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Introdução

A masculinidade hegemônica faz-se como uma configuração de gênero que garante a posição de superioridade do homem e de subordinação da mulher. Essa hegemonia encontra-se ainda em países do Oriente e em várias camadas da população ocidental. No entanto, considerando que as condições hoje impostas pelo patriarcado mudaram, tendo como as bases para a dominação ou hegemonia uma masculinidade particular gradualmente destruída, a posição hegemônica encontra-se, muitas vezes, ameaçada. Da suposta quebra da hegemonia masculina, símbolo da virilidade e da heterossexualidade, pode surgir o “novo homem”, aquele que, agora, tem a (ex-)posição de chefe de família questionada. Ao assumir várias identidades, esses “novos homens” saem do padrão único propagado. Não cabe mais julgar uma forma de pensar ou agir. O masculino pode não “dominar” mais. Laclau (2004) afirma que as identidades são sempre incompletas, nunca se cons- tituem de forma perfeita e acabada, e, dessa forma, as identidades femininas e masculinas hoje se apresentam como mobilidades. O mundo contemporâneo

1 Livre Docente em Crítica Literária na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce), no Departamento de Letras Modernas (DLM), campus São José do Rio Preto.

2 Doutoranda em Letras na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce), campus São José do Rio Preto.

estaria, assim, constituído por espaços desconexos, por diversos fragmentos

(ORTIZ, 1998). Susan Sontag, em The way we live now (1986), apresenta a dis-

solução cultural e social do homem que se encontra contaminado pela AIDS. A autora traz questões relacionadas à doença por meio de uma narrativa truncada, da qual o leitor tem a impressão de ser uma colagem de diálogos contados em forma de memória. Sontag procura desconstruir a visão negativa estabelecida pela sociedade de que somente uma parcela da população, os gays, pode ser so- ropositiva. Com base no pensamento de Judith Butler, analisa-se de que maneira se dá a construção do indivíduo fragmentado em meio à crise epidêmica da AIDS. O conto de Sontag será utilizado para mostrar de que forma esse “mal-estar” con- temporâneo, causado pela falta de informação e por conceitos rígidos de tradição, é discutido na literatura. Como afirma Butler (2008), é por meio do discurso que o indivíduo se constrói. Buscaremos, então, entre a palavra e o silêncio, o dito e o sugerido, analisar a figura desse homem perante os desafios contemporâneos. Palco de criações identitárias, a contemporaneidade não é afastada do cenário pintado até hoje pela humanidade e, portanto, os papéis consagrados no binarismo sexista (homem/mulher) ainda são presentes. No entanto, há aqui e agora um espaço, não precisamente maior, mas mais divulgado para questionar a dualidade. A mulher, por exemplo, já não pode mais ser vista como o segundo sexo. Já também não cabe mais ao homem o status anteriormente dado _ o de provedor viril e intocável. Homens e mulheres vivem hoje em luta por “igualdade” de direitos: para algumas, são exibidas várias vantagens antes masculinas; para alguns, é forjada a necessidade de adequação a essa nova constituição feminina e, para outros ainda, tudo continua igual. Todos dividem a cena com as identidades antes consideradas inexistentes, como, por exemplo, as transexuais, os trans- gêneros, os dragkings, dentre outras subjetividades ainda lançadas ao terreno da abjeção. O leque de opções de gênero agora aparece como amplo, revisando e revisitando a fronteira tênue dos masculinos e femininos. Torna-se possível, então, considerar um homem mais feminino, como também uma mulher com certo toque de masculinidade. O conceito de feminilidades e masculinidades é reexaminado. Notam-se mudanças, conforme o esperado. No entanto, as novas masculinidades, tais como o desenho do homem moderno, do metrossexual, do emotivo, do dono de casa, dentre tantos outros, ainda sofrem interferência das masculinidades tradicionais, do homem bruto, do viril, do machista, do pai de família. As novas identidades, fragmentadas em um contexto em que nada é fixo, ainda flutuam procurando uma forma de se construírem e de se firmarem.

Entre a palavra e o silêncio: a fragmentação do homem em tempos de AIDS

Sabe-se que o gênero não está mais ligado ao sexo, mas sim à cultura e aos discursos. Na verdade, até mesmo a cultura pode ser deixada de lado, quando um indivíduo opta por não seguir os padrões socialmente estabelecidos. Em vez disso, ele utiliza-se do discurso e de atitudes para mostrar que a heteros- sexualidade compulsória deve perder espaços, e o direito de assumir qualquer identidade de gênero deve ser possível.

Infelizmente, o enfrentamento de lutas diárias para os sujeitos considera- dos não hegemônicos ainda se dá diariamente. A prova agora é que, acima de sexo/gênero, há seres humanos. Além de preconceito e discriminação no dia a dia, algumas configurações de gênero ainda são associadas à promiscuidade e carregam o peso da culpa de se constituírem como disseminadores de uma das doenças mais temidas: a AIDS.

Descoberta na década de 70, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, também conhecida como Peste Gay, alastrou-se por diversos países em pouco tempo, levando, além da dor da morte, o pânico sobre o desconhecido. Até algum tempo atrás, pensava-se que o vírus era transmitido pelo ar, o que contribuiu ainda mais para a discriminação dos portadores do HIV. Graças à tecnologia, hoje é possível compreender as causas e o funcionamento da doença, bem como suas formas de transmissão. Há tratamentos para inibir o vírus, porém ainda não se tem informação relevante a respeito de cura. A falta de informação em alguns grupos ainda reforça antigas concepções, mesmo com os anúncios da ciência sobre a doença e sobre as formas de prevenção. A população gay é a mais atingida pela ignorância da população.

Em 1986, ano em que é anunciado o coquetel de três drogas efetivas para o tratamento da doença nos Estados Unidos, Susan Sontag descreve, em um ensaio literário significativo, as angústias sofridas por um soropositivo, iro- nicamente “representado” no texto como infectado por meio de uma relação homossexual. Sontag toca na ferida de maneira magistral, colocando amigos do protagonista como pessoas que fazem de tudo para vê-lo bem. A discriminação é citada de forma sutil, mas parte de fora do âmbito dos amigos. Sontag não divulga o nome da doença, nem ao menos nomeia a personagem, procurando desconstruir a visão negativa que associa que todo o mal causado pela AIDS só pode ser transmitido por indivíduos gays.

Ainda em meados da década de 80, ápice da epidemia da AIDS e do precon- ceito contra os homossexuais, a não aceitação de um soropositivo na sociedade era algo comum. Havia poucas informações a respeito da doença e uma grande

necessidade de se encontrar os “culpados” por essa catástrofe. Sontag traz, in- diretamente, em seu conto, essas questões sociais, juntamente com as questões de gênero. Por meio da fragmentação dos diálogos e dos pensamentos, Sontag apresenta a história do homem sem identidade infectado. É de forma amena, sem escancarar a doença e o contexto desta, que a voz narrativa descreve a história de vários soropositivos escondidos por trás do medo e da vergonha da identifi- cação. Ao contrário do que a sociedade espera, a escritora coloca-o como não abjeto: os amigos promovem a “vítima”, não poupando esforços para agradá-lo.

A publicação do conto “The way we live now” (1986) pode ter ido contra o esperado na época, mas vai ao encontro da concepção de gênero lançada por Judith Butler (1990), segundo a qual todo indivíduo, independente de sexo ou gênero, tem direito à vida e a vivê-la bem. Propõe-se, assim, trazer discussões sobre o texto supramencionado sob o viés da performatividade e da descons- trução, tal como propostas por Butler, traçando um percurso das questões de gênero, passando pela heterossexualidade compulsória, pelos corpos abjetos e pela queda/ruína da masculinidade hegemônica, a fim de mostrar que, no conto da escritora, o gênero é subvertido: a heterossexualidade deixa de ser compulsória e a masculinidade dá lugar a uma subjetividade provisória, queer. O indivíduo que se faz sem nome é parte do âmbito do marginalizado, por ser gay e soropositivo, logo um corpo tradicionalmente tido como abjeto. No entanto, o argumento desenvolvido por Sontag não poupa a sociedade de incluir seus membros _ o abjeto é inserido na sociedade por amigos que lhe querem bem.

Entre o dito e o sugerido: gênero, fragmentação e