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Q O leitor pode ignorar esta discussão e avançar para Seção 35, sem prejuízo

para o que vem adiante. O objetivo aqui é apenas motivar os mais sedentos pelo conhecimento.

Até aqui foi mostrado como ZF permite edicar números naturais, inteiros e racionais. Naturais são construídos a partir do conjunto vazio e da operação monádica Sucessor, em parceria com o Axioma do Innito. Inteiros são denidos como classes de equivalência de pares ordenados de naturais. Racionais são denidos como classes de equivalência de pares ordenados de inteiros. No en-tanto, qualquer tentativa de denir números reais como classes de equivalência de pares ordenados de racionais está fadada ao fracasso. Apresentamos aqui um esboço da prova deste resultado, o qual é dividido em duas partes.

Na primeira parte provamos que é impossível existir bijeção entre ω e o con-junto dos números reais. Ainda que a denição de número real não tenha sido dada até este momento, qualquer que seja a denição, ela deve ser consistente com a representação de números reais na notação decimal usual dada a seguir:

inin−1in−2· · ·i2i1i0, d0d1d2· · ·

onde cadaij e cadadk é um dos dez símbolos 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, exceto possivelmente in. Isso porque, no caso da sequência nita inin−1in−2· · ·i2i1i0

contar com mais de uma ocorrência de símbolos, entãoin6= 0.

Exemplo 60. i: 1945,00689é a representação de um número real na notação decimal usual; com efeito, i3 = 1,i2 = 9, i1 = 4,i0= 5,

d0= 0,d1= 0,d2= 6, d3 = 8,d4= 9 e os demaisdn são 0, com

n >4;

ii: 0,3333· · · é a representação de um número real na notação decimal usual; com efeito, i0 = 0 e todos os dn, onde n é um natural, são iguais a 3.

Observar que empregamos, no Exemplo acima, uma linguagem innitária para representar números reais em base decimal usual. Linguagens innitárias são aquelas que admitem sentenças de comprimento não nito, enquanto sen-tenças de linguagens nitárias sempre são sequências nitas de símbolos da lin-guagem. O item ii do último Exemplo ilustra uma sentença de comprimento não nito. Um dos aspectos mais fascinantes de ZF é o fato desta teoria formal empregar uma linguagem nitária (conforme Seção 7) que permite conceituar números reais (como é mostrado na Seção 39).

Ademais, os números reais devem contar com relações de ordem total≤(menor ou igual) e≥(maior ou igual) análogas às relações de ordem total entre inteiros e racionais, de modo que os reais sejam capazes de copiá-los.

Neste contexto, qualquer número real maior ou igual ao real 0 (o qual deve ser neutro aditivo) e menor ou igual a 1 (o qual deve ser neutro multiplicativo) pode ser representado da seguinte maneira:

0, d0d1d2d3d4· · ·

onde cadadk é um dos dez dígitos do sistema decimal usual, para todoknatural. Exemplo 61. i: 0,00689;

ii: 0,3333· · ·; neste caso dk é igual a 3, para cada knatural.

Item ii é um caso particular daquilo que é conhecido como dízima periódica.

Agora, seja[0,1] o conjunto de todos os números reais maiores ou iguais a 0 e menores ou iguais a 1. Supor que [0,1]eω são equipotentes, i.e., existe uma bijeção

f :ω→[0,1].

Logo, a cada natural deωcorresponde um e apenas um real do conjunto[0,1]; e cada real deste conjunto corresponde a um apenas um natural deω. Podemos representar tal bijeção da seguinte maneira:

0−→0, d00d01d02d03d04d05· · · 1−→0, d10d11d12d13d14d15· · · 2−→0, d20d21d22d23d24d25· · · 3−→0, d30d31d32d33d34d35· · · 4−→0, d40d41d42d43d44d45· · · 5−→0, d50d51d52d53d54d55· · · ...

sendo que cadadij é um dos dez símbolos do sistema decimal. Neste contexto, cada naturalncorresponde a um real

0, dn0dn1dn2dn3dn4dn5· · ·

pertencente a[0,1], no sentido de que

f(n) = 0, dn0dn1dn2dn3dn4dn5· · · .

No caso particular em que o real correspondente a umnnatural é 0, temosdnk

igual a 0, para todoknatural. No caso particular em que o real correspondente a um natural m é 1, temos dmk igual a 9, para todok natural. Com efeito, a dízima periódica0,999· · · é igual à dízima periódica0,333· · · multiplicada por

3. No entanto,0,333· · ·=13. Mas, 1

e 1 são apenas notações distintas para o mesmo número real, a saber, o neutro multiplicativo entre reais.

Agora considere o seguinte número realrdo conjunto[0,1]:

r= 0, r0r1r2r3r4r5· · ·

sendo que cadari é igual a9−dii, para cada natural i.

Ou seja, sedii = 9, então ri = 0; se dii = 8, então ri = 1; sedii = 7, então

ri= 2; sedii = 6, entãori= 3; sedii = 5, entãori= 4; sedii= 4, entãori= 5; sedii = 3, então ri = 6; se dii = 2, então ri = 7; se dii = 1, então ri = 8; se

dii= 0, então ri = 9.

Logo,rié sempre diferente dedii.

Neste caso, r será diferente de 0, d00d01d02d03d04d05· · ·, uma vez que r0 6= d00. Analogamente, r será diferente de 0, d10d11d12d13d14d15· · ·, uma vez que

r16=d11. Analogamente,r será diferente de cadadn0dn1dn2dn3dn4dn5· · ·, uma vez que cadari é diferente dedii.

Isso signica queré diferente de toda e qualquer imagemf(n). Logo, qualquer função injetoraf :ω →[0,1]jamais pode ser sobrejetora. Com efeito, sempre restará pelo menos um real r pertencente a [0,1] que não é igual a f(n) para naturalnalgum do domínio def. Na verdade é possível provar que existe uma innidade de reaisrdiferentes de todo e qualquer f(n). Mas basta exibir um r

de[0,1]que não é igual a qualquerf(n), para garantir quef não é sobrejetora. Logo,f não pode ser bijetora, como foi inicialmente assumido.

Se nenhuma funçãof :ω→[0,1]pode ser bijetora, entãoωnão é equipotente ao conjunto[0,1]de números reais entre 0 e 1, incluindo 0 e 1. Uma consequência imediata disso é queω não é equipotente ao próprio conjunto dos números reais, uma vez que[0,1]deve ser subconjunto do conjunto dos números reais.

Na segunda parte da prova é mostrado que, qualquer tentativa de construir os reais a partir de pares ordenados de racionais implica que o conjunto de números reais deve ser, na melhor das hipóteses, equipotente aω. Uma vez que isso contradiz o que foi provado na primeira parte, logo, não é possível denir números reais a partir de pares ordenados de racionais.

Em primeiro lugar, é possível provar que existe bijeção

f :ω×ω→ω

(a qual garante uma bijeçãof1:ω→ω×ω), ou seja,ω é equipotente aω×ω. Com efeito, consideref da seguinte maneira (apenas esboço a denição def):

i: f(0, n) = 2n; dessa maneira teremosf(0,0) = 0,f(0,1) = 2,f(0,2) = 4e assim por diante, cobrindo todos os naturais pares;

ii: uma vez que restaram apenas os naturais ímpares para serem imagens de elementos do domínioω×ωvia a bijeçãof, fazemosf(1,0) = 1(o primeiro ímpar) e, para os demaisf(1, n), `pulamos' sempre um ímpar, de modo que

f(1,1) = 5(pulamos o 3),f(1,2) = 9(pulamos o 7),f(1,3) = 13(pulamos o 11) e assim por diante;

iii: ainda resta uma innidade de ímpares para serem imagens de elementos de

ω×ω (os ímpares `pulados' no passo anterior); uma vez que o primeiro ím-par `pulado' foi 3, fazemosf(2,0) = 3e, para os demaisf(2, n)novamente `pulamos' um ímpar por vez, entre aqueles que ainda não são imagens de al-gum(m, n); de modo quef(2,1) = 11(pulamos o 7),f(2,2) = 19(pulamos o 15),f(2,3) = 27(pulamos o 23) e assim por diante;

iv: repetimos o processo por indução innita, de modo a cobrir todos os ímpares. Logo,f é uma bijeção.

Em segundo lugar,ωé equipotente aZ. Com efeito, basta considerar a seguinte bijeçãof :ω→Zdada porf(0) = 0,f(1) =−1,f(2) = 1,f(3) =−2,f(4) = 2,

f(5) =−3,f(6) = 3 e assim por diante.

Outro resultado espantoso é o fato deω ser equipotente aQ.

Antes de provar isso, vale ressaltar que todas as técnicas aqui usadas podem ser empregadas para provar também que Q é equipotente a Q×Q. Uma vez que equipotência é transitiva, todos esses resultados apontam para o fato de que

Qé equipotente aω. Logo, qualquer tentativa de estabelecer uma bijeção entre o conjunto dos números reais eQ×Qdeve fracassar, no sentido de que tal bijeção simplesmente não existe.

Observar que a existência de tal bijeção é indispensável, uma vez que eventuais partições deQ×Qdevem ser denidas por classes de equivalência[(r, s)](onde

ressão racionais) de modo que cada uma delas corresponde a um e apenas um número real.

Com relação à demonstração de queωé equipotente aQ, consideref :ω→Q

dada como se segue: f(0) = 0 e as demais imagens f(n) são dadas de acordo com a tabela abaixo, na qual estão representados todos os racionais diferentes de0. = = = = +1 1 −1 1 +1 2 −1 2 +1 3 −1 3 +1 4 −1 4 +2 1 −2 1 +2 2 −2 2 +2 3 −2 3 +2 4 −2 4 +3 1 −3 1 +3 2 −3 2 +3 3 −3 3 +3 4 −3 4 +4 1 −4 1 +4 2 −4 2 +4 3 −4 3 +4 4 −4 4 ... ... ... ... ... ... ... ... · · · · · · · · · · · · ... Argumento da diagonal de Cantor

Seguindo as echas da esquerda para a direita, conforme os sentidos indicados,

f(1) = +11 , f(2) = 11, f(3) = +21 , f(4) = +12 , f(5) = 12, f(6) = +31 e assim por diante. O cuidado a ser tomado é evitar imagens repetidas, para garantir a injetividade de f. Anal, por exemplo, +2

racional repetido, basta ignorá-lo e ir para o próximo na diagonal correspondente, para denirf.

As técnicas usadas acima para provar a equipotência dos racionais com os naturais e a não equipotência dos naturais com os reais são conhecidas na litera-tura como o argumento da diagonal de Cantor. Isso porque essas técnicas foram concebidas por Georg Cantor, e publicadas em 1891.

Ÿ35. Sequências.

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