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Foto 9 JOAQUIM NUNES ROCHA

5.3 RELAÇÕES DESIGUAIS

O conformismo já tem uma literatura consagrada na política brasileira61. Em certo sentido, poderia ser entendido como algo que desde há muito tempo contamina o sangue dos brasileiros, mas ao mesmo tempo também apresenta facetas diversas passíveis de análise tanto pela psicologia, quanto pela antropologia, pela ciência social e pela ciência política, entre outras áreas de saber das Ciências Humanas. Em qualquer de suas acepções, uma definição de conformismo tem que levar em consideração os aspectos culturais, o ambiente físico e a própria estrutura social na qual o indivíduo ou o grupo estabelece as suas relações. No

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Aqui se pode fazer referência principalmente a Chaui (1996) e Pereira de Queiroz (1965, 1972, 1976), entre outros, com seus trabalhos sobre conformismo, mandonismo e resistência.

entanto, por definição o conformismo enfrenta uma espécie de dualismo no qual parecem combinar substantivos como a resignação, a aceitação pura e simples do destino, passividade, fragilidade ou silêncio. Porém, não se pode confundir conformismo com conformidade dentro de um sistema de relações. Na verdade, na sociedade poxoreense o conformismo pode ser analisado dentro do jogo de forças no qual se faz presente a paixão pela dignidade e em qualquer situação se trata de estratégia de sobrevivência, de mecanismo de defesa, de moeda de troca e de posicionamento político em relação aos poderosos que sempre estiveram à frente do controle da gestão do município.

Por outro lado, o imobilismo dos poderosos também é algo que não pode ser deixado de lado nas relações políticas que foram tecidas em Poxoréu ao longo de sua existência como município. Também neste caso, trata-se de uma estratégia dos poderosos para se manter no poder mediante a realização de obras pontuais de infraestrutura, que passavam a impressão de que trabalhavam em benefício do povo, mas essas obras não produziram qualquer incidência sobre o desenvolvimento econômico e social do município. Apesar de os grupos que assumiram a gestão do município em algum momento terem chegado ao quase rompimento dos seus contratos políticos, como foi o caso das disputas pelo cargo de prefeito na legislatura de 1966-1970, praticamente não houve oposição em Poxoréu, e as relações dos poderosos com o povo não sofreram qualquer alteração.

O imobilismo dos poderosos pode ser entendido também como falta de versatilidade política da oposição e como incapacidade de se estabelecer políticas públicas e programas de governo62. Contudo, aplicado a Poxoréu, diz respeito a uma consciência dos políticos de que a fidelidade dos garimpeiros era suficiente para manter o controle da administração municipal. Assim, os coronéis do garimpo puderam estabelecer uma espécie de pacificação do espaço público camuflada de renúncia a qualquer pretensão de soberania sobre o povo e ao mesmo tempo passaram a impor uma liderança mascarada de filantropia. Esta é a razão pela qual as mudanças políticas, econômicas e sociais operadas no Brasil, em geral, e em Mato Grosso, em particular, a partir principalmente da década de 1960, foram introduzidas no município somente a partir da consolidação da cultura do agronegócio nas circunscrições municipais criadas recentemente.

Dessa forma, em Poxoréu, a administração municipal pôde permanecer durante mais

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Segundo Campbell (apud McLean e McMillan, 2003), o conceito é aplicado à situação política vivida Terceira e Quarta Repúblicas francesas quando os parlamentares e o governo caracterizada pela instabilidade e é visto como um sério obstáculo às mudanças socioeconômicas e políticas.

de meio século sob a influência da família Rocha, quer tendo os seus próprios membros eleitos ou apoiando a eleição de políticos alinhados com a sua base de sustentação. Em termos políticos, Poxoréu se tornou um lugar que praticamente se regia por uma espécie de sistema de partido único.

A oposição à família Rocha somente foi sentida em três momentos específicos da história, como já foi mencionando anteriormente: a primeira, por ocasião da primeira eleição municipal, em 1947, quando houve a intervenção da justiça eleitoral e a destituição dos vereadores eleitos pela UDN, que tinham deliberadamente assumido a prefeitura; a segunda, quando, já no regime militar, a legislatura de 1966 a 1970 chegou ao seu fim após o município ter tido quatro prefeitos; e a terceira, no ano 2000, quando, após as cisões entre o prefeito e Antônio Rodrigues da Silva, a oposição, liderada pelo PMDB, se uniu e saiu vitoriosa.

Dessa forma, tanto o conceito de conformismo como o conceito de imobilismo podem ser aplicados à politica de Poxoréu. O primeiro diz respeito ao povo e o segundo aos poderosos. Contudo, encontrar essa relação só é possível a partir de uma excursão pela história do município e das relações políticas que foram tecidas no seu território, como a excursão realizada nos capítulos anteriores, que encontram sua origem no próprio modelo de povoamento implantado em toda a bacia diamantina do sudeste mato-grossense.

O cientista político, no entanto deverá estar atento ao fato de que psicologicamente os indivíduos, os poderosos e o povo, vivem a partir das mesmas bases de afeto no que diz respeito às relações políticas. Essas bases podem ser constituídas pelo medo e também pelas ameaças que tornam a todos iguais. Porém, diante da possibilidade da perda do controle sobre o sistema político, os poderosos encontraram uma saída diferente para a sua situação enquanto que o povo se refugiou nas próprias estratégias de sobrevivência. Foi dessa forma que em Poxoréu, onde inicialmente as classes se misturavam e parecia não existirem diferenças entre os poderosos e o povo, a realidade apenas camuflou peculiaridades tanto da dominação quanto da insatisfação, aquilo que tornava uma parte suficientemente poderosa a ponto de subjugar a outra.

Portanto, para reconstruir os processos histórico-políticos de Poxoréu será sempre necessário voltar sempre à própria história do povoamento do município. As migrações iniciais para Poxoréu foram majoritariamente de procedência mato-grossense ou nordestina, não quantitativamente distribuída entre os estados que compõem essa região brasileira, mas em proporção maior entre os baianos e maranhenses. Inicialmente, em toda a região do

Garças e Araguaia, esses grupos mantiveram uma relação aparentemente amistosa entre si. No entanto, devido às circunstâncias peculiares do garimpo, em especial nas proximidades da Vila de São Pedro, que mantinha localidades satélites como o Alcantilado e o Garimpo dos Sete, essas relações foram rompidas a partir do massacre dos maranhenses pelos baianos, em 1924. Esse massacre levou à cisão da relação entre os coronéis que lideravam o território diamantino e trouxe para os migrantes que encontraram na região o seu local de destino as lutas entre grupos provenientes de estados diferentes do Nordeste brasileiro.

No imbróglio que foi criado entre os coronéis, o governo estadual favoreceu o conflito no qual os garimpeiros se viram divididos entre lutar ao lado de José Morbeck ou de Carvalhinho. Quando, em 1926, o governo de Mário Corrêa da Costa ordenou a retirada das tropas estaduais das zonas de conflito despontou uma realidade particularmente nova nas relações entre os garimpeiros e os fazendeiros e entre os garimpeiros e as autoridades estaduais. A parte aparentemente vitoriosa no conflito armado, representada por Carvalhinho, migrou para Poxoréu e tentou firmar na localidade sua base política nos moldes morbequinos; a parte derrotada ficou confinada na região de Barra do Garças, totalmente desprovida de recursos para retomar o projeto de constituir um estado em separado de Mato Grosso.

Quanto aos garimpeiros, fugitivos da região da Vila de São Pedro ou dos recrutamentos compulsórios para as batalhas que foram travadas na porção leste do território diamantino, além de encontrar em Poxoréu uma região livre dos conflitos e a abundância de diamantes tanto nas beiradas dos rios quanto em terra firme, foram aos poucos se adaptando ao aparato policial e jurídico de Mato Grosso que envidava esforços para evitar o retorno dos antigos coronéis do garimpo à liderança do território e para incorporar a região à administração estadual.

No entanto, o rito de passagem da liderança dos coronéis para a autoridade mato- grossense produziu, num curto espaço de tempo, ainda no governo de Mário Corrêa da Costa, enfrentamentos entre os garimpeiros e o aparato de segurança estadual – por exemplo, a invasão da delegacia de Poxoréu pelo bando de Carvalhinho e o massacre do Tesouro, em 1937, descritos anteriormente –, que, se somados aos atos de violência gerados pelo recente conflito armado e à própria violência entre os próprios grupos de migrantes, iriam marcar, nos decênios seguintes, as relações políticas entre o estado, os fazendeiros e os garimpeiros, em especial dentro dos limites do município de Poxoréu.

entre o estado e os garimpeiros e entre os fazendeiros e os garimpeiros. O governo mato- grossense, que passou a ocupar os espaços deixados pelos coronéis, constituiu aparatos judiciais ligados diretamente à autoridade sediada em Cuiabá, no caso de Poxoréu, cuja independência administrativa somente viria com a criação e a implantação do município, em 1938, e jurídica, com a criação da comarca, em 1943.

Essas ações, no entanto, não foram acompanhadas por quaisquer mudanças na estrutura fundiária, que, em última instância, possibilitou aos fazendeiros, nos decênios seguintes, não somente destruir o sistema de colonização agrícola implantado pelos governos federal e estadual em Paraíso do Leste, Aparecida do Leste e Jarudore e a expulsão das últimas famílias dos Bororos que habitavam a região, mas também criaram as bases para a estruturação do coronelismo da família Rocha, que tomou posse do município a partir de 1947.

Nesse contexto em que os migrantes que fugiam da concentração de terra, das intempéries e do poder dos coronéis em outras regiões do país, como garimpeiros passaram, então, a assistir a um processo de reprodução do mesmo modelo de concentração da terra e do coronelismo que os havia levado a migrar para a bacia diamantina do Garcas e Araguaia e para Poxoréu, no início do século XX, é que podemos encontrar as raízes da própria situação de estagnação econômica e de preservação do modelo político de tipo coronelista na administração desse último município. Na esteira da preservação desse modelo também podem ser encontrados os fundamentos do aparente conformismo da população, de maneira geral, que assistiu durante praticamente toda a história do município apenas à troca de comando da prefeitura, mas não necessariamente a uma mudança no modelo político.

Contudo, principalmente depois das transformações ocorridas na estrutura política e econômica de Mato Grosso, em especial a partir da década de 1960, devido à implantação dos programas governamentais tanto na esfera federal quanto na estadual de incentivo à produção agrícola e da abertura dos grandes eixos rodoviários que interligaram o estado ao resto do país e favoreceram a afluência dos recentes fluxos migratórios da Região Sul do Brasil e a fundação de cidades prósperas nas vizinhanças do município, o modelo administrativo e econômico vigente em Poxoréu entrou em colapso. Parte da população que não tinha sido absorvida pelo mercado de trabalho no município ou que ainda vivia sob o regime meeiro ou de trabalhos temporários migrou para Rondonópolis, Primavera do Leste, Campo Verde e, mais recentemente, para Santo Antônio do Leste, município criado em 1998.