• Nenhum resultado encontrado

Na plataforma Locast, o usuário pode experimentar a comunicação mediada por computador (CMC) por meio de um discurso que combina conteúdos gerados pelo usuário com indicadores de localização geográfica. Considerando que todo discurso mediado por computador é um objeto híbrido devido à complexa combinação de aspectos linguísticos e técnicos, percebe-se que a conexão entre multimídia e hiperlinks cria uma multiplicidade de possibilidades comunicativas (como descrito por Santaella, 2008). E, em uma plataforma como a Locast, há ainda uma nova dimensão de significados determinados pelas conexões prioritárias com as localidades físicas onde os conteúdos são produzidos. A convergência entre espaços físicos e espaços criados pelos meios é experimentada em todas as redes sociais da internet. Para a comunidade reunida em torno do Locast, entretanto, esses dois tipos de espacialização são o ponto de partida para a comunicação. Assim, esta é uma rede especialmente motivada pela espacialização híbrida.

A escolha da denominação “espacialização híbrida” merece uma explicação adicional. O adjetivo “híbrido”, amplamente utilizado atualmente em diferentes áreas como física, biologia, tecnologia e as artes, passou por muitas mudanças de uso desde a sua origem. Uma breve digressão pela etimologia e usos pode ajudar a compreender razão para o seu uso aqui, não somente em relação à espacialização na experiência da Locast, mas também aos vários elementos heterogêneos cuja combinação interfere nos processos de comunicação mediada por computador.

O termo híbrido vem do grego hybris. Naqueles primeiros usos, referia-se a algo que era uma insolência ou ultraje, algum tipo de

1

Locast Civic Media 75

“presunção contra os deuses”,2

Atualmente, além dos usos biológicos, o termo perdeu parcialmente as conotações negativas e tornou-se parte de noções importantes em outras áreas do conhecimento como linguística, literatura, estudos culturais e cibercultura. Em todos esses exemplos, a aplicação do termo híbrido veio de uma necessidade de referir-se a fenômenos compostos cujos elementos vêm de diferentes origens e cujos resultados mantêm a heterogeneidade de suas partes sem necessariamente compor uma nova unidade homogênea. De acordo com o Webster’s 3rd New International Dictionary, o adjetivo “híbrido”

refere-se a algo marcado pela heterogeneidade na origem, composição ou aparência. Fenômenos completamente diferentes podem ser citados como exemplos de híbridos. “Radioterapia” é uma palavra que combina o termo latino radio e o grego therapeia, mas ambos mantêm seus significados originais no termo híbrido. Um carro híbrido é aquele em que tanto o motor elétrico quanto o mecanismo a gasolina podem fornecer a energia de propulsão. Em qualquer caso, o automóvel assim chamado é uma máquina impulsionada por energia e cada uma das diferentes fontes fornece energia de acordo com suas características algo contrário à perfeição de um mundo além idealizado. Esse uso denota um pensamento que considerava a miscigenação como um tipo de violação contra as leis naturais (Bernd). Ele passou a referir algo nascido de organismos diferentes, algo com ancestrais mistos. O termo é usado em biologia para referir-se ao resultado da cruza de plantas ou animais que correspondem a uma classificação diferente (taxonomia). O peso pejorativo ligado ao termo, desde os gregos, continuou a existir em relação a descendentes mistos ou “impuros”, incluindo os seres humanos. Um pouco desse preconceito ainda permanece em alguns ideais de purismo que veem o inter- racialismo como algo negativo. Além disso, a origem etimológica é responsável pela consideração de alguns sinônimos de híbrido como bastardo, anômalo, mestiço, desnaturante (metais), adulterado, aberração, anormal, e de alguns de seus antônimos como puro, pedigree, puro-sangue.

2

Cf. Online Etymology Dictionary:

76 MENEZES, S. • Espaços híbridos, a plataforma Locast e algumas possibilidades

intrínsecas. Da mesma forma, uma videodança é um trabalho de arte híbrido onde a dança é apresentada por meio de vídeo. Ainda que seja apresentada por um meio audiovisual que depende de um aparato técnico para ser visto, o elemento dança continua a ser baseado no corpo; e o elemento vídeo, baseado na máquina.

E então chegamos às questões da CMC e suas formas de discurso híbridas. De acordo com Herring (2007), a CMC é “uma interação entre humanos, predominantemente baseada em texto mediada por computadores em rede ou telefonia móvel”.3

Graças aos desenvolvimentos tecnológicos das mídias de imagem, a predominância de texto na Web tem dividido cada vez mais espaço com imagens em muitas formas, como gráficos, fotografias e imagens em movimento. Não somente é mais fácil agora publicar e acessar as produções audiovisuais através da Web, mas também é mais fácil para o cidadão comum, não especializado em produção audiovisual, tornar-se um videomaker e repórter. Assim, plataformas para a publicação de vídeo como YouTube e Locast tiram vantagem dessa cultura de convergência (JENKINS, 2006 e 2009) e oferecem um espaço de super-hibridização. A hibridização de linguagens com a combinação de matrizes verbais, visuais e sonoras (SANTAELLA, 2001), quando mediadas por computador, é ampliada pela hibridização de espaço, tempo e do corpo e dos meios, discutidos como “espaços instersticiais” por Santaella (2008).

A autora chama de “multimodal” a CMC que combina texto com gráficos em duas ou três dimensões, vídeo e/ou áudio (HERRING, 2002). Além dos diferentes elementos que podem compor as mensagens, a forma de transmissão da CMC pode acontecer entre usuários (privadamente) ou de um usuário para toda a rede. A plataforma Locast combina a interação entre meio e usuário com características dos meios de ampla difusão (broadcasting).

Enquanto plataforma para o compartilhamento de vídeos baseados na localização gerados por usuários e considerando todas as hibridizações que advêm disso, a plataforma Locast surge como um

3

Predominantly text-based human-human interaction mediated by networked computers

Locast Civic Media 77

instrumento para o desenvolvimento do discurso mediado por computador. Inicialmente, ocorreu a experiência com o turismo em Veneza; depois, outra relacionada às mídias civis e ao jornalismo cidadão em Porto Alegre. Essas interações poderiam certamente ser expandidas para servir a muitos propósitos, não somente pragmáticos e informativos, mas também artísticos, de relacionamento interpessoal ou visando o lazer. Com isso em mente, eu comecei a imaginar algumas outras formas de tirar vantagem da plataforma e tive algumas ideias.

Olhando para a Locast como possível base para uma rede social, conectando pessoas tanto em ambientes mediados como físicos, ocorreu-me a possibilidade de um happening interativo ou mobilização ao longo de um período de tempo acontecendo através da plataforma. A ideia seria, primeiro, escolher alguns locais em uma cidade como Porto Alegre, considerados importantes sob algum tipo de critério (cultural, histórico, administrativo, ou por seus aspectos funcionais ou disfuncionais). Alguém (um nó da rede, podendo ser um indivíduo ou grupo) com uma ideia poderia sugerir um desses lugares pitorescos que pudessem ser visitados na cidade; algo do tipo “registre a sua imagem ao subir as escadas rolantes do Mercado Público de Porto Alegre”. Então, durante alguns meses, os “ativistas” iriam àquele lugar e fariam vídeos, mostrando qualquer tipo de atitude que considerassem apropriada. Essas experiências seriam compartilhadas no site: o resultado seriam imagens de pessoas que tiveram a experiência dos mesmos lugares, mas em diferentes tempos, todas reunidas e dividindo o mesmo espaço mediado e a temporalidade não diferenciada (Castells, 1999). Os contatos interpessoais motivados por esses registros poderiam combinar interações online e offline, possibilitando inclusive a pessoas que vivem nos mesmos arredores, mas nunca se encontraram, a descobrir algo em comum e construir relacionamentos.

Uma variação dessa ideia, e que me pareceu especialmente interessante devido ao meu histórico em arte, é inspirado em

performance art, que também é um gênero híbrido cujos resultados

derivam de processos de criação heterogêneos. O convite à ação poderia dizer às pessoas que fossem a esses lugares e fizessem uma ação performática como (exemplos para a cidade de Porto Alegre): faça

78 MENEZES, S. • Espaços híbridos, a plataforma Locast e algumas possibilidades

um vídeo dizendo um poema na ponte do Guaíba, dançando no túnel da Conceição ou, desenvolvendo a ideia lançada no parágrafo anterior, simplesmente subindo as escadas rolantes do Mercado Público com suas compras de uma maneira não usual. Como resultado, o site teria uma cidade virtual populada por performances daqueles cidadãos criativos que se dispusessem a fazer isso.

À parte os aspectos provavelmente utópicos dessas sugestões, a experiência Locast tem um grande potencial ao permitir que todos possam tornar-se produtores e distribuidores de mídia. Isso já é realizado em outras plataformas como o YouTube, mas o aspecto mais inovador neste projeto é a sua ênfase na conexão com os espaços geográficos. Se as primeiras gerações da era da internet sentiram o impacto da desmaterialização do conceito de “localização”, as próximas podem reencontrar o território físico sem sair dos seus espaços compartilhados no meio eletrônico. O jornalismo cidadão foi uma experiência interessante na cidade de Porto Alegre, mas muitos outros tipos de projetos podem aproveitar essa combinação de espacialidade física e virtual. Que tal fazer, por exemplo, uma coleção de formas de falar exclusivas e expressões usadas pelos habitantes de diferentes lugares com seus gestos e entonações correspondentes? Ou desenvolver uma versão customizável da plataforma, onde um usuário pudesse popular o seu mapa pessoal com vídeos de seus próprios interesses e atividades na cidade, e compartilhá-los com seus amigos ou com futuros visitantes da cidade? As possibilidades são muitas e o projeto merece muitos estudos e incentivos para que essas potências sejam descobertas e exploradas.

REFERÊNCIAS

BERND, Z. Híbrido. In: E-dicionário de termos literários. Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/H/hibrido.htm>. Acesso em: 6 junho 2010.

HERRING, S. C. A Faceted Classification Scheme for Computer- Mediated Discourse. In: Language@Internet, 4, article 1, 2007. Available at: <http://www.languageatinternet.de/articles/2007/761> Access in: oct. 6 2009.

Locast Civic Media 79

HERRING, S. C. Computer-mediated communication on the internet. In:

Annual review of information science and technology, nº36, 2002.

Disponível em: <http://ella.slis.indiana.edu/~herring/arist.2002.pdf> Acesso em: 31 março 2010.

JENKINS, H. Convergence culture: where old and new media collide. New York: New York University Press, 2006.

______. What happened before YouTube. In: BURGESS, J.; GREEN, J.

YouTube: online video and participatory culture. Cambridge: Polity

Press, 2009.

SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e pensamento; sonora, visual, verbal. São Paulo: FAPESP Iluminuras, 2001.

______. A ecologia pluralista das mídias locativas. In: Revista

A RELAÇÃO ENTRE O LOCASTPOA E SEUS INTEGRANTES: