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Reinaldo Arenas: contrarrevolucionário, homossexual, cubano

Ao longo da autobiografia de Reinaldo Arenas, sua homossexualidade ocupa um papel central, bem como a forma como ela é reprimida pelo poder estatal. Seus diversos relacionamentos, vivenciados inicialmente em hotelitos de mala muerte, nas palavras de Vargas Llosa (1992), e depois, à medida que o controle estatal se tornava mais rígido, em banheiros públicos, matagais, quartéis, carros abandonados, dentro do mar e nos miseráveis quartos que habitava, são narrados em Antes que anochezca.

No verão de 1973, Reinaldo Arenas e seu amigo Coco Salá mantiveram relações sexuais com alguns rapazes na praia de Guanabo. Nessa situação, foram roubados pelos rapazes, e, quando Coco Salá chamou a polícia, os rapazes detur- param o relato dos fatos. De qualquer maneira, mesmo que não o tivessem feito, de acordo com as leis então vigentes em Cuba, Reinaldo Arenas e seu amigo Coco Salá estavam cometendo um grave delito. Arenas procurou um advogado para que cuidasse de seu caso, advogado esse que apresentou toda a sua produção literária, publicada no exterior, sem a autorização da UNEAC. Dessa forma, ao “delito” de homossexual se somava o “delito” de contrarrevolucionário, tendo a

sua produção literária como prova.

Após algum tempo conseguindo escapar e se esconder, e depois de uma tentativa frustrada de fuga do país, Reinaldo Arenas foi capturado e levado a Castillo del Morro, uma fortaleza colonial que havia sido construída pelos espanhóis para se defender de ataques de piratas e corsários ao porto de Havana. Arenas acreditava que aquela era, talvez, a pior prisão de Cuba, para onde iam os piores delinquentes. No período em que esteve na prisão, Reinaldo Arenas não teve relacionamentos, por acreditar que, nas prisões, as relações ocorriamm sob o signo da submissão:

Me negaba a hacer el amor con los presidiarios aunque algunos, a pesar del hambre y del maltrato, eran bastante apetecibles. No había ninguna grandeza en aquel en aquel acto; hubiera sido rebajarse. Además, era muy peligroso; esos delincuentes, después de que poseían a un preso, se sentían dueños de esa persona y de sus pocas propiedades. Las relaciones sexuales se convierten, en la cárcel, en algo sórdido que se realiza bajo el signo de la sumisión y el sometimiento, del chantaje y de la violencia; incluso, en muchas ocasiones, del crimen (ARENAS, 1996, p. 205).

Reinaldo Arenas: o menino inoportuno de Cuba

Essas palavras de Reinaldo Arenas, sua concepção de que as relações sexuais dentro do presídio se convertiam em relações baseadas na submissão e, dessa forma, não tinham o que ele considerava belo em uma relação sexual, que era a espontaneidade da conquista, demonstram o valor que o narrador/protagonista dava à liberdade, realçada por Vargas Llosa (1992) quando considera que, para Reinaldo Arenas, o direito ao prazer sempre foi indissociável do combate pela liberdade política. Nas palavras do próprio Arenas (1996), sua abstinência sexual na prisão não ocorreu apenas por questões de precaução, mas especialmente porque, para ele, relacionar-se com alguém na prisão não tinha sentido, uma vez que, em sua concepção, o amor era algo livre e a prisão, algo monstruoso e, dessa forma, o amor se converteria em algo bestial.

Após sair da prisão de Castillo del Morro, Reinaldo Arenas foi conduzido a uma prisão aberta, onde trabalhava da madrugada até oito ou nove da noite, segundo relata em Antes que anochezca, construindo edifícios para os soviéti- cos. Nessa época, a lógica do trabalho para construção do futuro da revolução passou a ser um fundamento inquestionável, e as prisões abertas, que tinham como objetivo a reeducação dos cidadãos indesejáveis para o governo, tor- naram-se um local apropriado para o exercício da lógica do trabalho. Walter Benjamin (1994) criticou a apropriação da ética do trabalho pelo marxismo, visto que a proposta marxista era libertar o homem que não era detentor dos meios de produção da sua condição de escravo e não torná-lo escravo de uma nova ética do trabalho. Benjamin (1994) lembra que, no programa de Gotha, o trabalho é definido como “a fonte de toda a riqueza e de toda a ci- vilização” (BENJAMIN, 1994, p. 227) e, assim, já continha elementos de uma possível confusão, que poderiam fazer com que o marxismo se apropriasse da ética protestante do trabalho. Mas, “pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser ‘o escravo de outros homens, que se tornaram... proprietários’” (BENJAMIN, 1994, p. 227).

A lógica do trabalho evidencia-se ainda mais quando Reinaldo Arenas (1996) relata o tempo de condenação aos trabalhos forçados e o desgaste a que os trabalhadores estavam submetidos:

Muchos allí estaban condenados a treinta años y ya llevaban presos casi quince; habían envejecido debido al trabajo forzado. Toda la vida de aquellos hombres había sido destruida por aquel sistema; habían

entrado a la cárcel con dieciocho años y muchos de ellos ya tenían casi cuarenta y sólo estaban a la mitad de su condena (ARENAS, 1996, p. 242).

Ao sair da prisão aberta, Reinaldo Arenas percebeu o quanto a apropriação da ética do trabalho alastrou-se pela ilha, a tal ponto que o acesso ao mar apenas era permitido para os trabalhadores sindicalizados, que fossem filiados à Central de Trabajadores de Cuba e que estivessem com a anuidade em dia. Essa lógica, que a cada dia tornava-se mais perversa, criou dois tipos de trabalhadores: os que estavam inseridos no modelo da apropriação da ética do trabalho e os que estavam completamente excluídos desse sistema, como era então o caso de Reinaldo Arenas, quando saiu da prisão.

Após alguns anos ainda vivendo em Cuba, e algumas tentativas frustradas de fugir do país, Arenas finalmente conseguiu deixar Cuba, em 1980. Em abril desse ano, a Embaixada Peruana em Cuba foi invadida por milhares de pessoas, pedindo asilo político. Como uma forma de contornar essa situação, o governo de Fidel Castro decidiu abrir o porto de Mariel, para que essas pessoas, consideradas antissociais pelo Estado, deixassem Cuba, considerando que deixar as pessoas inconformadas saírem era como fazer uma sangria em um corpo enfermo:

Fidel y Raúl Castro habían estado frente a la embajada del Perú. Allí, por primera vez, Castro escuchó al pueblo insultándolo, gritándole cobarde y criminal; pidiéndole la libertad. Fue entonces cuando Fidel ordenó que los ametrallaran, y aquella gente que llevaba quince días sin apenas comer, durmiendo de pie, porque no había espacio para acostarse y sobreviviendo en medio a excrementos, respondió cantando el himno nacional ante aquel tiroteo, que hirió a muchos.

A punto de que estallara una revolución popular, Fidel y la Unión Soviética decidieron que era necesario abrir una brecha, dejando salir del país a un grupo de aquellos inconformes; era como hacerle una sangría a un organismo enfermo. En medio a un discurso desesperado y airado, Castro, junto a García Márquez y Juan Bosch, que aplaudían, acusó a toda aquella pobre gente que estaba en la embajada de antisociales y depravados sexuales. Nunca podré olvidar aquel discurso de Castro con su rostro de una rata acosada y furiosa, ni los aplausos hipócritas de Gabriel García Márquez y Juan Bosch, apoyando el crimen contra aquellos infelices cautivos (ARENAS, 1996, p. 298-299).

Reinaldo Arenas: o menino inoportuno de Cuba

A abertura do porto de Mariel resultou na saída da ilha não apenas dos manifestantes que haviam invadido a Embaixada do Peru em Cuba, mas também de pessoas que o governo cubano tinha interesse em retirar da ilha, tais como delinquentes comuns que estavam em prisões, agentes secretos que se desejava infiltrar em Miami e doentes mentais, tudo custeado pelos cubanos que já haviam saído de Cuba e desejavam buscar seus familiares.

A algumas pessoas, a saída da ilha de Fidel Castro era dificultada, uma vez que o governo de Cuba teria tido o cuidado, segundo relata Arenas (1996) em Antes que anochezca, de deixar sair da ilha apenas as pessoas não pudessem prejudicar a imagem do governo no exterior, e também não se permitia a saída de profissionais graduados nas universidades nem de escritores com livros publicados no exterior, como era o seu caso. Entretanto, havia uma ordem para deixar que todas as pessoas indesejáveis abandonassem a ilha, e dentre elas estavam, em primeiro lugar, os homossexuais: “Frente a la pared de mi cuarto habían colgado varios cateles que decían: QUE SE VAYAN LOS HOMO- SEXUALES, QUE SE VAYA LA ESCORIA” (ARENAS, 1996, p. 301). A constatação de que Reinaldo Arenas havia sido preso por um escândalo público, presente em seu carnê de identidade, facilitou sua saída de Cuba. Para isso, Reinaldo Arenas dirigiu-se a uma delegacia, com o objetivo de declarar-se homossexual e solicitar a saída do país.

Durante o exílio nos Estados Unidos, os escritores cubanos criaram a revista Mariel9, evidenciando a relação de conflito que as literaturas menores

tinham tanto com as literaturas canônicas como com a lei cubana. Essa revista, que teve vida curta, contando apenas com oito números, da primavera de 1983 ao inverno de 1985, levava o nome do porto de Havana que serviu como ponto de saída ao êxodo ocorrido em Cuba em 1980 e tinha, em seu conselho editorial, escritores que saíram de Cuba através do porto de Mariel e que compartilhavam a exclusão tanto do território nacional como da literatura cubana (CORREA MUJICA, 2003).

9 A tentativa de entrar na instituição literária cubana por meio de uma revista tem uma longa tradição nas letras cubanas, podendo-se pensar nas revistas Orígenes, Lunes de Revolución, El Caimán

Barbudo, La Revista de Avance. No caso dos escritores da Generación del Mariel, sua irrupção

nos espaços de consagração vinculados com o literário e com a literatura tem duas estratégias essenciais: por um lado, a atitude desse grupo diante da tradição literária cubana e, por outro, a subversão que muitos deles faziam de uma série de temas e conceitos consagrados pela literatura cubana do período revolucionário.

Reinaldo Arenas, uma figura central da Generación del Mariel, teve grande parte de sua obra produzida de maneira clandestina, e sua circulação ocorreu tanto à margem dos espaços de consagração literária como à margem da lei. Os escritores cubanos que viviam nos Estados Unidos antes do êxodo de 1980 consideravam que os textos dos escritores da Generación del Mariel ocupavam um lugar marginal, pois as temáticas de seus textos fugiam das categorias com as quais se organizavam os textos considerados significativos. Para os escritores da Generación del Mariel, temáticas como o enfrentamento de duas heranças culturais, a nostalgia pelo território perdido, a mescla de diferentes línguas não eram temáticas necessariamente significativas, como o eram para os escritores que estavam em Cuba ou para os que viviam nos Estados Unidos antes do êxodo de Mariel. Os escritores da Generación del Mariel tematizavam mais, em seus textos, condutas e práticas sexuais heterodoxas, o que fez com que não fossem integrados nos espaços culturais cubanos pré-existentes.

O próprio autor de Antes que anochezca relata em sua autobiografia que a revista Mariel não era bem aceita, exceto por um pequeno grupo de intelectuais. Nesse contexto, deve-se retomar a concepção de Florestan Fernandes (1979), segundo a qual o impulso puritano e moralista, presente na sociedade cubana de então, não teria relação com a tradição marxista, das correntes socialistas absorvidas em Cuba, mas teria mais relação com as experiências históricas anteriores do país, como uma resposta tardia de repúdio a uma corrupção que corroeu a sociedade cubana no passado. Segundo Fernandes (1979), como todas as grandes revoluções, a Revolução Cubana criou os seus mitos, que definiram sua realidade histórica e seu impacto utópico. Nesse sentido, segundo o sociólogo brasileiro, Ernesto Che Guevara e Fidel Castro aparecem como férteis criadores de mitos, como “homens de consciência íntegra”, que, em suas palavras, não recuavam diante de dificuldades ou obstáculos.

A concepção de Fernandes (1979) de que o impulso puritano e moralista presente na sociedade cubana de então estaria mais relacionado com experiên- cias históricas anteriores ajuda a elucidar o papel marginal que os escritores da Generación del Mariel ocuparam entre os outros escritores cubanos que já viviam nos Estados Unidos, antes do êxodo de 1980. O fato de a temática abordada na produção literária dos escritores da Generación del Mariel, escrito- res esses, em sua maioria, homossexuais, não agradar aos cubanos já presentes nos Estados Unidos antes de 1980, propicia que se pense que o ímpeto puritano e moralista poderia estar mais relacionado a aspectos histórico-culturais

Reinaldo Arenas: o menino inoportuno de Cuba

internalizados na população cubana do que às práticas repressivas do regime castrista, apesar de terem se acentuado nesse governo.

Enrique Morales-Díaz (2009) acredita que o tratamento direcionado aos homossexuais em Cuba pelos cubanos era um reflexo da situação das mulheres no país. O autor retoma o pensamento de Simone de Beauvoir, segundo o qual, em uma sociedade patriarcal e falocêntrica, as mulheres e sua ascensão em um estatuto legal são definidas por sua relação com os homens, dos quais se origina a decisão que permitirá a união, através do matrimônio, de ambos. Dessa forma, a dicotomia entre homens e mulheres, na qual o gênero masculino se acredita superior ao gênero feminino, ajuda a explicar o preconceito para com os homossexuais. Baseado na questão patriarcal e em uma atitude machista da sociedade cubana, os homossexuais se divergiam das tradicionais expectativas direcionadas ao comportamento masculino ( MORALES-DÍAZ, 2009).

Reinaldo Arenas (1996), entretanto, é enfático ao considerar Fidel Castro como o único responsável por seus sofrimentos e infortúnios. Em uma carta de despedida, publicada, a pedido do autor, ao final de Antes que anochezca, Reinaldo Arenas explica as razões que o levaram a cometer suicídio. Já em um estado de saúde precário, devido às complicações causadas pelo vírus HIV, e se sentindo sem condições de seguir escrevendo e lutando pela liberdade em Cuba, o escritor decide colocar fim à sua vida. Esclarece que ainda tem esperanças de que um dia a liberdade chegue a Cuba e se sente satisfeito, antecipadamente, por poder ter contribuído para o triunfo da liberdade. Reinaldo Arenas aproveita sua carta para destacar que nenhuma das pessoas que o rodeavam estava com- prometida em sua decisão e que o único responsável por ela era Fidel Castro:

Ninguna de las personas que me rodean están comprometidas en esta decisión. Sólo hay un responsable: Fidel Castro. Los sufrimientos del exilio, las penas del destierro, la soledad y las enfermedades que haya podido contraer en el destierro seguramente no las hubiera sufrido de haber vivido libre en mi país (ARENAS, 1996, p. 343).