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4 JORNALISMO PARTICIPATIVO

Até aqui se analisa a prática narrativa, por intermédio de plataformas tecnológicas móveis, como uma evidência do fato que na modernidade valoriza-se o ato de enunciar. O sujeito passa a ser o enunciador e consequentemente precisa localizar o que narrar. O lugar à espera de ser narrado e já enlaçado com os corpos, transforma-se em elemento ou foco de narração. Neste mesmo processo evolutivo, esses corpos, saídos do campo e conformados pela retórica urbana, precisam ter estratégias de conformação e sobrevivência na modernidade e também em tempos globalizados. Narrar seus fatos, seus problemas, grandes e positivos, ou mesmo os buracos de rua, passam a ser na mesma medida – ou a acender as discussões a respeito – exercícios de um jornalismo participativo.

Jornalismo Participativo, de acordo com Bowman & Willis (2003), é o ato de um cidadão ou grupo de cidadãos atuar na coleta, reportação, análise e disseminação de notícias e informações. O objetivo dessa participação é proporcionar a independência que requer a democracia. No fenômeno do jornalismo participativo, não há critérios jornalísticos formais. É o resultado de muitas conversações simultâneas distribuídas.

Moretzsohn (2006) discute as teorizações que se constroem em torno do chamado jornalismo cidadão ou participativo e o equívoco de apontar um confronto entre cidadãos que desejam comunicar livremente e jornalistas. Em sua reflexão, Moretzsohn (2006, p. 63) também relaciona as alterações no papel do narrador às facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias da comunicação. O fato vem provocando, entre muitas outras, a profecia do fim do jornalismo tal como o conhecemos: munido de um celular com câmera, operando um blog na internet, qualquer um se transformaria em repórter.

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Uma pequena pausa para reflexão levaria, entretanto, a arrefecer significativamente o entusiasmo diante dessa perspectiva supostamente democratizante – ou, talvez mais precisamente, libertária –, que acena com o ideal do poder pulverizado entre “todos” e esconde ou despreza os mecanismos através dos quais esse mesmo poder se reorganiza nas mãos dos poderosos de sempre, ao mesmo tempo que desconsidera um aspecto fundamental para sustentar a profecia: o caráter específico da mediação jornalística, que é o que legitima socialmente esse tipo de informação e impõe procedimentos necessários para que se lhe exija a indispensável credibilidade.

A autora cita declaração de Pinto (2005) para quem o papel da edição de informação se torna a cada dia mais necessário. O pesquisador considera provável, no entanto, que esta função tenha de coexistir com formas diversificadas de produção dos cidadãos que uns chamarão jornalismo e que serão a multiplicação de polos de enunciação e a amplificação dos círculos de produção da informação e de opinião na sociedade. Na mesma linha, Pinto (2005) entende que essas tendências, a continuarem e a consolidarem-se, constituirão plataformas relevantes de acompanhamento e de escrutínio público de

media e do jornalismo.

Há ainda uma dimensão importante nas possibilidades narrativas de parte do cidadão, quando isto se relaciona ou é proporcionado pelas empresas. No caso do projeto Locast, a plataforma não está baseada em uma empresa de comunicação, mas viveria com certa independência. A observação das ofertas feitas pelas empresas evidencia outra dimensão do processo narrativo, relevante, mas que não está no centro do projeto PUCRS/MIT. Moretzsohn (2006) avalia que os acenos das empresas de comunicação ao “repórter cidadão” têm inapelavelmente esse sentido mistificador de sugerir que o “povo” fala, embora não edite. Além disso, representam uma econômica alternativa para obter matéria-prima a partir de uma mão de obra informal, que ao mesmo tempo se comove com a súbita valorização e retribui com sua audiência fiel.

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A edição é, sem dúvida, um ponto de corte fundamental. A cada dia, mais e mais espaços são oferecidos à audiência, que repentinamente passou a ser valorizada. No caso do Locast, trata-se de uma plataforma, onde não há previsão de edição final ou pós-produção do material, mas narrativas brutas, onde os fatos são apresentados sem uma finalização “perfeita”. Todavia, também não se observa nenhuma interferência da empresa RBS em critérios editoriais ou mesmo na edição final do material, antes de sua publicação.

Ainda sobre jornalismo cidadão, Moretzsohn (2006) sugere que, para recolocar a questão nos trilhos, será preciso recuperar o referencial de autoridade do jornalismo como mediador, implicado ao “quarto poder”. Para isso, pode ser necessário, segundo ela, desmistificar esse conceito e apontar o papel necessariamente político dessa mediação. Por isso, não há dúvida de que o testemunho (inclusive fotográfico ou videográfico) do cidadão sempre será importante, porém necessariamente como fonte a ser adequadamente checada. E isso se confirma na observação da produção narrativa por intermédio do projeto Locast. Todos se interessaram por narrar. Muitos narraram a cidade. Outros narraram os seus fatos, aqueles que lhes eram caros ou com os quais estavam envolvidos. Em boa dose, muitos narram para si e não para uma audiência, como se constitui nos processos tradicionais de comunicação.

Outro aspecto que interessa na observação é que são narrações resultantes do ato de deslocamento. Os jornalistas deixaram as redações com objetivos específicos, narram a partir de um fato em pauta. Seja por cidadãos ou por jornalistas, o conjunto evidencia uma narração sempre em primeira mão, o relato da fonte diretamente envolvida com o acontecimento. Convivem lado a lado na mesma plataforma Locast os fatos como pedras brutas a serem buriladas e polidas, jornalisticamente, e os fatos com suas relações e consequências, a partir de uma produção jornalística. Uma evidência que chama a atenção é o elevado número de projetos, como foram chamados, postados por profissionais da Rádio Gaúcha, pertencente ao Grupo RBS. Também foram distribuídos aparelhos de telefonia celular entre os jornalistas da Zero Hora, o jornal da mesma empresa.

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Uma possível explicação para isso pode estar relacionada ao que descreve Ortriwano (1985, p. 84) de que o rádio foi o primeiro meio de comunicação de massa que deu imediatismo à notícia, graças à possibilidade de divulgar os fatos no exato momento em que eles ocorrem. Mesmo a evolução da telefonia celular foi de grande valia para o rádio, pois aproximou o repórter da audiência, exatamente pela possibilidade de narração diretamente do lugar do acontecimento. Isso ganha força com o uso do telefone celular, alterando o conceito de velocidade e instantaneidade, define Del Bianco (2008).

O que contribuiu para aprofundar e explorar a característica do imediatismo inerente à natureza tecnológica do rádio. O tempo entre o acontecimento e a veiculação da notícia foi encurtado. A cobertura ao vivo criou uma sensação de participação do ouvinte no cenário dos principais acontecimentos políticos da época (DEL BIANCO, 2008, p. 5).

E, quando se aborda a questão do processo de produção da informação, é relevante trazer o pensamento de Ortriwano (1985), para quem a matéria-prima do jornalismo são os acontecimentos que irão ser ou não formatados como notícia. No projeto Locast, observa-se que estes acontecimentos estão todos narrados, com ou sem formatação. Composta de informação atual, que pode ser lida, escrita, filmada, é a própria rotina do jornalista que produz, formata e entrega ao público a mensagem pronta. Ortriwano (1985) considera que a atuação informativa baseia-se na notícia, que pode apresentar-se de forma pura, limitada ao relato simples do fato em sua essência ou de forma ampliada, incluindo-se a reportagem e os comentários, tanto interpretativos como opinativos. A rede da informação apresenta os fatos objetivos, precisos, para quem não pode estar no local, na hora do acontecimento.

E essa é realmente uma dimensão interessante, quando revisitamos os conceitos a respeito da produção jornalística. Se o pensamento de Certeau (1994) aponta que a virada da modernidade iluminou a enunciação, verificamos que as possibilidades tecnológicas narrativas são uma representação da chegada ao contexto contemporâneo, do que começou a ser desenhado anteriormente.

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Interessa cada vez mais, proporcionado pelas plataformas, mas também pelo interesse da audiência, o ato de enunciar. Assim, a ideia de Molotch e Lester (1993, p. 34) de que “as notícias são o resultado desta necessidade invariante de relatos do inobservado, desta capacidade de informar os outros, e o trabalho de produção daqueles que estão nos media”, que coincide com o pensamento de Ortriwano, de 1983, sobre o relato para quem não pode estar no local, precisa ser questionado a partir variante que se torna o local. No conceito de mídia locativa, descrito por Lemos (2008) e demais autores desta mesma linha, o local passa a ser determinante no processo narrativo. Enunciar daquele lugar tem mais relevância e constitui um critério acrescentado ao processo jornalístico tradicional, por intermédio da participação dos cidadãos ou não.

O jornalista, de sua parte, trabalha com acontecimentos que podem ou não ser noticiáveis. Para Rodrigues em Traquina (1993, p. 27), cada acontecimento pertence a uma escala de probabilidades de ocorrência. O fato seria, assim, mais noticiável quanto menor fosse a sua probabilidade de ocorrer.

O acontecimento jornalístico é, por conseguinte, um acontecimento de natureza especial, distinguindo-se do número indeterminado dos acontecimentos possíveis em função de uma classificação ou de uma ordem ditada pela lei das probabilidades, sendo

inversamente proporcional à probabilidade de

ocorrência. (RODRIGUES, 1993 p. 27).

O tempo determina outra característica da notícia: o imediatismo. Schlesinger destaca: “A notícia é uma mercadoria. Vista de um ponto de vista temporal, é definida pela sua qualidade efêmera e transitória”. No dia a dia das redações de rádio e televisão, pois o jornal não consegue transmitir suas reportagens instantaneamente, o imediatismo de acordo com o autor é um conceito dado ao tempo decorrente entre a ocorrência de um acontecimento e a sua transmissão pública, a notícia.

O imediatismo age como uma medida para a deteriorabilidade. Quanto mais imediatas mais ‘quentes’ são as notícias. São ‘frias’ e ‘velhas’ quando já não podem ser utilizadas durante o dia noticioso em questão. (SCHLESINGER, p. 181).

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Traquina (1993, p. 68), ao falar sobre a notícia, afirma que os jornalistas não são simples observadores passivos, mas participantes ativos no processo de construção da realidade. As notícias, segundo ele, não podem ser vistas como emergindo naturalmente do mundo real, mas acontecem na conjunção de acontecimentos e de textos. “Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento.”

No que diz respeito à narrativa, o autor entende que, embora sendo índice do real, as notícias registram as formas literárias e as narrativas utilizadas pelos jornalistas para narrar o acontecimento. Ao citar Robert Karl Manoff, Traquina (1993, p. 169) afirma que a escolha narrativa feita pelo jornalista não é inteiramente livre, mas orientada pela aparência que a realidade assume para ele, pelas convenções que moldam a sua percepção e fornecem o repertório formal para a apresentação dos acontecimentos pelas instituições e rotinas. “As formas literárias e as narrativas garantem que o jornalista, sobre a pressão tirânica do fator tempo, consegue transformar, quase instantaneamente, um acontecimento numa notícia.”

As notícias são o resultado de um processo de produção, definido como a percepção, seleção e transformação de uma matéria- prima, no caso os acontecimentos, num produto, que são as notícias. Os acontecimentos são um imenso universo de matéria-prima, pensa Traquina (1993). A observação da experiência Locast, num contexto em que convivem diferentes plataformas tecnológicas disponíveis para narração, amplia a lente ou o foco sobre todos esses conceitos. Coexistem as diferentes aparências que a realidade assume, para jornalistas e para cidadãos, o tempo de narração e de finalização passa a ser determinado, numa expressão um pouco mais forte, pela possibilidade da plataforma que o sujeito for capaz de portar, que pela não linearidade, manterá os projetos sob demanda.