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Literatura gay? escritas e estéticas da existência homossexual

Em artigo sobre a estética da existência homossexual, Durval Muniz de Al- buquerque Júnior se vale de problematizações e análises de Michel Focault para refletir sobre a literatura escrita por homossexuais, narrativas que, segundo ele, ao contrário daquelas escritas por autores heterossexuais, vão passar ra- pidamente pelo momento da corte e se deleitarão na descrição do momento do encontro dos corpos e dos sexos (AlBuquERquE JR., 2010, p. 41). São narrativas que constituem outra temporalidade, a da experiência dos encontros fortuitos. Temporalidade ora mais alongada, tempo da solidão, tempo de ruminação lenta, ora mais intensiva, intensa, urgente e instantânea.

Sob o signo da urgência, da rapidez e da instantaneidade se apoiaria um estilo de vida, uma cultura, uma estética da existência elaborada por homosse- xuais no mundo ocidental contemporâneo. Dessa maneira, observa Albuquerque Júnior, a temporalidade presente nas relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo seria mais fugaz, ainda mais passageira. Amores que não têm tempo ou que não têm tempo a perder! Historicamente silenciados, emudeci- dos pela cultura masculina heterossexista e heteronormativa, proibidos de se manifestarem em público, impedidos de dizerem o nome, não haveria nesses amores, insiste o autor, muito tempo para a fala, para a discussão da relação, para a elaboração discursiva, para a invenção narrativa da relação afetiva.

Os homossexuais tiveram historicamente à disposição fragmentos de um discurso amoroso que não lhes dizia respeito, elaborado em torno das relações afetivas heterossexuais. Como Albuquerque Júnior sublinha, “os amantes ho- mossexuais sofreriam de uma espécie de afasia, por se sentirem sempre des- locados, fora de lugar, ridículos naquele discurso” (2010, p. 45); discurso de um outro amor, de outras e diferentes experiências afetivas e sexuais. Não contavam suas vidas, não tinham à disposição recursos narrativos, pois as histórias, os amores, as alegrias e as dores eram todas criadas e narradas em padrões e estéticas heterossexistas. logo, foi necessário investir toda a criatividade e

desejo na construção de uma estilística da existência em torno do coito, do corpo a corpo do sexo.

Durval Albuquerque Júnior compara a literatura homossexual com a heterossexual. A primeira se dedicaria à descrição detalhada e demorada do ato sexual. A segunda estaria impregnada pelo pudor no momento de falar da dimensão corporal das relações afetivas. Pistas para explorar essa diferenciação serão encontradas nas historicidades das relações e das escritas, da imaginação, dos prazeres e da escritura. Assim,

a chamada literatura heterossexual vai valorizar o que seria o período, o tempo da corte, aquela temporalidade que antecede o ato sexual, que pode, nestas relações, se estender por anos. Os amores heterossexu- ais, por serem reconhecidos, legitimados e valorizados socialmente, por contarem com suportes legais, institucionais e culturais, poderem durar... A Literatura ocidental dedicou e dedica muitas páginas à ela- boração discursiva, à narrativização dos amores heterossexuais... O casal heterossexual dispõe de tempo e de modelos narrativos para elaborarem discursivamente a sua relação... dispõem de um rico arquivo de imagens (AlBuquERquE JR., 2010, p. 45-46).

Produto de outra temporalidade, a do tempo concentrado, do encontro fortuito, urgente e passageiro “dos amores que muitas vezes não tiveram tempo nem de dizer os seus nomes” (AlBuquERquE JR., 2010, p. 46), os amores e as narrativas homossexuais só ganham sentido e significado quando o ato sexual acaba. Nas palavras de Albuquerque Júnior (2010, p. 46), “é quando o amante se afasta, quando foi embora, que este encontro, que este corpo, que a relação vai ser trabalhada pelo imaginário”. Enquanto nas relações sexuais heterossexuais a fantasia antecede o ato sexual, serve-lhe de estímulo, dá a ele colorido prévio, prepara a sua significação, as relações homossexuais, por sua instantaneidade, vão alimentar fantasias acerca do que já se passou. Muitas vezes é ao narrar a aventura sexual porque passou, para seus amigos, para outros homossexuais, que o amante fantasiará sobre o corpo, sobre o ato, sobre a própria relação que teve com este outro. Na escrita homossexual, somente após a urgência da fricção, poderia advir o momento da ficção, da construção de um corpo poético. Ainda seguindo as pistas oferecidas por Albuquerque Júnior, como acon- teceria na maioria das vidas clandestinas, os homossexuais construíram um

Escritas de si e artes de viver transgênero: as insubordinações de uma escrita trans?

estilo de vida, uma estética da existência baseada na maximização do uso do tempo. Fazer tudo o mais rápido possível parece ser a fórmula, a possibilidade de realização de desejos e sonhos. Por isso, impossibilitados de reproduzirem o modelo do amor romântico heterossexista, ainda idealizado e propagado, inclusive como único modelo de felicidade e realização pessoal, os homosse- xuais vêm inventando diferentes tipos de relações afetivas e amorosas, aquelas, ressalta Albuquerque Júnior, possíveis na condição de recusados pela cultura hegemônica em que ainda vivem, muitas delas ainda centradas, sobremaneira, no ato sexual e apoiadas numa verdadeira falolatria. Inventores de uma cultura sexual cada vez mais variada e sofisticada, os homossexuais masculinos usam da criatividade, identificada sobremaneira na escrita.

Destaco a proibição, o silêncio e o pagamento das narrativas dos amores homossexuais pela escrita, pela escritura e pela literatura heterossexistas. Amores, desejos e prazeres invisibilizados por serem direcionados a outros homens. Se, como ficou exposto, os homossexuais não se paralizaram frente aos interditos e normalizações heterossexistas da literatura e da escrita, se buscaram e criaram novidades no campo das práticas sexuais, das práticas de si e das relações com os outros, se assim se contrapuseram à cultura masculina heterossexual, criaram fendas, já que os homossexuais, diz Albuquerque Júnior, eram uma presença incômoda na cultura ocidental por questionarem em sua própria existência as políticas e as polícias da identidade, operadores funda- mentais da cultura heteronormativa.

Como evidenciei, Albuquerque Júnior destaca as especificidades históricas dos amores, prazeres e desejos homossexuais, sobretudo dos homossexuais masculinos. Ao mesmo tempo, oferece elementos e pistas para pensarmos a escrita homossexual. Se hoje conhecemos e reconhecemos autores, escrito- res e literatos homossexuais, inclusive alguns deles considerados “grandes e maiores”, a ponto de seus nomes serem listados em alguns cânones, muitas vezes suas histórias, seus personagens, os enredos, os amores e as dores são conjugados no e pelo heterossexismo. Muitas vezes o preço para adentrar ao seleto grupo dos clássicos, dos cânones e dos grandes é imaginar, escrever e narrar dentro de padrões heterossexistas. Mas nem todos almejaram tais reconhecimentos, por isso pluralizando, colorindo e enriquecendo a escrita e a Literatura.

A construção narrativa homossexual agenciaria outros tempos, como o da solidão, da ruminação lenta daquilo que foi fugaz e passageiro. Literatura que

se compraz em narrar com detalhes o ato considerado impuro e antiliterário, antipoético, pois praticado, experimentado e narrado por homossexuais. Tem- poralidade do efêmero alongada pela narrativa, pela rememoração do fugaz. Para o autor,

O trabalho de fixação na memória de traços e aspectos daqueles acontecimentos que são memoráveis, que devem ser descritos para si mesmo, várias vezes, para que ganhem fora de verdade, para que se tornem críveis para si mesmo, para que, com eles, um sujeito vá se desenhando. Com a autoestima, com o amor próprio, quase sempre, afetados pela denegação social que sofrem, os homossexuais precisam, constantemente, fazerem como que um trabalho de reconstrução de si. Como se fossem roupas rasgadas, a autoimagem dos sujeitos homosse- xuais, numa sociedade heterodominante, precisa estar sendo sempre remendada (AlBuquERquE JR., 2010, p. 53).

Dessa maneira, o estender, o aumentar e, por que não, o exagerar cada acontecimento erótico tornam-se parte de um estilo de vida, de uma estética da existência que requer o uso constante da fantasia, da ficção, da simulação e da invenção. Novo tempo este de criação, rememoração, narrativização conjugada com a solidão, inclusive o da escrita. Recursos e estratégias que permitem o alongamento do prazer, da paixão e do tesão, não só do ato sexual, como também o da escrita. Literatura como um trabalho de si sobre si, uma forma de escrever e esculpir o chamado “si mesmo”.

Esses jogos, inclusive de poder, que envolvem a escrita têm historicidades. Entre elas, a da invenção e da problematização da homossexualidade. Para o autor, a vivência do que se nomeou de homossexualidade _ sobretudo pelo saber religioso, jurídico e médico _ implica a instauração de um inquérito acerca de si mesmo pelo próprio sujeito que se vai constituindo nesta indagação, nesta insegurança, pois este novo sujeito, o homossexual, inventado pela e na mo- dernidade, fora alojado em um lugar misto, o das escolhas e condutas inaceitá- veis, situadas entre o pecado, o crime e a doença. Ser homossexual é definido historicamente, em relação de saber-poder e pela negativa, ou seja, pelo que não é. A literatura homossexual nasceria, portanto, dessa interrogação sem resposta, dessa busca por uma ontologia de si mesmo, que, à medida que não é encontrada, gera angústia e desconcerto naquele que escreve.

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Por fim, o autor destaca, nas escritas homossexuais masculinas, o ensaio de outras formas de temporalidade, de novas experiências, de construções de estéticas e éticas da existência. Diferenças e diferenciações do vivido, do narrado e do escrito como respostas ao regime masculino heterossexista, à exclusão a que suas práticas, sentimentos e amores estão submetidos em uma sociedade heteronormativa.