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A função dos produtos vai muito além das tarefas que realizam; as escolhas do indivíduo ajudam a definir seu lugar na sociedade, e também permitem formar laços com outras pessoas que compartilham das mesmas preferências. Os consumidores tendem a demonstrar congruência entre seus valores e as coisas que compram. Além da óbvia satisfação das necessidades e desejos, os objetos servem para compensar inseguranças, para definir papéis sociais, para simbolizar sucesso ou poder, para reforçar relações de superioridade ou inferioridade entre indivíduos e grupos. Podem comunicar mensagens, expressar atitudes ou estados de espírito e, por fim, passam a fazer parte da personalidade: são a extensão do self (McCRACKEN, 1990; SOLOMON, 2002). Na sociedade moderna, a mobilidade social e o desapego às tradições oferecem possibilidades de escolha e sonhos de ascensão a virtualmente todos os grupos sociais. A identidade social, outrora uma herança que se mantinha estável ao longo da vida das famílias, passa a ser construída pelo próprio indivíduo, que se vale, em grande parte, dos produtos e suas simbologias para moldá-la (D´ANGELO, 2003).

“No território do consumo é possível enxergar parcela representativa dos valores existentes em uma sociedade, assim como compreender características sociais e individuais através da leitura dos significados imputados a produtos e serviços” (D´ANGELO, 2006, p. 12). Por corporificarem a subjetividade individual e a influência da cultura, e por melhor corresponderem à expressão dos desejos e das emoções humanas, os objetos de luxo podem ser considerados os mais repletos de significados dentro da cultura material (ALLÉRÈS, 2000; TWITCHELL, 2001; CASTARÈDE, 2005).

Para McCracken (1990), alguns bens de consumo, normalmente aqueles de difícil acesso, possuem um significado deslocado – um significado cultural que foi deliberadamente removido da vida de uma comunidade ou pessoa e realocado em um domínio cultural distante (que pode ser temporal – passado ou futuro – ou espacial). Esse fenômeno pode ser percebido no culto ao passado glorioso ou à infância inocente, no culto às personalidades ou na emulação de grupos de referência distantes. Os objetos

inanimados, então, tornam-se pontes para acessar uma condição emocional, ou mesmo de um estilo de vida, de certa forma concretizado no objeto. A força simbólica do objeto decorre de sua raridade ou inacessibilidade, pois assim assemelha-se ao significado deslocado.

“Nosso gosto por luxos, por bens fora do alcance de nosso poder aquisitivo normal, não é apenas cobiça ou auto-indulgência. Pode ser atribuído a nossa necessidade, seja como grupos ou como indivíduos, de restabelecer o acesso aos ideais que deslocamos para locais distantes no tempo ou no espaço. (...) Isso exige uma expansão constante de nosso querer. As coisas que cobiçamos devem sempre estar além de nosso alcance (...)” (MCCRACKEN,1990, p. 116).

Estudiosos como Castarède (2005) e Lipovetsky (2005) acreditam que, além do mero aspecto de excesso materialista, o luxo corresponde à necessidade fundamental de buscar-se aquilo que não se tem. Há outras facetas, que não as puramente materiais, sociais ou ostentatórias, no consumo de bens faustosos: arte, beleza, sensualidade, individualização, busca da perfeição, refinamento da vida. “Uma sociedade demonstra progresso quando se coloca no nível não apenas das necessidades, mas também das aspirações, que ajudam o homem a transcender-se” (CASTARÈDE, 2005, p. 36).

Tanto é que, mesmo as pessoas menos favorecidas socioeconomicamente procuram imitar as classes mais ricas, naquilo que o sociólogo alemão Georg Simmel (apud McCRACKEN, 1995) denominou de efeito trickle down: os grupos sociais inferiores procuram melhorar seu status, imitando os códigos de vestir e as formas de comportar- se da classe que lhe é imediatamente superior; esta, por seu turno, vê-se forçada a manter sua diferenciação social por meio de novas modas e estilos, gerando um ciclo contínuo e progressivo de imitação e diferenciação (STOREY, 1999). Assim, tanto em termos do mercado da moda como do luxo, muitas inovações e raridades, com o tempo, migram do universo do prestígio para o terreno dos bens de uso comum - o que antes era um elemento de distinção acaba sendo copiado ou adaptado e oferecido para outras classes, perdendo seu efeito prévio de exclusividade e distinção social (STREHLAU & PETERS, 2006; CASTARÈDE, 2006).

McCracken (1995) considera a denominação trickle down um erro metafórico, pois o que impulsiona a dinâmica da difusão da moda não é, como o termo implica, uma força do tipo gravitacional, para baixo, mas um tipo de “perseguição e fuga”: um grupo social subordinado persegue os marcos do status da classe superior, a qual tenta escapar por meio de novos símbolos. Portanto, seria um movimento para cima, não para baixo, que caracteriza o sistema de difusão. Similarmente, em termos econômicos, o mercado do luxo é influenciado por outro tipo de efeito trickle down. O aumento da demanda por um produto ou serviço diminui seu preço, em boa parte porque encoraja a competição e permite às empresas operar em escalas mais eficientes. Esse ciclo de ‘redução de preços – aumento da demanda’ é igualmente chamado de trickle down pelos economistas. Ele possui um efeito reverso e complementar, ou seja, os preços baixos têm o efeito de diminuir as despesas das famílias de menor renda, permitindo que adquiram mais produtos supérfluos e sofisticados. Matsuyama (apud NUNES & JOHNSON, 2004) nomeia esse processo trickle up: basicamente, significa que o crescimento da renda das famílias, desde que acompanhado de uma distribuição uniforme, facilita o acesso dos consumidores menos abastados ao consumo de bens mais sofisticados.

Assim, se hoje se têm, com preços cada vez mais baixos, água encanada, educação superior, ar-condicionado, antibióticos, CDs de música clássica, cirurgias cardíacas, controle de natalidade e viagens aéreas, isso se deve aos mecanismos acima descritos, responsáveis pelo processo de transformar luxos em necessidades (TWITCHELL, 2001). A pressão dos consumidores mais afluentes estimula e acelera inovações no topo do mercado, que descem rapidamente em cascata para produtos mais baratos, disponibilizando essas inovações para mais e mais pessoas (SILVERSTEIN & FISKE, 2005).

O caráter ostentatório (ou conspícuo) do luxo não desapareceu, na sociedade atual. Continuam a existir comportamentos como a exibição da riqueza, de signos de valor e do sucesso individual, além do culto às marcas e aos bens raros (LIPOVETSKY & ROUX, 2005). Tornaram-se, entretanto, mais característicos da riqueza recente e das altas classes dos países emergentes, ciosas de marcar seu novo status por meio de bens posicionais e exclusivos. Nas sociedades mais maduras (em termos de riqueza e consumo de bens sofisticados), o luxo ganha novas colorações. Semelhante ao

reposicionamento sofrido durante a Renascença, há uma tendência de associá-lo ao refinamento e estetização da vida cotidiana, à fruição privada, ao prazer e bem-estar do indivíduo.

Em síntese, no século XXI o luxo serve aos diferentes propósitos de um público heterogêneo; sua variedade de oferta e formas de consumo reflete a própria diversidade da sociedade. O consumidor de luxo ideal é multifacetado, tira seus modelos de diferentes grupos, mistura diferentes categorias de objetos, sob um conceito de luxo plural e individualizado. “A vida das pessoas é pautada por constante busca de melhoria material e realização dos desejos de consumo. Cada um escolhe onde depositar suas vontades e trata de persegui-las. O desejo é livre, e sua realização também” (D´ANGELO, 2006).

Portanto, compreender como se configura na percepção dos consumidores o valor dos produtos luxuosos tem não somente a importância de servir aos objetivos estratégicos das empresas do setor, como de outros segmentos do mercado, os quais podem utilizar conceitos originados no topo da pirâmide do consumo para o desenvolvimento e aperfeiçoamento de seus produtos.

Na literatura de marketing, tem havido um crescente interesse pelo estudo da indústria do luxo, suas marcas, estratégias e comportamentos de consumo. Em vista do crescimento dinâmico do setor em nível global, torna-se cada vez mais importante para os pesquisadores e profissionais de marketing compreender as razões, atitudes, motivações e percepções do valor ofertado pelas empresas, sob o ponto de vista dos seus consumidores.

Se o apelo do luxo pode constituir um fator importante na diferenciação das marcas (ALLÉRÈS, 1995) e uma motivação para a preferência e a compra dos consumidores (DUBOIS & DUQUESNE, 1993), entender o que compõe o valor percebido dos produtos de luxo reveste-se de grande relevância tanto para os estudiosos como para os profissionais do segmento. Vários modelos teóricos para medir o valor percebido pelos clientes têm sido propostos na literatura acadêmica, tanto genéricos (ZEITHAML, 1988;

WOODRUFF, 1997) como focados em segmentos específicos, como serviços B2B (WHITTAKER, LEDDEN & KALAFATIS, 2007); marcas de carros (SINHA & DeSARBO, 1998); serviços (CRONIN, BRADY & HULT, 2000); cinema (AURIER, EVRARD & N´GOALA, 2004); e varejo de moda (SIMOVÁ, 2009). No entanto, apenas alguns poucos modelos teóricos voltados especificamente para o valor percebido dos produtos de luxo foram encontrados na revisão bibliográfica empreendida, como o de Wiedmann et al. (2007; 2009) e o de Vigneron e Johnson (1999). O processo de revisão da literatura evidenciou a pertinência de propor e testar um modelo multidimensional para o valor do luxo que abrangesse tantos os aspectos dos benefícios como dos sacrifícios percebidos, seus efeitos sobre a percepção global do valor e seu impacto no consumo de produtos de luxo.

Além da constatação da oportunidade de contribuição com a literatura existente, este trabalho constitui um aprofundamento de outro, anterior, desenvolvido pela autora, que examinou as atitudes, emoções e comportamentos de compra de consumidores brasileiros de produtos de luxo (GALHANONE, 2008).

Assim, a principal motivação para este estudo foi desenvolver um modelo abrangente para o valor percebido dos produtos luxuosos, integrando dimensões de cunho financeiro, funcional, individual e social, no intuito de explicar os principais aspectos do valor percebido do luxo e suas influências sobre o comportamento dos consumidores, a segmentação do mercado e as formas de estabelecer ou monitorar uma marca luxuosa de sucesso.

Em termos gerenciais, conhecer e medir os aspectos mais relevantes da percepção do valor dos consumidores do luxo é importante para gerenciar marcas seletivas, desenvolver estratégias de mercado que levem em conta os fatores sociais, psicológicos, utilitários e financeiros propostos neste estudo, além de fornecer um bom direcionamento para os esforços de comunicação de marketing. As marcas de luxo precisam abranger, ao máximo possível, as diferentes configurações do valor percebido pelos consumidores para justificar sua compra; estas podem variar de acordo com os consumidores e as situações de uso, entre outros. Conhecer essas diferenças pode

fornecer um bom ponto de partida para o desenvolvimento de estratégias de marketing eficazes.