão do bolicho do Velho Damião. Uma voz mansa cortou a conversa: “Damião, enche um copo de café misturado com sal para mim. O tenente, que não o conhecia pessoalmente, virou-se, rindo para o lado, e perguntando: ‘Tá doido, moço? Onde já se viu beber café com sal?’. ‘Num é pra mim, não, tenente, é pra você beber. Eu sou o João Galo, que você quer cortar as esporas e arrancar as penas’. Sacou de dois revólveres e enfiou na cara do bicho que, tremendo como vara verde, bebeu o copo todo de café com sal. Ainda não satisfeito, aproximou-se dele, arrancou-lhe os botões da braguilha e mandou que tirasse as lustrosas polainas e saísse para a rua com elas na mão. A rua estava cheia e em silêncio. Da batida que saiu, o pobre tenente fanfarrão se mandou a pé, deixando sem comando os seus homens da corrutela (apud VARJÃO, 1987).

O relato ilustra o tipo de homem que existia em Poxoréu e no Garças e Araguaia e como a autoridade do estado, representada pelo aparato de segurança, era quase nula, e quando se fazia necessário o confronto, nem sempre saía vencedora. Também apresenta, por um lado, outro dado significativo que é o alto índice de violência existente em Poxoréu mesmo depois da criação do Distrito, em 1932. Além disso, é significativo o fato de que até as autoridades constituídas sofriam com ela e, por outro lado, testemunha que em Mato Grosso alguns símbolos da escravidão ainda não tinham sido totalmente abolidos, sendo utilizados pela autoridade policial não somente como medida exemplar para os garimpeiros, mas também como solução para a falta de estruturas mínimas para o exercício da segurança pública. O relato mostra ainda que não existia qualquer controle sobre o uso de armas na região. As armas, o revólver e a cartucheira, eram parte integrante da indumentária do garimpeiro. Por fim, mas não por último, na região do garimpo, a qualificação do crime ficava, em muitas situações, ao livre arbítrio do policial no comando. No caso em questão, o amigo de João Galo tinha sido punido apenas por ter se recusado a ir buscar palha para cobrir cabana da enrabichada (cfr.: Anexo 1) do comandante do destacamento.

Essa precariedade estrutural da segurança pública aliada com as ações dos policiais gerava a insatisfação dos moradores dos garimpos, em geral, e não passava despercebida aos

olhos de pessoas, como Carvalhinho, que esperavam por uma oportunidade para se apresentar como defensoras dos garimpeiros.

Foi nesse espaço da ausência do estado com suas estruturas de correção que surgiram os valentões que, como João Galo, eram capazes de realizar proezas como obrigar um delegado a deixar a sua refeição, sob a mira de um revólver, para soltar um preso amarrado no garrote. Com isso, surgiu a visão negativa do policial, que passou a ser visto como alguém que provocava violência e vingança ou alguém que fugia como covarde quando não estava no controle da situação.