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CAPÍTULO I – FUNDAMENTOS TEÓRICOS: LEITURA E DIFICULDADES DE

2. CONHECIMENTOS E PROCESSOS

2.6. M ODELOS DO PROCESSAMENTO DE LEITURA

2.6.1. Da ortografia ao som

A rota cerebral empregue para converter letras em sons envolve essencialmente as regiões superiores do lobo temporal esquerdo, as quais são conhecidas pelo seu papel na análise do som do discurso. Os córtices pré-frontal inferior e pré-central esquerdos, que contribuem para a articulação, estão igualmente envolvidos, mas é no lobo temporal superior esquerdo que pela primeira vez se encontram as letras visuais e os sons do discurso (Dehaene, 2009). Uma pesquisa realizada por van Atteveldt e colaboradores (2004) concluiu que uma vasta porção do lobo temporal superior responde à visão da letra, mas apenas uma pequena sub-região designada “planum temporale” reagia a letras e sons compatíveis. Nesta localização cortical, um som que corresponde a uma letra aumenta a atividade cerebral, mas um conflito entre a ortografia e o som redu-la. Este efeito pode ser cronometrado com precisão, a conversão de uma letra num som começa apenas 225 milissegundos (ms) após a primeira letra ter aparecido na retina e a sua compatibilidade com a produção de um som é reconhecida após aproximadamente 400 ms (Raij, Uutela, & Hari, 2000).

Um elevado número de evidência sugere que o “planum temporale” é uma das regiões principais para a descodificação do som. Esta região é assimétrica, com uma maior

26 superfície no hemisfério esquerdo comparativamente ao contralateral. Esta assimetria anatómica é a razão pela qual muitos investigadores atribuem a lateralização da linguagem ao hemisfério esquerdo. Na infância, esta região aprende rapidamente a processar os sons relevantes do discurso existentes na língua nativa e a evitar os desnecessários (Dehaene-Lambertz, 1997; Jacquemot, Pallier, LeBihan, Dehaene, & Dupoux, 2003).

De acordo com Dehaene (2009) as vias precisas utilizadas para a conversão de letras em sons não são ainda inteiramente conhecidas. No caso de apenas uma letra, a região temporal superior recebe a informação proveniente das áreas visuais iniciais de forma direta. No entanto, quando o input é uma cadeia completa de letras é necessário um grau complexo de processamento para convertê-lo em grafemas e fonemas. Este processo tem uma natureza serial e emprega, muito possivelmente a região parietal inferior localizada imediatamente acima do “planum” temporal (Simon, Mangin, Cohen, & Bihan, 2002). Esta região, juntamente com a área de Broca (região opercular), cria um circuito fonológico que é ativado de cada vez que recitamos algo mentalmente. Acresce que pertence a um loop articulatório ou fonológico ao qual recorremos quando, por exemplo, armazenamos um número de telefone na memória verbal (Paulesu, Frith, & Frackowiak, 1993). Este espaço de armazenamento, é essencial para a pronúncia de palavras escritas, de natureza longa (Dehaene, 2009).

Ao nível neurológico é frequentemente assumido que a dislexia tem origem numa disfunção das áreas perisílvicas situadas no hemisfério esquerdo, nas quais se localizam as representações fonológicas ou nas conexões entre as representações fonológicas e ortográficas (Ramus, Rosen, et al., 2003). Estudos neuroimagiológicos suportam a noção do envolvimento de disfunções perisílvicas esquerdas, localizadas na parte superior e posterior do lóbulo temporal, como estando na base do défice fonológico (Brunswick, 1999; McCrory, Frith, Brunswick, & Price, 2000; Paulesu, 2001; Paulesu et al., 1996; Pugh et al., 2000; S. E. Shaywitz, 1998; S. E. Shaywitz et al., 2002; Temple et al., 2001). Um estudo de tomografia por emissão de positrões (PET) corroborou o envolvimento de áreas cerebrais específicas associadas ao processamento fonológico. De acordo com este estudo, numa ortografia consistente como a italiana, a maior ativação durante uma tarefa de leitura é a junção entre a circunvolução temporal esquerda superior e o córtex parietal inferior, uma região conhecida por planum

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2.6.2. Acesso ao significado

A rede cerebral que analisa o significado das palavras é bastante distinta daquela que converte letras em sons. O processamento semântico mobiliza um vasto número de regiões disseminadas pelo cérebro, nomeadamente a circunvolução temporal média, a região temporal basal e a circunvolução frontal inferior. Nenhuma destas regiões tem exclusividade no processamento da palavra escrita, em vez disso, todas elas se ativam assim que pensamos sobre conceitos transmitidos por palavras escritas (J. R. Binder, 2000; J. R. Binder et al., 1999; Kotz, 2002) ou mesmo imagens (Vandenberghe, Price, Wise, Josephs, & Frackowiak, 1996).

Uma propriedade peculiar inerente a algumas destas regiões semânticas é a de poderem estar ativas momentos antes de ser pedido ao voluntário que execute uma determinada tarefa. A região temporoparietal posterior, em particular, está ativa mesmo quando estamos em repouso no escuro (J. R. Binder et al., 1999; Cohen et al., 2003). As redes cerebrais envolvidas no significado, no entanto, não estão simplesmente limitadas ao processamento de palavras isoladas. As regiões próximas da região anterior do lobo temporal parecem concentrar-se nas combinações de significados que as palavras atingem quando empregues em frases (Price et al., 1997; Vandenberghe, Nobre, & Price, 2002). Outra região, mais adiante no córtex frontal inferior, parece selecionar um significado em detrimento de tantos outros. Esta área é ativada em conjunto com as regiões temporais, sempre que ouvimos frases que contêm muitas palavras ambíguas (Rodd, 2004; Thompson-Schill, D’Esposito, & Kan, 1999).

No geral, apesar dos investigadores terem conseguido mapear muitas das áreas cerebrais relevantes, a forma como o significado é codificado no cérebro permanece um mistério. O significado não pode ser confinado a apenas algumas regiões cerebrais e depende provavelmente de um vasto número de neurónios distribuídos ao longo do córtex, das quais as regiões temporais e frontais estão apenas na ponta do iceberg. Apesar de estas regiões se ativarem quando acedemos a essência da palavra, elas não armazenam o significado propriamente dito, mas meramente facilitam o acesso a informação semântica disseminada noutras regiões do cérebro (Dehaene, 2009). De acordo com Damásio (1989a, 1989b), operam como zonas de convergência que armazenam e enviam sinais a muitas outras regiões, colecionando fragmentos dispersos de significado e agrupando-os em conjuntos articulados de neurónios que constituem o substrato neuronal do significado das palavras.

A região occipitotemporal lateral parece desempenhar um papel essencial na mediação entre as formas das palavras e os elementos que constituem o seu significado. Esta

28 região pode ser subdividida em sub-regiões que se especializam em diferentes categorias de palavras. Faces, pessoas, animais, entre outras categorias, parecem estar todas situadas em regiões parcialmente distintas, cada uma das quais reunindo fragmentos de significado provenientes de diferentes fontes: o lobo parietal para algarismos e partes do corpo, a área V4 occipital para as cores, a área V5 para o movimento, a área parietal pré-central e anterior para ação e gestos, apenas para nomear algumas (Dehaene, 2009). Este achado foi corroborado pela imagiologia funcional que reuniu evidência de que sempre que pensamos em nomes ou verbos, animais ou ferramentas, distintas regiões cerebrais são ativadas (M. S. Beauchamp, Lee, Argall, & Martin, 2004). Todos estes dados permitem concluir que o significado das palavras está incorporado nas nossas redes cerebrais. Uma sequência de letras só fará sentido se evocar, em algumas centenas de ms, uma miríade de caraterísticas dispersas nos mapas cerebrais sensoriais, motores e abstratos (Dehaene, 2009).