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MAIS UMA INVERSÃO: ANDANDO COM AS MÃOS SEM “SENTIR” O CHÃO

MAPA III CORPO COMO CARNAVAL: A BUSCA DO NOVO E A CONSTRUÇÃO DE UM DESFILE

4. OS CARNAVAIS DO CORPO: A OPERAÇÃO DAS IMAGENS

4.2. MAIS UMA INVERSÃO: ANDANDO COM AS MÃOS SEM “SENTIR” O CHÃO

O corpo é um ambiente. A atual tecnologia de investigação corporal permite que “vejamos” o interior do corpo de uma maneira diferente da que o primeiro indivíduo da história “mapeou” o corpo. Andrea Vesalius (1514-1564) e seu livro “De Humani Corporis Fabrica” são a primeira fonte ocidental desta pesquisa. Os atuais conhecimentos sobre imagens corporais, formulado por autores como os já citados António Damásio, e outros como Steven Pinker (2002), Paul Churchland (2001)

sobre a plasticidade cerebral, as redes e mapas de neurônios115 em suas miríades de sinapses vãoi além da mera relação observador-objeto.

Para estas pesquisas, imagens corporais dizem respeito ao modo como “imaginamos” nós mesmos e o mundo, e que este imaginar está em constante mudança de maneira ativa em contato com aquilo que vem da realidade interna e externa. São verdadeiras “tecnologias” do corpo, que ajudam ainda a esclarecer algumas questões sobre a locomoção do corpo no ciberespaço. Vamos “imaginar” o que a existência das realidades internas do corpo pode contribuir para que entendamos o que significa “desfilar” na Internet.

A Internet apresenta peculiaridades para a locomoção. Esta operação refere-se a como o movimento se correlaciona com a imaginação corporal significando o envolvimento com o conceito de virtual, da mesma forma que temos discutido nesta dissertação: a existência de outros níveis de descrição da realidade. “Andar” ou “navegar” pela Internet envolve algumas questões estudadas pelas ciências cognitivas no que diz respeito à como o organismo cria redes entre a nossa imaginação e um gesto “real”.

É inevitável deixar de mencionar que o uso da Internet significa estar “parado”. Daí, ficar sentado na frente de um computador pode ser algo que “atrofia” nosso sistema sensório-motor. Mas, as coisas não são bem assim. Não se pensa em locomoção na Internet como atividade motora complexa, como a dança, por exemplo, pois basicamente, mover pelo ciberespaço significa articular o movimento das mãos e braços para utilizar o teclado e o mouse. Mas aqui, como em qualquer outra circunstância que envolve habilidades cognitivas, está presente a alta complexidade da comunicação interna do corpo.

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Neurônios são células cerebrais com formas variadas. Têm função eletro-química e conectividade. Se comunicam uns com os outros através de sinapses. Estas conexões não especificadas pelos genes. O cérebro é uma rede auto- organizativa criada pelo movimento das conexões

Contextualizando que imaginação se relacione a esta realidade interior do corpo, a produção de imagens internas cria correlações entre imaginar um movimento corporal e realizar este movimento. Um desfile virtual ocasiona situações bastante complexas e que envolvem a questão desta imaginação corporal. Se estamos enfatizando o corpo e suas singularidades em relação ao ambiente, explicitando que é impossível separá-los, também argumentamos, com base nos estudos neurocientíficos, que imaginar um movimento e realizá-lo sejam coisas impossíveis de separação.

Assim, pesquisas analisam o funcionamento do nosso corpo em relação à imagens corporais (conteúdos imaginados) sublinhando que a organização de um gesto envolve a imaginação corporal criando conteúdos virtuais em outras partes do corpo imperceptíveis para o próprio indivíduo116. “...Se quero esticar meu braço à

frente, o primeiro músculo a entrar em ação, antes mesmo que meu braço se mexa, será o músculo da panturrilha, antecipando a desestabilização que o peso do braço irá provocar ( Godard, 1999; 15).

A maior parte de nosso pensamento e ações corporais é exercido sem que precisemos organizá-los conscientemente. Há instruções internalizadas inconscientemente e que coordenam nossos movimentos sem a necessidade de nosso permanente estado de vigília. Para andarmos, por exemplo, precisamos

116 Em relação à comunicação interna não ser perceptível

pelo corpo em seu estado de vigília, vale ressaltar que Charles Sanders Peirce fala em outros níveis de descrição da realidade que não somente o simbólico. Para o autor há uma rede entre estes níveis de descrição da realidade, e antes de algo se tornar uma lei, um símbolo estavelmente perceptível, existe um processo que passa pela

primeiridade, o que ele chama de vagueza do signo, e a secundidade, o que seria a provocação de reações nesta vagueza inicial do signo o que pode vir-a-ser um símbolo estável. A comunicação interna das sinapses seria uma relação entre primeiridade e secundidade antes de emergir como uma imagem estável em nossa consciência: um símbolo. Ver Santaella(1995)

conscientemente decidir pela ação. Mas, não precisamos ficar dando “ordens” às nossas pernas para que as mesmas se movam. Há “ordens virtuais” para isto. Além disto, mesmo em casos de deficiência física, o cérebro pode conservar a representação dos padrões motores, e com a ajuda de próteses e extensões corporais, as ações deste corpo podem reinventar os próprios movimentos corporais.

Assim como acontece quando sonhamos que estamos correndo e nos “movimentamos” durante o sono, imaginar-se conscientemente nesta ação também aciona nosso sistema sensório-motor, sem que seja necessário que esta corrida aconteça “realmente”. Rachel Zuanon (2001), em sua dissertação de mestrado “Co-

evolução entre corpos - uma investigação com sinais cerebrais” (2001) investiga

que ao imaginar-se dançando, estaríamos acionando regiões cerebrais responsáveis pela coordenação do movimento, lugares do cérebro que guardam padrões motores. A autora defende que “... O cruzamento de domínios subjetivos e

sensoriomotores, presentes no ato de imaginar a execução de um movimento, garante então que as informações necessárias para que o movimento ocorra existam, independente do movimento ocorrer” ( op-cit:22). Talvez uma pesquisa

similar realizada para averiguar com precisão esta questão em relação à locomoção no ciberespaço, mapeando o funcionamento cerebral em relação à “navegar” pela web possa ser realizada em breve.

No entanto, para nossos desfiles virtuais, estes apontamentos sugerem que a realidade corporal é um paradoxo que incorpora além da consciência do gesto, a rede de estados não percebidos conscientemente. Além de que, imaginar este gesto é uma condição inseparável de seu nível de descrição correspondente à realização deste gesto. E que nosso self se constrói justamente neste trânsito entre mente e ações corporais e conteúdos corporais não percebidos.

Outras explicações ajudam a entender esta questão. A natureza da metáfora é algo permeável tanto em relação ao carnaval, quanto em relação ao conceito de

virtualidade, e nos ajuda ainda mais a entendermos o que significa a complexidade da comunicação sensório-motora do corpo. Metáforas são inversões: um processo cognitivo que possibilita experimentar alguma coisa em lugar de outra. Um processo que transporta uma coisa de um lugar para o outro. Um tipo de atualização da informação. Dizer, por exemplo, que o corpo é um carnaval, é transportar todo os significados do carnaval para o corpo.

Sobre o papel da metáfora como operação de conceitos e movimentos corporais, Lakoff & Jonhson (2001) enfatizam que a construção da metáfora é mais do que ser uma figura da linguagem verbal. Os autores estabelecem que nosso sistema conceptual, o modo como conceituamos nossas ações no mundo, seja metafórico por natureza. Criado pela migração em trânsito das informações oriundas do sistema sensório-motor e as informações surgidas em nossa mente os pesquisadores afirmam que conceitos como “os juros subiram” emergem de nossa experiência espacial, e não apenas de nossa mente. Assim, “o copo está cheio” é uma “metáfora do pensamento”, que surgiu da experiência corporal de subir.

O que estes autores discutem mostra que o sistema conceptual do corpo não é exclusividade da mente e nem das palavras, pois o ato de subir criaria informações no sistema sensório-motor que se relacionariam com as imagens mentais não verbais criadas em função desta ação. O discurso verbal “fala” sobre o corpo e também é uma ação, mas não pode ser considerado soberano. Há , por exemplo, nossa pele que comunica muita coisa sem precisar “falar”117. Não existe uma relação de maior ou menor importância entre o papel do sistemas muscular para as cognições corporais e o uso da palavra. E não há como apostar toda a comunicação no discurso verbal, visto que há outras formas de descrição da

117 Sobre isto ver “Tocar. Os significados humanos da pele”

do antropólogo Ashley Montagu. O autor defende que as palavras não são os únicos atos de comunicação que processam o envolvimento entre as pessoas.

construção da realidade corporal. Há diversas portas cognitivas, de entrada e saída, que se entrelaçam nas metamorfoses do corpo118.

Como isto se relaciona com o ciberespaço? A ação de movimentar-se pela Internet, não sendo algo exclusivo do domínio mental, mistura as imagens corporais conscientes e inconscientes com as informações do movimento do corpo. Isto cria outras metáforas corporais. “Andar” na Internet é metaforizar que pensamento e ação corporal estão sendo “mixados” e criando outros domínios conceptuais para o corpo. Imaginar-se “andando” pela Internet pode combinar toda a complexidade corporal do ato de mover-se com as pernas, o que conecta metaforicamente as realidades invisíveis do sistema sensório-motor à questão de que “realmente” estamos movendo o mouse. Tudo isto significa fundamentalmente uma ação que inverte/atualiza nossa ação de andar, uma vez que nossas mãos passam a ser nossos pés.

A ação de movimentar-se pelo ciberespaço utilizando-se o mouse desenvolve uma experiência sensória-motora que inverte a posição dos pés criando outros paradigmas de locomoção. Neste espaço as mãos são selecionadas e adaptadas para o movimento pelo espaço. Andar com as mãos não é algo necessariamente novo, tendo em vista que as mãos têm um papel fundamental no processo de desenvolvimento da humanidade. Aliás, o homem não nasce bípede. A locomoção pela Internet parece ser apenas uma “atualização” que sublinha este fato.

No caso dos desfiles virtuais há uma inversão: o “samba no pé” se transforma em “samba na mão”. Olha o carnaval aí, gente!. A imagem reinventando o corpo. O corpo reinventando a imagem.

118 Para assinalar esta questão de que as palavras não são

as únicas portas de entrada dos significados corporais vale assinalar novamente que Charles Sanders Peirce fala sobre as matrizes da linguagem verbal, assinalando que o surgimento, em nossa mente, de uma palavra como símbolo de alguma coisa se correlaciona com a imagem anterior. Ver Lúcia Santaella em Semiótica e cognição