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Mulheres escritoras e escritas femininas

Em estudo sobre escritoras brasileiras e escrita feminina do século XIX, Norma Telles é contundente e precisa: historicamente, a mulher foi musa inspiradora ou criatura, nunca criadora. Por serem consideradas sem poder criativo, elas foram personagens literários, não integrantes dos cânones ou da carreira de letras, considerada ofício de homem. Excluídas do processo de criação cultural, eram leitoras do que sobre elas se escrevia. Como diz Telles (2012, p. 84), “as mulheres que pretendiam escrever encontravam projetadas no seu espelho todas as personagens trazidas ao seu universo pelos escritores”. Sujeitas à autoridade/autoria masculina, não eram autoras de suas histórias. A cultura burguesa, lembra Telles, fundada em binarismos e oposições hierar- quizantes, tais como natureza/cultura, mulher/natureza e homem/cultura, relegou à mulher a reprodução da espécie e sua nutrição, não a criação, esta última reservada à razão, à política e à cultura masculinas.

Efeito de uma matriz heterossexista e misógina, de uma cultura mascu- linista que historicamente se constituía ao longo do século XIX, a educação, e mesmo a instrução, para além das prendas domésticas, a autonomia e a subje- tividade _ três elementos indispensáveis para a formulação do “eu”, para o ato artístico e estético da criação _, foram negados e vilipendiados das mulheres, pois não eram considerados próprios da “natureza feminina”.

No entanto, mulheres do século XIX, não só na Europa, como também no Brasil, buscaram reverter esse jogo e viraram a mesa. Sobretudo a partir

Escritas de si e artes de viver transgênero: as insubordinações de uma escrita trans?

do surgimento do romance moderno, as mulheres burguesas começaram a escrever e a publicar, não se limitaram mais à posição de leitoras, participaram da vida intelectual regional ou do Império, como no caso dos movimentos, so- ciedades e clubes abolicionistas, não esquecendo os diversos jornais feministas. No Brasil, Nísia Floresta, Maria Firmina dos Reis, Ana de Barandas, Narcisa Amélia de Campos, Maria Benedicta Camara Bormann, Júlia Lopes de Almeida, entre outras, denunciaram os preconceitos da sociedade patriarcal brasileira, fizeram campanhas pela educação e pela emancipação da mulher, advogando a participação da mulher na política e nas lutas sociais, rompendo, assim, com a ideia de incapacidade feminina para a luta e para a política, tão presente em discursos masculinos brasileiros do século XIX. Imprimiram um novo modo de embate a favor da liberdade educacional e artística da mulher. Nas palavras de Telles, “Nísia trata, por isso, da ausência da mulher no mundo, dos limites impostos pelos homens à sua educação, pois a eles não interessava contrariar um modelo de sociedade que lhes havia dado o domínio” (TEllES, 2007, p. 406). O fazer-se escritora no Brasil é historicizado e politizado nas reflexões de Telles (2007, p. 408):

Excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de ocuparem cargos públicos, de assegurarem dignamente sua própria sobrevivência e até mesmo impedidas de acesso à educação superior, as mulheres do século XIX ficavam trancadas, fechadas dentro de casas ou sobrados, mocambos e senzalas, construídos por pais, maridos, senhores. Além disso, estavam enredadas e constritas pelos enredos da arte e da ficção masculina. Tanto na vida quanto na arte, a mulher no século passado aprendia a ser tola, a se adequar a um retrato do qual não era a autora.

Ao enfrentar e desestabilizar a excludente cultura masculina que cui- dadosamente mantinha a pena fora do alcance feminino, mulheres do século XIX começaram a escrever e escreveram bastante, atesta Telles. Em jornais, romances, contos e poemas, usurparam o dom definido como exclusivamente masculino. Criaram, ressignificaram e deram visibilidade às polêmicas de seu tempo, às lembranças, às ideias e às histórias. Instituíram fluxos femininos e feministas, permitiram a conquista do território da escrita, da carreira de

letras, e defenderam a ampliação da participação política. No entanto, o flanco masculino estava astuciosamente atento aos pleitos femininos e feministas. Norma Telles identifica procedimentos de exclusão que têm, nas palavras de Foucault, históricas funções de controle, seleção e organização dos discursos femininos-feministas. Para ela, vários comentários e críticas demonstravam:

[...] o duplo patrão da crítica, isto é, critérios diferenciados para julgar ou comentar obras de homens e obras de mulheres. Nota-se que para esses críticos as escritoras deveriam permanecer no ‘seu lugar’; aquele que lhes era atribuído e se situava bem longe da esfera pública, com suas lutas e batalhas para modificar a sociedade. O lugar da mulher de letras seria a esfera ‘perfumada’ de sentimento e singeleza (TEllES, 2007, p. 422).

Como é evidenciado por Telles, a conquista de posições, a pose da pena, a afirmação do talento, da inspiração e da expressão femininas foram vitórias, mas ao mesmo tempo instauraram novas relações de poder, pela censura, pelos comentários, pelos tabus de objetos, pelo direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala, como já explicara Foucault (1996). Telles identifica e historiciza interdição à fala e à escrita femininas. Nesse sentido, ela continua: “Esperava- se das mulheres que escrevessem livros exaltando os valores culturais. Espe- rava-se que seus textos fossem graciosos e gentis. Não por acaso, em geral, a crítica nacional considerada tais mulheres escritores menores” (TEllES, 2012, p. 57).

Estratégias, recursos e dispositivos que insistiam na desqualificam das mulheres, reforçavam a imagem da inferioridade feminina. Elas, as mulheres, não seriam talhadas para as lutas políticas, no máximo um “ornamento” para a poesia pátria, constata Telles. Além do mais, essas mulheres, circunscritas na e pela experiência emocional-pessoal, precisariam travar outras batalhas, pois “[...] a estética romântica ofereceu às mulheres um impulso para a desobediência, para saírem de si rumo a peregrinações e em busca de novas ideias e visões, ela também impunha-lhes limitações” (TEllES, 2007, p. 425). Ao provocar abalos e ao esgarçar a autoridade masculina no campo das letras, da escrita e da escritura, essas mulheres não só abriram espaço para a escrita feminina, como também ajudaram no histórico processo de emancipação feminina da tutela masculina. A emergência de histórias de mulheres, de histórias das vontades

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do dizer feminino. A experiência da criação e da escrita possibilitaram novas subjetividades femininas, experimentações de outras formas de viver, de his- tóricos modos de relações consigo mesmas, de escritas de si.

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