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A REPRESENTAÇÃO DAS SEXUALIDADES

João Luis Pereira ourique

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ana Luiz a nunes aLmeida

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A crescente visibilidade conferida à literatura homoerótica faz perceber o interesse social em relação à representação dessa temática no discurso literário. Ainda que a reflexão sobre a homossexualidade permaneça associada aos padrões heteronormativos, os quais incorporam as tensões sociais, a pos- sibilidade de expressão sobre o assunto, através do texto literário, permite um diálogo crítico acerca de questões relacionadas à problemática de gênero e construção de identidades subjetivas.

Considerando essa questão e possibilidades, a literatura homoerótica evidencia o relacionamento homoafetivo, transgredindo _ em um primeiro momento _ a cultura heteronormativa, comum na literatura tradicional. Entre- tanto, essa transgressão nem sempre se sustenta perante uma leitura crítica do texto literário, visto que a forma como a narrativa é elaborada se assemelha ao padrão heterocultural, ou seja, não há uma subversão à norma, mas uma explicita- ção da minoria homossexual, condicionada a uma invisibilidade social e literária. Com o intuito de refletir sobre as minorias sexuais, submetidas à segre- gação, a teoria queer sustenta a análise da literatura homoerótica, entendendo que a heterossexualidade só existe em oposição à homossexualidade, a qual é

1 João Luis Pereira Ourique é Professor Adjunto da Universidade Federal de Pelotas.

2 Ana Luiza Nunes Almeida é mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Pelotas e doutoranda em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

compreendida como seu negativo e abjeto.Nesse sentido, a teoria queer critica os padrões heteronormativos impostos, mas, também, rejeita definir a identidade a partir da condição homossexual, pois nega a normatização de uma “identidade gay”, entendendo que essa padronização reduz a multiplicidade e a diferença de identidades existentes. Assim, percebendo a dificuldade de romper com os binarismos construídos socialmente, essa proposição questiona a naturalização dos padrões heteropatriarcais, concebendo o sujeito distante do conceito de identidade fixa, assumindo diferentes identidades em diferentes momentos, as quais são “contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2011, p. 13). Entretanto, a literatura homoerótica ainda não superou a heterormatividade, tor- nando-se reprodutora da ordem, visto que, mesmo introduzindo relacionamentos homoafetivos às narrativas, condiciona os seus discursos a um disciplinamento da representação homossexual, integrando-a à norma instituída socialmente.

A noção essencialista de sexo, atrelada a um gênero determinado, culmina na estabilidade da construção identitária, padronizando-a, de modo a condi- cionar as identidades consideradas desviantes, instaurando uma normatização e coibindo a identificação subjetiva do sujeito. Butler (2013) acredita que pensar as minorias sexuais a partir de identidades estáveis cria ficções fundacionistas, as quais só reiteram o discurso heterormativo:

Neste sentido, o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero. Consequentemente, o gênero mostra ser per-

formativo no interior do discurso herdado da metafísica da substância

_ isto é, constituinte da identidade que supostamente é (BUTLER, 2013, p. 48, grifos da autora).

A partir do entendimento de que o conceito de gênero está atrelado a uma conduta heteronormativa, a qual dita os comportamentos aceitáveis social- mente, é possível compreender os motivos que fazem as relações homoafeti- vas serem rotuladas como imorais e subversivas. Vistos como transgressores, tais relacionamentos são considerados marginais, pois destoam dos padrões sociais vigentes, construindo-se, então, sob mensagens subentendidas, sendo condicionados a uma invisibilidade impositiva.

Caio Fernando Abreu, Cíntia Moscovich e a representação das sexualidades

A literatura, a partir de seu discurso, possui a capacidade de transmis- são de ideologias3, entretanto o texto literário não pode ser visto como um

documento ou reflexo de determinado contexto social, mesmo que a interação entre ambos deva ser levada em consideração para uma reflexão consistente sobre a obra e os diversos contextos que a ela convergem e dela divergem. Nesse sentido, desnaturalizando a noção essencialista de sexo e de gênero, a teoria queer também sustenta a ideia de que o gênero é pensado como um produto de uma performance. Sob esse enfoque, a novela Duas iguais (1998), de Cíntia Moscovich, e os contos “Terça-feira gorda” e “Aqueles dois”, incluídos no livro Morangos mofados (1982), de Caio Fernando Abreu, serão analisados, a fim de entender a construção identitária das personagens homossexuais e a forma como o discurso homoerótico é apresentado nas narrativas, remetendo à ideia de que a literatura “é em si mesma uma prática crítica aos padrões ideológicos e aos vetores axiológicos de uma dada cultura, no outro, temos textos que sim- plesmente (re)produzem essas mesmas ideologias e axiologias” (BARCELLOS, 2006, p. 44-45).

As personagens representadas nessas narrativas se enquadram na definição de homossexuais, visto que desenvolvem relacionamentos sexuais e afetivos com outras do mesmo sexo. Todavia, não compreendem uma unidade homos- sexual, pois suas caracterizações são múltiplas e performatizadas de acordo com as possibilidades permitidas pelos meios sociais nos quais estão inseridas. Ancorado nessa percepção, o debate proposto refletirá sobre as diferentes re- presentações identitárias apresentadas nas narrativas analisadas, corroboran- do com a noção de identidade subjetiva, a qual melhor sustenta a análise dos sujeitos representados. Consequentemente, será percebida a pluralidade de identificações4 e, portanto, concluir-se-á, alicerçado nos estudos queer, que “a

identidade (e, em alguns sentidos, o próprio sujeito) é concebida como um efeito dos discursos, isto é, como ‘performativa’” (ALÓS, 2010, p. 855) e a forma como as narrativas são construídas se aproxima dos padrões estabelecidos socialmente. 3 Segundo Bakhtin (1995), o signo é ideológico por excelência, sendo, portanto, intrínsecas à litera-

tura a ideologia e suas construções voltadas para afirmações e negações acerca das identidades culturais.

4 O conceito de identificação utilizado é proposto por Hall (2011), o qual percebe que “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (HALL, 2011, p. 39, grifo do autor).

A literatura homoerótica se alia à necessidade de pensar sobre as identida- des não hegemônicas, apresentando narrativas que discutem as relações entre pessoas do mesmo sexo e que permitem a análise da representação do gênero determinado e condicionado socialmente. Seguindo o pensamento que permite apreender a noção de gênero como limitador da construção identitária e criado para garantir a hegemonia masculina, observa-se que as definições de hétero e homo foram instituídas com essa mesma finalidade, pois, “em uma sociedade em que os homens não oprimissem as mulheres e fosse permitida a expressão sexual dos sentimentos, as categorias da homossexualidade e heterossexuali- dade deixariam de existir” (KATZ, 1996, p. 18).

Assim sendo, ao se continuar colocando os binarismos de sexo, de gênero e de sexualidade a partir dos conceitos estipulados pelo patriarcado, a tendência será de reprodução e retextualização dos discursos dominantes e, em vista disso, a sua superação e desconstrução serão nulas. A compreensão que se sugere é a de que esses conceitos são construções e as suas representações são elaboradas de acordo com o meio social e, também, a partir da desconstrução dos padrões impostos.

Isso posto, ao argumentar que “o discurso da heterossexualidade nos oprime no sentido de que nos impede de nos falarmos a não ser que falemos em seus termos” (WITTING apud LAURENTIS, 1994, p. 227), será introduzida a análise das obras literárias, a fim de discutir a forma como a homoafetividade é abordada nelas, a partir dos elementos utilizados por Cíntia Moscovich e Caio Fernando Abreu para a construção identitária das personagens que desenvolvem relações homoafetivas. Propor-se-á, então, a reflexão de como essas persona- gens representam a homossexualidade, pontuando que não há unidade nessa representação e evidenciando, em um primeiro momento, a transgressão que seus discursos provocam à cultura hegemônica e, em seguida, a aproximação que os mesmos fazem ao padrão heterocultural, projetando a sua aceitação pelo meio social.