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O SAMBA-EM-REDE: DA RUA AO CIBERESPAÇO JOSÉ MAURÍCIO CONRADO MOREIRA DA SILVA

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Academic year: 2018

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

O SAMBA-EM-REDE: DA RUA AO CIBERESPAÇO

JOSÉ MAURÍCIO CONRADO MOREIRA DA SILVA

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RESUMO

A dissertação “O SAMBA-EM-REDE: DA RUA AO CIBERESPAÇO” é uma pesquisa teórico-prática que realiza uma análise dos processos comunicativos do carnaval, apontando o surgimento dos desfiles de escola de samba virtuais, um evento carnavalesco construído na Internet, mas, baseado nos desfiles de rua tradicionais. Este fato sugere algumas reflexões sobre comunicação, arte e cultura , consistindo estas no campo de saber que sustenta este trabalho.

A pesquisa tem como ponto de partida o argumento de que corpo e ambiente são processos co-evolutivos estudados pelas teorias evolutivas da cultura (Katz&Greiner,2005). Para entender os significados de um evento carnavalesco na Internet, o trabalho faz uma proposta interdisciplinar, pois também utiliza conceitos oriundos das teorias contemporâneas da comunicação ( Sodré, 2002), da semiótica da cultura (Baitello, 1997), e da história do carnaval (Sebe,1997).

Como parte fundamental do trabalho, a metodologia compreende a construção de um desfile virtual, fato que engloba as questões estudadas e aponta par o problema levantado: a Internet e as tecnologias comunicaionais interativas podem ser consideradas ambientes que propiciam a permanência e a evolução dos processos comunicativos, onde inevitavelmente corpo e ambiente estão envolvidos?

Discussões contemporâneas como “real X virtual” foram levantadas como metáfora para a discussão “carnaval X realidade”. A partir daí, o trabalho discute os processos comunicacionais nas relações entre corpo e espaço, questionando as possibilidades comunicativas de um desfile carnavalesco em versão multimídia. As conclusões levantadas se referem à possibilidade de que o carnaval possa também se contaminar pelas possibilidades interativas da Internet, da mesma forma que está ocorrendo com jornais, revitas, obras de arte, etc.

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ORGANIZAÇÃO

INTRODUÇÃO

1.1 - Olha a Internet aí, gente!

1.2 - Entrando em outro espaço: construindo outros mapas 1.2.1 - Bússolas

1.3 - Ponto de partida: o carnaval e seus processos de inversão

MAPA I – O CARNAVAL E SUAS ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS DE SOBREVIVÊNCIA

2.1 – E no princípio

2.2 - Novos estranhos no carnaval: discutindo as críticas 2.2.1 – A cibercultura e seus paradigmas de realidade 2.3 – A virtualidade do jogo

2.4 – Unidos: comunidades e redes dentro e fora da Internet

MAPA II – DESCREVENDO A LINGUAGEM DOS DESFILES VIRTUAIS

3.1 – Terremotos e mudanças nas performances do corpo 3.2 – Conexões entre linguagens

3.3 – Linguagens que “moram na rua”

3.3.1- Grandes sociedades, ranchos, blocos e cordões 3.3.1.2- Teatro de revista

3.3.1.3- Chanchadas 3.3.1.4- Ópera

3.3.1 – Linguagens que “moram em casa”: a televisão

3.3.2 – Imitando um desfile na Internet: outros acordos para o corpo folião em um novo ambiente

MAPA III – CORPO COMO CARNAVAL: BUSCANDO OUTROS DESFILES

4.1 – Os carnavais do corpo: a operação de imagens 4.1.2 – Operando “mixagens” entre imagem e som

4.2 – Mais uma inversão: andando com as mãos sem “sentir” o chão 4.3 – Ciberbarracão: uma busca das imagens

4. 3. 1 – Hipertexto como carnaval

4.3. 2 – O enredo: A terra é uma misteriosa ilha na imensidão de um negro oceano

4.3.3 - A estrutura

4.4 – A inversão é cognição

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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1. OLHA A INTERNET AÍ, GENTE!

As legendas dos mapas são tão belas que dispensam as viagens” Adélia Prado – Terra de Santa Cruz

Esta dissertação é um estudo da co-evolução entre corpo e ambiente no contexto carnavalesco que permeia o início do século XX até os dias atuais. Para entender o que isto significa esta pesquisa propõe uma experiência comunicacional: o processo1 de construção de um desfile de escola de samba na Internet, um

espaço diferente da rua onde o carnaval normalmente acontece.

Longe de parecer alguma história de ficção científica, esta idéia não é inédita e baseia-se em uma brincadeira que “existe de verdade” e acontece neste espaço desde 2003: uma competição entre escolas de samba construídas exclusivamente para a Web. Para a construção do nosso desfile 2 foi montado um “Ciberbarracão”, com a participação dos alunos do curso de Design Digital do Centro Universitário Ibero-Americano. A questões referentes à experiência estão sendo discutidas no decorrer da pesquisa, e no final do trabalho há uma explicação do processo de construção da escola.

Contextualizando-se dentro dos debates que discutem no fim do século XX e início do século XXI a emergência da chamada Cibercultura, tomamos a existência destes desfiles virtuais para refletir acerca da relação homem/tecnologia, no que diz respeito especificamente ao corpo, uma vez que o carnaval sempre foi considerado a “festa da carne” e como veremos adiante, a proposta de um desfile virtual ainda causa algum constrangimento.

1Entende-se por processo uma ação em seu exercício

contínuo

2Este desfile não faz parte destas brincadeiras. É um

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Para esta discussão, nossa hipótese parte de alguns estudos das ciências cognitivas3, e das teorias evolutivas da cultura e seu argumento de que corpo e ambiente são processos co-evolutivos que se modificam mutuamente um pela ação do outro, sendo a cultura um sistema aberto, “... apto a contaminar o corpo e a ser por ele contaminado e não influenciá-lo ou ser a causa de mudanças visualmente perceptíveis nele” (Katz&Greiner)1999:96.

Para experimentar este processo, partimos da utilização de metáforas. “Em termos cognitivos, a metáfora configura-se como um conceito e pode ajudar a entender o processo evolutivo da comunicação (...) O conceito metafórico representa um modo de estruturar parcialmente uma experiência em termos de outra. A pergunta é: o que faz parte do domínio básico de uma experiência? As experiências são fruto de nossos corpos (aparato motor e perceptual, capacidades mentais, fluxo emocional, etc), de nossas interações com nosso ambiente através das ações de se mover, manipular objetos, comer, e de nossas interações com outras pessoas dentro da nossa cultura ( em termos sociais, políticos, econômicos e religiosos )e fora dela. Greiner (2005:131-132). Para entender os processos deste desfile virtual, partimos então da idéia de que estamos criando metáforas conceituais: experimentando o desfile de rua em termos de outro espaço, a Internet.

Assim, este desfile virtual auxilia a esboçar algumas evidências:

• Natureza e cultura são mapas em movimento se organizando no trânsito corpo/ambiente e as brincadeiras carnavalescas demonstram que o corpo e suas memórias se propagam pelo ambiente e deste não pode ser separado. • O espaço não é uma “coisa”, um mero objeto, mas é algo vivo e dinâmico.

Assim, acordos com cláusulas visíveis e invisíveis são sempre organizados no trânsito de informações entre natureza e cultura, corpo e ambiente e no

3Disciplina surgida em meados do século XX com o

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caso dos desfiles virtuais estes acordos se referem a como o corpo cria linguagens e pode se relacionar com o novo ambiente.

• O próprio corpo é também um mapa em constante processo, desenhado pelo trânsito de informações entre mente e sistema sensório-motor. Locomover-se cria uma rede de informações corporais internas em co-relação com as realidades externas do ambiente. Esta articulação confere ao corpo suas singularidades. E, no caso do desfile virtual enfatiza que neste ambiente, o carnaval experimenta outros movimentos corporais diferentes daqueles do cotidiano.

Tais observações sugerem duas questões: (1) tecnologias comunicacionais, como o ciberespaço, podem ser entendidas como soluções adaptativas do homem, na medida em que desdobram a permanência do corpo (re)criando sua rede de informações no espaço e no tempo. (2) neste sentido, o carnaval no ciberespaço é uma solução adaptativa do processo evolutivo que não elimina a “festa da carne tradicional” mas aponta mais uma possibilidade de inversão e recriação das brincadeiras e suas ações cognitivas.

1.2. ENTRANDO EM OUTRO ESPAÇO: CONSTRUINDO OUTROS MAPAS

Um carnaval no ciberespaço pressupõe a criação de outras cartografias.

“Uma das necessidades básicas da humanidade sempre foi a de representar visualmente questões que mexem com seus sentimentos profundos e complexos. Como atestam as pinturas de manadas encontradas em cavernas, desde a pré-história o ser humano registra em traços aquilo que considera importante. A cartografia, ciência e arte de elaborar mapas, cartas e planos, é uma das mais antigas manifestações da cultura”. Leão (2002:15)

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pessoas, entre elas cientistas, engenheiros e, como não poderia deixar de ser, os artistas” Leão (2002:21) Para pensarmos nas possibilidades de cartografar o ciberespaço consideramos esta fluidez, mas sobretudo que a Internet é também um ambiente que inaugura outras possibilidades de evolução das informações, mas que não significa instalar previamente um julgamento de valor do tipo “bom” ou “mal” para tal evolução, mas sim, outras estratégias para que o corpo possa “se tecer e tecer outros textos”4.

Como mais uma rede, a Internet é um “habitat” onde sistemas de informações trabalham com a noção de interatividade, compreendida como possibilidade de extensão do corpo e seus sentidos no espaço-tempo: podemos estar em casa e simultaneamente conversando e vendo alguém que esteja em outro lugar5.

No entanto, sabemos ainda muito pouco sobre outros mapas e futuras possibilidades deste “novo território”, sobretudo por que “tecemos” sua construção nestas explorações, ao mesmo tempo em que, nestas investigações, este espaço vai desdobrando a permanência de conhecimentos já organizados anteriormente.

4Adotamos aqui o conceito de texto da cultura sublinhando

que se trate da noção de “tecer” a cultura, fato que engloba não apenas a linguagem verbal, mas também

performances, máquinas, imagens, gestos, palavras, tecnologias, etc. Tecer a cultura leva em conta o encadeamento espaço-temporal dos textos, a

impossibilidade de separá-los de sua história. Assim, mitos, crenças, partidas de futebol, desfiles de escolas de samba, são todos textos da cultura entrelaçados a outros textos. Sobre este conceito ver “O animal que parou os relógios” de Norval Baitello Júnior (1997)

5

Harry Pross, comunicólogo alemão, desenvolveu uma teoria da mídia que estabelece que o corpo é a mídia primária da comunicação, é o corpo quem produz cheiros, sons, imagens como os sonhos. Amplificações do emissor para o receptor ,livros por exemplo, são mídias

secundárias. Aparatos eletrônicos que amplificam tanto receptor quanto o emissor no espaço, como televisores, são mídia terciárias, caso também da Internet.. Ver

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Assim, existem desde obras de arte, agências bancárias, supermercados, filmes, e toda uma gama de objetos off-line que passam a co-existir com suas versões on-line. A conexão entre as instâncias “on” e “off-line”6 cria uma rede de

sucessivas realidades que alimentam a nossa “espécie simbólica” como afirma o antropólogo cognitivo Terrence Deacon (1997). Para este autor, os símbolos além de serem uma singularidade complexa que marca a identidade do homem em relação às demais espécies, são também uma espécie de contrato social. Estar vivo numa sociedade sublinha “assinar” estes contratos. E metaforicamente, o útero materno é um “portal” que prepara-nos para a vida simbólica. Enfatizando duas categorias fundamentais, dentre as diversas outras criadas pelo homem no decorrer de sua história, nascer sublinha as noções de dentro e fora.

A vida de uma célula também enfatiza tais noções. Uma célula tem dobras que marcam a sua identidade, no entanto, há permeabilidade nestas membranas que enfatizam a correlação e o continuum entre o dentro e o fora, e consequentemente as transformações desta célula: componentes de fora e de dentro da célula são constantemente trocados. Assim, a própria noção de vida significa a criação de identidades, que pelo jogo incessante entre interior e exterior experimenta constantes processos de metamorfoses e co-evoluções.7

Assim, do “lado de fora”, a cultura e seus “contratos sociais” são metaforicamente um continuum do útero. A Internet “gestando” nosso corpo ”brinca” com as noções de estar dentro e fora. Tanto que já é parte do vocabulário do nosso cotidiano dizer: “entrar” e “sair” da Internet. A própria tela do computador exibe “janelas” que vão enfatizando nossa ação de entrar. Um “desfile de momo” na

6Expressão utilizada por Gisele Beiguelman(2003) em seu

“o livro depois da livro”.

7 Precisamos de informações estáveis para sobrevivermos,

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Internet significa a entrada do carnaval neste território. O que estamos analisando o tempo todo são os significados e desdobramentos que podemos encontrar ao entrar e sair destas “membranas digitais”.

Identidades em constante processo de mudanças, colocam em movimento nossos olhos, e alertam para o fato de que o padrão de ser um mero espectador do mundo seja uma falácia. Pela inevitável marcha da reavaliação do conhecimento que criamos, hoje percebemos muita coisa que antes julgávamos não existir8. Da

mesma forma, percebemos que desde nosso nascimento estamos “conectados” ao mundo por uma rede de cordões umbilicais que vão literalmente desde aquele que nos liga ao ambiente biológico do útero, e metaforicamente aos sinais de aparelhos de comunicação. Neste jogo, estamos todos implicados.

1.2.1 BÚSSOLAS

Para construir estes mapas e discutir este processo é preciso esclarecer que acordos e pontes são o nosso interesse fundamental.

Esta noção esta expressa na diagramação e desenvolvimento do texto que já parte da idéia de mapas verbais e imagéticos em acordos contínuos assim como o movimento das informações pelo espaço da folha entre as notas e ilustrações ramificadas como pontes para o desdobramento do texto.

Para a reflexão teórica, esta dissertação propõe que outras respostas possam emergir pela criação de pontes entre o abismo que nós mesmos temos cavado separando radicalmente razão e emoção, natureza e cultura. E que olhemos

8“Em 1981 , Heinrich Rohrer e Gerd Bining, do laboratório

de pesquisa da IBM de Zurich, inventaram o microscópio de escaneamento por tunelamento ( STM, do inglês Scanning Tunneling Microscope), o qual “olhou” pela primeira vez a topografia dos átomos, que não podia ser vista anteriormente ( Binning & Roher 1999). Com essa invenção a era do imaterial foi verdadeiramente

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corpo e ambiente não como instâncias isoladas uma em relação à outra, apêndices que sinalizam limites estáveis. Como discutiremos no decorrer da pesquisa, corpo e ambiente, razão e emoção, natureza e cultura, real e virtual são instâncias co-dependentes.

Foi pensando nestas redes conectivas e na possibilidade de outras contribuições para a discussão sobre o que é ser um corpo singular e coletivo9,

questão cara dentro do universo das escolas de samba, que nesta dissertação aparece enfatizada pelos estudos interteóricos. Assim, na busca de orientação neste território adotamos como “bússola” um procedimento que propicia o cruzamento de diferentes áreas do conhecimento como possibilidade de obtenção de outras respostas para nossas questões. A indicação de que o funcionamento dos processos culturais se assemelha aos modos de funcionamento/sobrevivência da natureza serão pontualmente sugeridos pela ponte entre conceitos já abordados pela bibliografia que investiga o carnaval, alguns conceitos pontuais da semiótica da cultura· e os estudos sobre a cognição. Cada uma destas áreas do conhecimento possui visões próprias acerca do corpo. Trata-se de mapear possíveis acordos.

Ao trabalhar, então, a relação das escolas de samba e o espaço, o desenvolvimento desta pesquisa enfatiza a comunicação como complexidade sistêmica observando para isto os acordos em movimento entre corpo e ambiente que o carnaval cria em suas alterações.

Assim, discutindo fundamentalmente as metamorfose do corpo e do carnaval, este trabalho possui duas partes. A primeira, é esta introdução que apresenta o trabalho seguida por três “mapas” que tentam localizar assuntos pertinentes ao

9A idéia de um corpo singular é sugerida pelo fato de que

cada indivíduo possui um código DNA (sigla para ácido desoxirribonucléico) único e que no entanto só

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tema. O primeiro mapa discute o carnaval e as estratégias de comunicação na sociedade contemporânea. O segundo descreve e relaciona as diferenças e semelhanças entre o desfile de rua e o desfile virtual apontando que o trânsito entre as diversas linguagens cria diferenças no corpo folião. E o terceiro, sobre os significados da imagem para a evolução da cultura e sua relação com o corpo folião. Neste mapa há o item “Ciber-barracão”. Trata-se da reflexão sobre o processo de construção de uma escola virtual. Na segunda parte apresentamos o CD-ROM com o do desfile virtual. Não há uma relação de maior ou menor importância entre estas partes. Mais uma vez, enfatiza-se a presença de acordos que vinculam uma à outra.

1.3. UM PONTO DE PARTIDA: O CARNAVAL E SEUS PROCESSOS DE INVERSÃO

Antes de discutirmos os significados do corpo em relação ao surgimento das escolas de samba virtuais, é importante ressaltar como ponto de partida uma idéia importante: o carnaval e seus processos de inversão. Sobre o que venha a ser isto arriscamos um conceito. O carnaval é ritual10 em processo de “mestiçagem”, uma performance coletiva que na ação de repetir-se ciclicamente contamina e é

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contaminado pelo “calor das fricções” 11 que faz com sua própria história, as regras sociais, as mudanças tecnológicas da sociedade e também e outras manifestações culturais.

Discutiremos adiante, que sob a visão de alguns críticos estas alterações são temidas, pois podem descaracterizar o carnaval, vindo este a “morrer”, porém “a morte faz parte da vida”. E, no entanto, o oposto tem acontecido, pois quanto mais o carnaval se transforma deixando “morrer” alguns de seus aspectos, mais podemos pensar no significado da morte como possibilidade de movimento12. Nas palavras

do historiador José Carlos Sebe (1997), a morte do carnaval é paradoxalmente o sentido de “sempre o mesmo, mas sempre o novo.” Aliás, esta afirmação é uma definição bastante permeável à discussão que será levantada sobre a coexistência entre o real e o virtual, aspectos enfatizados na comunicação contemporânea mas que estão presentes na história da humanidade desde cedo.

Sobre os significados do carnaval, há uma vasta bibliografia. A respeito das discussões mais conhecidas que falam sobre o caráter inversor da festa, o antropólogo Roberto DaMatta apresenta em seu clássico texto “ Carnavais, malandros e Heróis”(1979) uma analise do carnaval propondo que o mesmo seja uma dramatização do cotidiano. Segundo o autor, o carnaval produz uma realidade que desloca o dia-a-dia de seus significados rotineiros atribuindo-lhe outros sentidos. Ainda segundo Roberto DaMatta, um dos papéis da festa é o de inverter

11Como atesta Amálio Pinheiro, (1995:9) “...a mente trabalha os

signos neste continente, mais pela fricção de superabundâncias alógenas( daquilo que alegoricamente diz o outro) do que pelos mecanismos binários de inclusão e exclusão.”

12Sobre esta questão, um argumento interessante é o do

filósofo Vilém Flusser (1972)que publicou no jornal Folha de São Paulo textos a que chamou de “série

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os significados do cotidiano permitindo assim sua elaboração. Esta inversão é dramatizada pelo processo de criação de metáforas alegóricas da sociedade.

Outro autor importante é o historiador Mikhail Bakthin (1920-1980) que estudou a cultura na idade média e produziu conceitos sobre os processos de carnavalização, “expressão que designa o gesto cultural de inverter valores e entendida como o gesto simbólico de coroação e destronamento do bufão”. Cury (2003:33). Estudando a obra do escritor francês François Rabelais (1494-1553), autor de Gargantua e Pantagruel, Bakthin afirma que na idade média, a praça pública é o espaço onde se misturam sons, cheiros, homens, mulheres e crianças. Evidencia que o carnaval, ao ocupar este espaço, enfatiza a não linearidade, uma lógica que pressupõe a presença, em um mesmo local, de inúmeras diversidades. Nesta praça pública, Bakthin diz então, que o carnaval estabelece uma realidade invertida que promove um “cenário de loucuras”: o cinismo, o grotesco, a obscenidade, enfatizado pela natureza galhofeira da paródia13.

Esta idéia é bastante permeável a alguns conceitos da semiótica da cultura. Segundo o semioticista theco Ivan Bystrina (1925), a superação do caráter dualista/binário 14 da cultura requer processos de inversão, sendo o carnaval um destes processos. V. V. Ivanov (1982), outro semioticista da cultura enfatiza a inversão carnavalesca15 também como solução de oposições binárias: homem/mulher, ativo/passivo, entre outras.

13O autor enfatiza que a Paródia presente no caráter

grotesco de algumas situações, caso do carnaval, deixa “à vista” aquilo que as roupas escondem. Para o autor, portanto mostrar as “partes baixas do corpo” é parodiar as regras cotidianas.

14 Para o autor o caráter binário é um dos mecanismos de

funcionamento da cultura e que esta expresso, por exemplo, nos pares vida/morte, sagrado/profano, sonho/realidade, e que precisa ser invertido para que a cultura se mova.

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Identifica-se como denominador comum para estas discussões é o fato de que o processo carnavalesco se constrói pela utilização de diversos meios: alegorias, comportamentos que pervertem os papéis sociais, música especifica, brincadeiras que reconhecem e delimitam um tempo e um espaço da festa, e fantasias que diferenciam o período do carnaval em relação às roupas cotidianas.

O carnaval percorre diferentes espaços, ruas, bairros, cidades, sendo fundamentalmente uma brincadeira que enfatiza a paródia. Mas parodiar o quê? Arriscamos afirmar que seja uma paródia da morte do corpo: o gozo que prenuncia a morte do corpo. A criação de uma rede de sentidos entre a vida e a morte, pois se corpo e ambiente são instâncias co-relacionadas, a morte e a vida de um ambiente também anunciam alterações no corpo.

Este corpo “folião” desde as festas agrárias do antigo Egito está associado à existência de deuses16. Esta questão vai se aprofundar na Idade Média quando a igreja cristã opõe radicalmente sagrado e profano. É interessante perceber que a alma é conceituada sempre em oposição ao corpo. No carnaval não podem se misturar, uma vez que a visão cristã o carnaval seria um espaço de loucuras onde prevalecem os ‘desejos da carne” em oposição a outros espaços onde seria cultivada a imortalidade da alma.

Nesta rápida análise, podemos perceber que para o senso comum e muitos autores que já abordaram o tema, a festa é uma paródia subversiva que mantém viva nossa necessidade de transgredir a regra, burlar os interditos da cultura, revendo seus “acordos e clausulas contratuais”. Um espaço para dar vida ao que o cotidiano censura e reprime: a “loucura”.

investigação tem estabelecido determinadas características básicas dos rituais cíclicos dos quais participam a

coletividade...

16 No Egito antigo um escravo era escolhido para fazer o

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No entanto, como todo sistema complexo, o carnaval tem regras próprias em conexão ao seu exterior. Pois como veremos, o carnaval está repleto de criticas internas proferidas pelos “tradicionalistas” que acusam o carnaval de estar descaracterizando-se. Então, não seriam tais críticas um desdobramento da mesma família de censuras e regras do cotidiano? Uma continuidade do pensamento que vê as transformações como algo que necessariamente signifique a morte do já existente?

E da mesma forma que o carnaval não se isola do cotidiano, este não se isola do carnaval. Inúmeras realidades da cultura que não fazem necessariamente parte do espaço da festa podem ser lidas como um processo similar ao carnaval: subvertem a organização oficial. Diversos comportamentos tentam “subverter” a ordem vigente. Por exemplo, os Hackers17 e suas pixações eletrônicas podem ser metaforizados como personagens dos territórios carnavalescos: o malandro.

17 contraventor que subverte e altera a ordem do

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MAPA I – O CARNAVAL E SUAS ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS DE SOBREVIVÊNCIA

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2. E NO PRINCIPIO...

“A realidade é aquilo que insiste”

Umberto Eco

E no principio do século XXI era a escola de samba virtual. Existem escolas de samba que acontecem em um espaço do dia-a-dia : a Internet 18. Em 2003 é

fundada a LIESV, ou Liga das escolas de samba virtuais, uma entidade com endereço na WWW19. Diversas regiões do país como Pernambuco, Paraíba, São

Paulo, dentre outras possuem participantes desta comunidade. Miguel Paul, um dos responsáveis pela idéia , explica no site da Liesv sobre a ignição do processo:

“Março de 2003, acabou o carnaval, e agora? Fiz essa pergunta a mim algumas vezes, até que um dia me veio uma luz. Pensei muito nas pessoas que não moram no Rio e que por isso não tem muito acesso às escolas. Por que não criar um carnaval pela Internet? Assim todos podem participar, mas como fazer isso? As idéias foram surgindo e divulgadas. Não faltaram críticas e elogios, e as escolas começaram a se inscrever, esse foi o primeiro sinal de que o projeto daria certo. Passadas as disputas de samba (bem interessantes) chegou o carnaval virtual, o carnaval do sacrifício, que apesar de todos os problemas, dificuldades e brigas, deu certo e fez sucesso. Hoje o principal objetivo é revelar novos talentos e que mais pessoas do meio carnavalesco saibam sobre a existência de nosso carnaval virtual, um projeto levado muito a sério, mas que apesar disso, não deixa de ser uma brincadeira”.

Em outra parte, Arthur Macedo, um dos responsáveis pelo site, apresenta uma descrição de como acontecem os desfiles:

18 Em uma ação de “arqueologia virtual” descobri a

existência destas escolas virtuais em um site chamado “Galeria do samba”. O espaço aberto deste site é um fórum que discute o carnaval carioca. Neste Fórum estão muitas das criticas mencionadas por Miguel Paul, principalmente aquelas que atribuem a falta de realidade ao desfile virtual.

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...Ao ter a brilhante idéia de transformar o monitor em avenida, o presidente da LIESV Miguel Paul, definiu, também, as diretrizes básicas do Carnaval Virtual. A liga administra as, atualmente, 14 agremiações filiadas. As escolas funcionam de forma bastante parecidas com agremiações reais, presentes no carnaval "apaixonantemente" milenar. Possuem presidente, diretorias, carnavalescos, figurinistas, intérpretes e colaboradores.

A escola virtual escolhe sua equipe e define o enredo para o próximo carnaval. Depois de ter comunicado a liga, a escola começa a preparação oficial. Ao sair a sinopse, a escola inicia a sua disputa de samba enredo. Enquanto as "quadras" virtuais se agitam nas disputas, que ocorrem em chats, rádios virtuais e sites, a preparação plástica toma corpo. Todos os setores da escola estão agitados!

Ao definir o samba oficial da escola, depois das disputas, esse é entregue para a liga para oficializar e proporcionar a gravação oficial. E começa mais forte a preparação dos desenhos das fantasias e alegorias. Os enredistas e figurinistas colocam forma no enredo. Está chegando a hora do desfile virtual.

E o desfile? Com todos os desenhos prontos, samba definido e gravado ao vivo, a escola está com as atividades finalizadas e prontas para o desfile. O desfile acontece num site, para a parte visual, e na rádio NetSamba(parceira da LIESV), para o samba e a narração oficial. No site, se vê a disposição dos carros, tripés, alas, armados numa passarela virtual. Enquanto isso, na rádio, o samba ao vivo toca, enquanto a narração vai destrinchando os setores da escola. Ao término do tempo permitido, a escola atinge a linha final e se despede do carnaval “

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que são responsáveis por “guardar” tais memórias20, este evento nos chama atenção para o fato de que deslocar corpo e carnaval de seus ambientes tradicionais criando outros mapas para sua existência, pode significar um principio para a permanência tanto do corpo, quanto do carnaval.

O próprio Brasil não é o “estado inicial” 21 dos festejos carnavalescos. O

papel criativo do tempo nos deixou mais de 4000 anos de história do carnaval, mostrando que “a festa da carne” não se resume ao nosso país e nem aos desfiles das escolas de samba, seguindo seu processo no tempo.22

20Lúcia Santaella (2002) discute que a invenção da escrita,

uma das mais importantes tecnologias criadas pelo homem, significou uma alteração nas memórias do corpo: ‘È curioso observar que cada uma das extrojeções do intelecto e dos sentidos humanos via de regra

correspondeu à extrasomatização de uma certa habilidade da mente. Qualquer extrasomatização sempre significou uma perda a nível do indivíduo, perda individual que é imediatamente compensada pelo ganho a nível da espécie. Assim foi, por exemplo, com a invenção da escrita, que significou uma perda da memória individual, mas ao mesmo tempo, funcionou como uma extensão da memória da espécie. Sem a escrita, a memória correria sempre o risco de se perder com a morte do indivíduo. Como bem prognosticaram os antigos, a escrita, de fato, nos leva à negligência da memória individual, mas é capaz de guardar indefinidamente a memória da espécie.

21 Já se aproveitando da idéia de que estes desfiles virtuais sugerem um começo como possibilidade

do carnaval desenvolver-se como linguagem em outros meios de comunicação, ressaltamos que a idéia de início desenvolvida nesta pesquisa incorpora alguns entendimentos sobre o tempo

formulados pelo químico Ilya Prigogine (1996). Para o físico Albert Einstein passado, presente e futuro já estão construídos. Diferentemente, Ilya Prigogine sugere que o tempo seja um processo irreversível, e também uma flecha em plena construção que tem um “papel criativo”, no sentido que o tempo “gesta” processos evolutivos. Assim, para o autor não haveria um estado “zero”, pois todo principio pressupõe a existência e a conexão de estados anteriores de forma enredada.

22 No ano 4000 a.C. iniciam-se as festas agrárias dos

povos primitivos no Egito antigo. O mundo greco-romano vai dar continuidade aos festejos agrícolas de fertilidade. Hoje há uma enorme variedade de formas referentes ao carnaval:: os trios elétricos, o frevo, os bailes de máscara europeus. Sobre isto ver a “cronologia do carnaval

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A festa é constantemente associada à coexistência entre brincadeiras que ocupam a margem e outras que ocupam o centro. Há em um mesmo espaço diversos carnavais em jogo entrem a oficialidade e a não-oficialidade. Os bailes burgueses do século XIX ocupavam o “centro”, mas coexistiam com a margem, caso do entrudo23. No Rio de Janeiro atual, há o glamour dos desfiles cariocas, que

nem sempre foram oficiais, coexistindo com os blocos de rua que ocupam pouco espaço na mídia. O jogo entre ser oficial ou não, é uma estratégia na comunicação do carnaval.

Assim, toda a história dos ritos carnavalescos é uma rede espaço-temporal 24

que incorpora, além do “gênero”25 escolas de samba, toda uma gama de manifestações transitando entre as categorias “oficial” e “não-oficial”. Esta questão pode ser associada aos desfiles virtuais. Mostrando que a diversidade de estratégias não sacrifica a história, a Internet não determina o fim do carnaval de rua, o ambiente de origem dos festejos. E nem o apagamento da história do carnaval ou desprezo à história do corpo nesta festa. Não há comando algum que faça “reiniciar” a história do corpo e nem do carnaval.

Os desfiles de escola de samba já existem há bastante tempo. A primeira escola de samba “de rua”26 foi fundada em 1928 por Ismael Silva, sendo batizada

23O Entrudo é uma brincadeira popular de origem européia

que consistia numa “batalha” com a “munição” feita de líquidos e farinhas. Considerado violento, foi proibido diversas vezes na história do carnaval brasileiro.

24 O espaço-tempo é um conceito da física

contemporânea. Estabelece a impossibilidade de

separação destas duas instâncias. Emprestamos aqui seu sentido para demonstrar as relações histórico-geográficas do carnaval..

25 Para Mikhail Bakthin “...gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar idéias, meios e recursos

expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a prover a comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras” Machado (2003:68)

26 Utilizaremos a expressão “de rua” para designar as

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por “Deixa Falar”. Brincou pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, mas teve vida efêmera, vindo a se extinguir pouco tempo após sua fundação. Seguindo seu nascimento, hoje há inúmeras agremiações: Mangueira, Salgueiro, Mocidade Independente de Padre Miguel, e inclusive escolas de samba em outras cidades do país, caso de Porto Alegre, São Paulo e diversas outras cidades menores. Até em outros países há imitações de escolas de samba, como é o caso da “Paraíso School of Samba” fundada por brasileiros residentes em Londres27.

A Liesv não é a única entrada do carnaval na Internet. Felipe Ferreira (2005) pesquisando a história e a geografia do carnaval brasileiro, indaga em seu “ livro de ouro do carnaval brasileiro”, entre outras coisas, a respeito da pergunta “a Internet dá samba?”. Conclui que o surgimento, em 1998, da primeira lista de discussão sobre o carnaval carioca marca a entrada da festa nas “ondas do ciberespaço”, e que o processo evolutivo seria inevitável, uma vez que as novas tecnologias mais cedo ou mais tarde serão incorporadas como linguagem pelo carnaval.28.

Pensar que o desfile/carnaval adentra outros espaços, replicando-se em diversos ambientes, e, sobretudo imaginar a criação de um desfile na Internet, reforça a idéia de que o carnaval seja uma informação buscando formas de permanência, estratégias similares àquelas que um organismo busca para sobreviver29.

assim fortalecer o preconceito ‘real x virtual’ que esta sendo discutido no decorrer do trabalho.

27 Informações podem ser vistas pelo site

http://www.paraisosamba.co.uk/ (disponível em agosto de 2004)

28Este livro foi lançado durante a finalização desta

pesquisa. No entanto foi uma agradável surpresa perceber que outros pesquisadores estejam indagando sobre as possibilidades da Internet “incorporar” o carnaval de alguma forma.

29Esta idéia de que a cultura se replica pelos pressupostos biológicos foi desenvolvida por Richard

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2.1. NOVOS ESTRANHOS NO CARNAVAL: DISCUTINDO AS CRÍTICAS

Com o desfile virtual não seria diferente. Como um “corpo estranho” que entra em nosso organismo passando, não pela “defesa” mas sim pelo reconhecimento do outro30, a Liesv e seus desfiles virtuais começam a emergir

como linguagem e a entrar nas veias do fluxo da vida social. A idéia de “primeiro contato” pressupõe o surgimento de estranhamento e instabilidade, uma vez que trata-se de reconhecer no tempo o processo e as possibilidades de estabilização desta “nova” informação se relacionando com as informações já existentes. Tais desfiles virtuais começam a surgir possibilitando testar como estas novas informações podem ser “oficializadas” pelo corpo e pela sociedade. Ou não. Pois se este modo singular de brincar o carnaval se tornará uma informação “resistente”, algo incorporado à vida social, só o tempo nos dirá.

Contudo, uma vez que instabilidades promovem comunicação e movimento, vemos na emergência destes desfiles, e em suas possibilidades de estranhamento

31 , uma série de questões sobre o significado do corpo e do carnaval. Este último,

30Francisco Varela eHumberto Maturana(1997) explicam que o sistema imunológico age por reconhecimento e usufrui de capacidade de memória. Esta concepção desconstrói a metáfora de que o sistema imunológico seja um exército. Ao contrário, este sistema estabelece relações cognitivas com corpos estranhos que adentram nosso organismo selecionando-os em acordo com a existência ou não de risco para a permanência do organismo.

31 Há várias teorias que desenvolvem a noção de

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em sua natureza assegurada até mesmo etmologicamente32, é considerado uma “festa da carne”. As principais criticas que surgiram “estranhando” este evento são:

1 - Um desfile na Internet é necessariamente, a “morte do verdadeiro carnaval”. Significa acentuar a perda da memória e da identidade cultural afro-brasileira com a entrada de pessoas “que não fazem parte“ do mundo do samba33;

2 - Este evento é apenas uma “brincadeira supérflua”, “inútil”, um “carnaval falso”, algo “não instituído”, uma vez que convencionou-se atribuir graus de valor à cultura: aquilo que é aceito tem visibilidade. Mas, como veremos adiante, o carnaval se encarrega justamente de dar visibilidade ao invisível;

3 - A terceira principal crítica é a freqüente pergunta: como podemos dançar, pular , e principalmente, sentir a “materialidade” do carnaval, ou seja do corpo, pela Internet?

Roberto Damatta (1979) sugere que o carnaval “não tem dono”. Daí, que em relação à “entrada” de pessoas que não seriam parte do carnaval podemos simplesmente trazer novamente a questão: de quem é o carnaval?

Sobre a “utilidade” da festa, Vilém Flusser em sua série carnavalesca (1972) analisa a utilidade do carnaval propondo que o ato gratuito e fortuito esteja correlacionado à sacralidade. Deuses são sacralizados gratuitamente. Daí, conferir

32 São vários os sentidos atribuídos à palavra carnaval:

“festa da carne”, “ausência da carne”, ‘carro naval”. Este último se refer aos carros em forma de nave que

distribuíam vinho na Roma antiga. Sobre os significados da palavra, ver “Carnaval, carnavais” (1997) de José Carlos Sebe

33 Para diferenciar o “sambista” existe a expressão

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utilidade às coisas seria desacralizá-las. Assim, atribuir algum sentido de utilidade à festa carnavalesca seria retirá-la de seu contexto “sagrado”. A “utilidade” do carnaval é, portanto, ser “inútil”. O autor inclusive critica o excessivo caráter de “feriado” dado ao carnaval. O carnaval é um trabalho e não a idéia de descanso, feriado. Mas, paradoxalmente, um trabalho “inútil”.

A “última” critica conecta-se a aspectos da comunicação na sociedade contemporânea e suas recentes transformações. Trata-se de um interessante momento para discutirmos se o carnaval é “realidade ou ilusão”. A comunicação via Internet é categorizada pelo senso comum como a inexistência do corpo, já que, supostamente, o “virtual substitui o corpo real34 . Mas, fica a inevitável questão: O que é o “real”? Somente aquilo que vemos, tocamos? O que seria um corpo real? Um corpo “puro”, isolado de engrenagens inorgânicas, artificiais?

O adjetivo virtual empregado aos usos da Internet relaciona-se à preocupação com a “existência verdadeira” dos objetos que vivem no ciberespaço. Mas virtual não significa inexistência. “No senso comum, virtual é simplesmente falta de existência. O real em si, como se sabe, é inexistente: o que há mesmo são efeitos de objetividade, a que costumamos chamar de ‘realidade’. Cabe sempre à consciência humana, na verdade, determinar o grau de realidade das coisas, inclusive de algo inicialmente qualificado como virtual ” (Sodré ;2002:123)

Em acordo com tal afirmação, o pensamento de Pierre Levy (1999) sugere que este virtual exista como ponte para outros níveis de realidade. O atual seria apenas um destes níveis. Assim, o virtual é aquilo que ainda não foi atualizado35, sendo um

34

Nas conversas pela Internet podemos mascarar nosso corpo. “mentir” sobre nossa aparência física. Talvez venha daqui a idéia de “irrealidade”. No mapa III refletiremos de forma mais aprofunda sobre a questão do corpo em relação à imagem.

35

Já o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual.

(25)

devir, um vir-a-ser longe de ser previsível ou determinado. Para o autor o virtual existe à medida em que se realiza como os inúmeros efeitos que possibilita na construção permanente do fluxo da realidade. E aquilo que é possível é muito mais rico do que aquilo que já está determinado.

Acaso é uma palavra chave para compreender o sentido de virtual, assim como é fundamental para a sobrevivência da comunicação. O acesso de um endereço qualquer da Internet cria devires36: vivemos ao acaso na riqueza das infinitas

possibilidades de cruzamento de links37e a atualização das páginas sujeitas ao

fluxo. Nossa navegação faz valer o adjetivo “virtual” como um vir-a-ser indeterminado que não se opõe ao real.

Mas o senso comum aposta numa separação radical: virtual como substância inorgânica, intangível versus real como matéria orgânica, palpável. Esta formulação parece familiar ao dualismo cartesiano 38 e sua separação entre corpo e alma. A persistência de inúmeras variações deste dualismo, encontradas por exemplo na

36Para o filósofo Gilles Deleuze e para Félix Guatari (1997),

um Devir é o movimento das coisas e do mundo, a

passagem contínua de algo a outro estado. Deleuze utiliza metáforas geográficas para evidenciar suas idéias: um devir é cheio de planos, segmentos, linhas, mapas, territórios. Deleuze utiliza ainda a idéia de Rizoma, raízes que se interligam sem um ponto de convergência. O conceito de devir nasce como uma “linha de fuga”, a necessidade de se pensar o mundo como uma rede de agenciamentos coletivos do desejo, e não mais como estrutura centralizador e binária.

37 Link se refere à conexão entre páginas na Internet. Esta

palavra tornou-se um metáfora que significa relacionar/amarrar idéias diferentes.

38 René Descartes ( 1596-1650) formulou a idéia de que a

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questão real versus virtual demonstra que parece haver a insistência de um “sujeito cartesiano que continua incomodando” como ironiza o filósofo Slavov Zizek39.

A questão das divisões dualistas é tão forte que a ciência clássica , contaminada por este tipo de pensamento, estabeleceu de tal forma as dicotomias que não temos palavras para designar as não dicotomias. O par ordem/desordem, um conceito fundamental para entendermos a comunicação, não possui uma palavra que consiga designar estas duas coisas ao mesmo tempo40. E, como

veremos no mapa II, perceber o jogo entre ordem e desordem é algo fundamental para a sobrevivência do corpo e suas linguagens.

Mas, além da visão dicotômica da Internet, outras críticas concernentes ao seu uso nas relações sociais baseiam-se no tradicional “medo da substituição” que enxerga a novo como o “anúncio do fim”. Quando o cinema surgiu, previsões apocalípticas sugeriram que o teatro estaria acabado. Quando a televisão surgiu, previu-se o fim do cinema. No entanto, todas as linguagens co-existem e estão se “mixando” e dando origem a novos meios e modos de comunicação, caso da própria Internet. No entanto, estes inevitáveis estranhamentos ao novo são uma parte fundamental do processo uma vez que demonstram a capacidade da vida social reagir e poder se entrelaçar dando significados a si própria.

39Filósofo esloveno. Conceitua (1998) que este dualismo

insiste por que significa a estabilidade dentro da instabilidade a que estamos sujeitos. Enquanto não encontrarmos estabilidade em outros processos de organização, vamos continuar nos agarrando a esta forma cartesiana de categorização. E por isto que mesmo negando este “sujeito”, ele continua “insistindo”.

40 Anotações da aula “Sistemas Intersemióticos” ministrada

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2.1.1. A CIBERCULTURA E SEUS PARADIGMAS DE REALIDADE

Interações entre o que parece “real”, ou não, acontecem independentemente do surgimento da Internet. Desde cedo, o homem inventa formas de narrativizar41

sua existência criando outras realidades que se conectam à vida “real”. Literatura, cinema, artes plásticas, festas pagãs, entre outros, são diversas destas categorias, espécie de paradigmas do “faz de conta”. Livros, pinturas, filmes, enredos de escolas de samba são “habitantes” deste território e que sobretudo organizam formas de linguagem e ajudam a elaborar as dúvidas e as incertezas que nos cercam sobre nossas origens e nossos destinos, criando constantemente crenças, que no entanto podem se desconstruir.42

Muitas dúvidas se referem à relação do homem com a tecnologia. Diversas elaborações surgiram: George Orwell(1984), Aldous Huxley( Admirável Mundo Novo) , Mary Shelley (Frankstein), Isaac Asimov ( Eu, robô), o filme 2001- Uma odisséia no espaço, o outro recente filme Matrix, dos irmãos Wachowisk, dentre tantos outros , são tecidos narrativos que falam a respeito da ansiedade humana de hoje em lidar com seu futuro, com o indeterminado. De um destes “tecidos ficcionais” nasce uma expressão muito comum do nosso cotidiano atual: Ciberespaço, palavra que aparece pela primeira vez em Neuromancer (1984), livro de William Gibson.

41

Narrativizar significou e significa para o homem atribuir

nexos e sentidos, transformando os fatos captados por sua percepção em símbolos mais ou menos complexos, vale dizer, em encadeamentos, correntes, associações de alguns ou de muitos elos sígnicos.” Baitello (1997:37)

42 Lucrécia D’aléssio Ferrara (2001:66) conceitua que “a dúvida é um estado desagradável e incômodo contra o qual lutamos; esse esforço é orientado pela investigação, que nos permite superar a crise em que a dúvida nos projeta. Nossas ações são orientadas por hábitos que decorrem das crenças, porém esta regularidade está constantemente operando com dúvidas, que prejudicam o equilíbrio

(28)

Na “vida real” o ciberespaço é uma invenção anterior ao livro de W. Gibson. Inclusive, a idéia de um espaço virtual, um “lugar” que seja a fusão de diferentes espaços esteve presente na história da humanidade desde cedo. A historiadora Margareth Wertein (2003) conceitua que a idéia de sobreposição de espaços e rompimento da linearidade visual já estava presente nas artes visuais do barroco. O próprio teto da capela Sistina, palco da narrativa criada por Michelangelo é uma obra que coloca em um mesmo espaço diferentes hierarquias. Steven Jonhson (1999:34) afirma que o poeta grego Simônides ( século VI, A/C) inventou um “palácio da memória”. Este baseava-se no fato de que nossa memória visual é mais duradoura que a memória textual. A estratégia deste “palácio da memória” como possibilidade retórica consistia em imaginar histórias como edificações arquitetônicas aplicando este potencial à mnemônica espacial. Jonhson (35) explica ainda que foi Doug Engelbart que concretizou a idéia “real” de um espaço-informação. Em 1968 D. Engelbart apresentou sua invenção em uma conferência na cidade de São Francisco, movendo-se com um mouse43pela tela: “ Pela primeira vez, uma máquina era imaginada não como um apêndice aos nossos corpos, mas como um ambiente, um espaço a ser explorado. Podíamos nos projetar neste mundo, perder o rumo, tropeçar em coisas. Parecia mais uma paisagem do que uma máquina, uma ‘cidade de bits’, como William Mitchell44, do Massachuts Institute of Technology, a chamou em seu livro de 1995. Desde que os artesãos do renascimento haviam atinado com a matemática da perspectiva pictórica, nunca a tecnologia havia transformado a imaginação espacial de maneira tão formidável. A maior parte do vocabulário ‘Hight Tech’ de hoje deriva dessa arrancada inicial: ciberespaço, surfar, navegar, rede, desktops, janelas, arrastar, soltar, apontar eclicar. O jargão começa e termina com o espaço-informação. E passaram-se apenas algumas décadas desde a demonstração original de Engelbart. Podemos imaginar o quanto a metáfora terá viajado a té o fim do próximo século.

43

Artefato móvel que conduz o movimento do cursor na tela do computador. O cursor é um ponto que serve de localização

44

(29)

A herança deixada pela perspectiva linear45, a idéia de um sujeito espectador que passa a ser a “medida do espaço” e que apenas observa a natureza parece mesmo não fazer mais sentido algum com o surgimento deste espaço-informação. A perspectiva renascentista é uma constituição do olhar que esta presente em nossa história há 500 anos. Estamos condicionados a “enquadrar” o mundo, como evidenciava em 1435 a idéia de Leon Battista Alberti : “a pintura é uma janela para o mundo”. No entanto, a interatividade , assim como outras discussões na área da física 46 passa a significar o não isolamento , a necessidade permanente de

conexão entre usuário e ciberespaço, ajudando na desconstrução do paradigma de que o homem seja a “medida das coisas” e esteja separado do mundo, apenas observando-o.

No entanto, não estamos entendendo a Internet como um espaço onde literalmente possamos entrar. Parece óbvio mas é preciso ressaltar que nenhum corpo é transformado em bytes e colocado literalmente dentro da Internet47. Assim

45Tecnologia matemática desenvolvida no Renascimento.

Pesquisadores como Arlindo Machado (1982) comentam sobre o fato da perspectiva renascentista estar ligada à visão antropocêntrica do universo, o que significa para a história da cultura, o fato do homem estar “observando” o mundo, conseguindo “enquadrá-lo”. Jorge Lúcio de Campos no livro “Do Simbólico ao virtual”( 1990) estuda, entre outras coisas, o pensamento do historiador Erwin Panofsky, comentando que este autor dedica boa parte de seus estudos para a pluralidade da perspectiva como técnica e sua utilização anterior ao Renascentismo, com outras sentidos, diferentes dos significados desenvolvidos em relação à perspectiva neste período, como a separação objeto/observador.

46Como explica Katz (1998)“...a ciência clássica entende a descrição científica como a produzida por um observador independente das coações físicas , um ser que contempla o mundo físico do ‘exterior’. Esta posição é criticada pela ciência contemporânea.

47 Margareth Wertein(2003) elabora uma interessante idéia

ao conceituar que a noção do “paraíso celestial” se conecta ao surgimento da Internet e sua suposta

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como a pintura , a Internet é um desdobramento simbólico e principalmente metafórico do espaço. Porém, como veremos no mapa III, entrar simbolicamente neste espaço é uma ação que envolve a complexidade das metáforas e do aparato sensório-motor para além da questão dos movimentos dos olhos.

Como identidade desta tecnologia, a conexão entre indivíduo e ciberespaço marca o surgimento de outro paradigma da comunicação caracterizado pela interatividade e horizontalidade e que passa a co-existir com o padrão de comunicação centrado, vertical e unidirecional. O ciberespaço é um espaço marcado pelo nomadismo, um território de imersão e simulação, sem hierarquias fixas, mas sim com hierarquias em fluxo. Um “...novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ele abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo” (Levy:1999;17).

Relacionando-se intimamente à globalização e à pós-modernidade48, o ciberespaço conecta-se ao contexto da cibercultura. “O neologismo Cibercultura, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas., de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço.” (Levy:1999;17).

Em sua emergência, a Cibercultura tem feito surgir uma espécie de polarização entre “apocalípticos e integrados”, como argumenta Umberto Eco ao comentar os dois principais posicionamentos críticos assumidos pela sociedade sobre a questão da Internet. Os primeiros, partindo da teoria Marxista, vêem a Internet como o aprofundamento da “barbárie social” em que vivemos: desigualdade socio-econômica, concentração de poder financeiro nas mãos de

desmaterializar sendo transformado em bytes e assim “entrar” na Internet.

48 Os processos de transnacionalização dos conceitos do

(31)

poucos, reforço aos centros de potência científica e militar. Os segundos numa “reencarnação” da razão Iluminista vêem o uso da Internet como possibilidade de concretização da tão sonhada “civilização”.

No entanto, para enxergarmos a complexidade da questão é preciso superar esta polarização. A questão não é se concentrar em um ou outro pólo, mas sim incorporar o fato de que tais questões não estão separadas. E sobretudo perceber que o “real” é algo bem mais complexo e indefinido do que a estabilidade de conceitos como “bem e mal”. Há diversos problemas que dizem respeito a organizar coletividades e respeito às individualidades, e esta questão, sendo algo que está além de uma lógica binária pode apresentar possibilidades de solução se for levada em conta sua complexa estrutura de rede.

Sobre problemas da relação corpo/tecnologia há questões fundamentais e que exigem atenção. O pesquisador canadense Marshall McLuhan (2001), conhecido por seu conceito de que “O meio é a mensagem”, desenvolveu a teoria de que o corpo se estende no espaço por aparatos tecnológicos49. Releituras e observações desta teoria sugerem a existência de uma “hipertrofia” condicionada50

49Marshal Mcluhan aponta em seu livro “Understanding

Media” publicado em 1964 que toda e qualquer

ferramenta que possa estender o corpo, como um garfo ou uma faca, seriam respectivamente, as ampliações das mãos e dos dentes.

50 É interessante perceber que a palavra condicionar

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pela atenção exagerada nestas extensões tecnológicas. Argumentam que o uso demasiado de alguma parte de nosso corpo pelo esquecimento/negação de outras seja uma característica patológica. Como um sintoma da mesma natureza, há em nossa sociedade uma saturação dos sentidos51 provocada pelo consumo

vertiginoso da imagem, sobretudo de origem tecnológico-eletrônica. Conectada à tal realidade encontramos o individualismo que marca a sociedade pós-moderna, e a violenta sedução de suas imagens imperativas, que criando espécies de muralhas imagéticas, escondem as singularidades de cada corpo, cada indivíduo. Estamos cada vez mais individualistas, e, no entanto isto não significa atenção às nossas singularidades corporais. E ainda, mergulhados em toda a banalização da noção de cidadania, que fica nítida pela enorme quantidade de informações produzida pelos meios de comunicação de massa onde inúmeras vezes esta ausente qualquer respeito às diferenças alheias. Esta realidade do império das imagens existe, nos anestesia e altera nossa percepção para os horrores sociais que vivenciamos.

Agora, no entanto, enfatizamos que nosso foco se direciona para as tecnologias comunicativas como um “espaço” de condição sinestésica para o corpo, o desdobramento das sensações corporais e a fusão entre seus sons e suas imagens como mais um traço da criatividade das estratégias da comunicação. E, sobretudo notar que a tecnologia “entra no corpo”52. O “papel criativo” de longos períodos de tempo cria inúmeras adaptações entre corpo e ambiente. “E, se o que esta em volta também compõe o corpo, a cultura ‘encarna’ no corpo”. Katz & greiner (1999). Assim, a tecnologia, como a cultura, é corporificada e conectada às

indeterminado de processos em interação que se auto-sustentam ou se inibem.” (1999:25)

51 Pesquisadores Norval Baitello Júnior (2001) tecem

pesquisas sobre a questão da saturação que a imagem possa causar, conceituando que a visibilidade em excesso pode cegar

52 Não estamos nos referindo à uma corporificação literal

(33)

redes cognitivas do corpo. È desta forma que o sentido de “entrar” na Internet, através de suas possibilidades cognitivas.

A tecnologia apresenta-se como estratégia da sociedade contemporânea quando se discute questões ligadas às possibilidades de expressão53 que se conectam à discussões como a descentralização do poder e a criação de fluxos de sentidos54. Como vimos na introdução, o carnaval significa a inversão de

significados/sentidos, e veremos adiante que tal realidade é uma proposta despretenciosa dos desfiles virtuais, mas que já indica estratégias de questionamento do poder. Vale a pena pensar no sentido da inversão e citar uma frase de um texto do sociólogo Manuell Castells (2001:497), onde propondo uma

53Walter Benjamim e seu clássico estudo sobre a arte na era da reprobutibilidade técnica nos ajuda a refletir sobre esta questão, pois vemos que há uma grande disponibilidade doméstica de criação de imagens, e este é um aspecto fundamental da comunicação contemporânea. Contudo, o fato de que a simples utilização de computadores e softwares não constitua um processo expressivo. Devemos pensar que esta autonomia de produção conectada a uma significativa expressividade é que possa constituir um processo significativamente expressivo. A mera utilização em si de ferramentas tecnológicas oriundas do contexto industrial não dizem nada a respeito de estar

expressando-se ou apenas produzindo mais informações vazias. Como nos colocou W. Benjamim a principal questão é saber como tais ferramentas, a técnica, pode ser sensíveis à diferentes possibilidades expressivas do homem. E Vale ressaltar o sentido de deslocamento de significados usuais como prática expressiva.

54 No livro o “Distúrbio Eletrônico” (2001) o grupo de artistas intitulado Critical Art Ensemble dedica boa parte do texto para a questão do “poder nômade”. Para os autores, hoje não há um poder visível e fixo. E subverter este poder é se atar à

necessidade de se movimentar. Se o poder é nômade, estratégias que questionem o poder também devem se aproveitar do

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inverção o autor argumenta: “... o poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder”.

Assim, vale ainda ressaltar que impossibilidades de organização coletiva, anestesia corporal ou negação das singularidades, não estando em lugares fixos acontecem para além das situações em que há incorporação da tecnologia. Lembramos outros contextos onde isto pode ocorrer, pois é preciso notar que as palavras, outro artefato criado pelo homem, também são processos de corporificação, e mesmo quando processadas exclusivamente pelo corpo, sem que sejam mediadas por aparatos eletrônicos, também podem causar saturação.

O que esta em jogo não é tanto o uso ou desuso de artefatos, já que a tecnologia é incorporada, mas sim, a possibilidade de criação de processos que enfatizem perceber que as singularidades individuais são co-dependentes dos interesses comuns através de organização coletiva55. Assim como o corpo e ambiente são também co-dependentes.

2.3. A VIRTUALIDADE DO JOGO

Jogos são devires, pois possibilitam a correlação entre o acaso e a indeterminação. Também são espaços onde as diferenças ficam visíveis e são coexistentes, pois organizam também a co-dependência entre os indivíduos. O carnaval é, sobretudo um jogo repleto de disputas que estimulam a concorrência entre seus participantes: concurso de fantasias, disputa de samba nas quadras, eleição do rei momo, dentre outras. A competição entre as escolas de samba virtuais são parecidas com os jogos que já existem na natureza. Pois é fundamental esclarecer que o jogo é também uma estratégia de sobrevivência e vai além das organizações sociais humanas. “O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois se

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esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à idéia de jogo. Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e gestos”.Huizinga (1998:7). Para Baitello (1997:55), o jogo é um dos “universais da cultura”, uma das nascentes da cultura humana.

Desde cedo, quando éramos seres unicelulares vivendo em ambientes aquosos, temos disputado a sobrevivência com outros diversos e inúmeros organismos. As competições existentes em nossa vida social parecem metaforizar e dar continuidade a esta condição.

Jogos pressupõem a criação de máscaras. Seria esta diferenciação, este gesto de fantasiar-se, uma imitação de comportamentos presentes em outros espaços na natureza? Estariam relacionados à invenção de disfarces como possibilidades de sobrevivência, como é o caso do mimetismo dos camaleões, que camuflam seu corpo confundindo-o ao ambiente, ou do exibicionismo dos pavões, que na época do acasalamento “destacam” seu corpo do ambiente? O polêmico “cristo proibido” do desfile da beija–flor de 1989 funde justamente estas questões, ao “esconder”, “metamorfosear” a alegoria que havia sido proibida pela arquidiocese do Rio de Janeiro, aquele desfile ganhou tremenda visibilidade.56

Daí, perceber que jogos também pressupõem a criação de acordos entre os jogadores, os outros “times” e fundamentalmente entre o “campo do jogo”. Todo

56

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organismo para sobreviver precisa jogar também com o ambiente onde vive. Explorar o ambiente é um jogo de conquistas espaciais: de vírus nas correntes sangüíneas a qualquer pessoa que percorra os espaços simulados de um videogame . A relação ambiente/jogador pressupõem o acaso e a existência de conteúdos virtuais, nunca pré-determinados, mas que paradoxalmente só podem ser atualizados no decorrer da ação de jogar. Assim, jogar é, sobretudo estar sujeito a alterações.

Assim como a indeterminação parece ser inerente a vários tipos de jogos, outra característica típica é a inversão carnavalesca. Como parte do jogo, criar fantasias carnavalescas é estar sujeito às alterações, à “atualizações”. É promover outras organizações do corpo “atualizando” simbolicamente outras configurações sociais. Trata-se da possibilidade virtual de ser outros corpos diferentes daqueles do cotidiano. A inversão no carnaval é uma estratégia que conhece as “mortalidades”, mas que brinca com a virtualidade desta realidade.

Então, podemos ver que desde seus primórdios, pela jogo incessante de inversões e, consequentemente, a invenção de fantasias, o carnaval opera um vir-a-ser, aproximando-se assim do conceito de virtualidade discutido no contexto da comunicação contemporânea. Quando o “escravo pode se tornar rei” há um vir-a-ser envolvido nesta questão. Ou seja, a inversão carnavalesca é vista como um desvio da norma, do padrão, da categoria pré-estabelecida. Uma “f(r)esta popular” que rompe Imprintings57. A ocupação virtual de espaços transformando-os, invertendo seus significados.

(37)

Há um significado político bastante importante neste movimento de inversão que parodia a loucura, nesta “atualização” das regras sociais. Como jogo e festa coletiva, o carnaval é um tempo e um espaço onde as pessoas podem “rir” coletivamente da hierarquia onde estão inseridas, e alterá-la, mesmo que virtualmente/simbolicamente.

E como jogo, que faz emergir pelo lúdico outras possibilidades para o corpo e para a vida social, simbolicamente o carnaval é um evento que inverte a “não-cultura”58. Em 1997 a escola de samba carioca Unidos do Viradouro realizou um

ume movimento, que processou uma inversão entre cultura e “não cultura”. Colocando uma “batida funk” na cadência do samba naquele ano. O funk é muitas vezes tido como algo marginal, principalmente para outras regiões distantes do Rio de Janeiro, onde este gênero musical encontra grande acolhida. No entanto, diversas pessoas que “estranham“ este gênero reconheceram sua existência na criativa mixagem entre os ritmos do samba e do funk. A questão é que o trânsito antropofágico entre um sistema e outro engendram comunicação59.

58A ‘não cultura’ é um conceito que designa aquilo que

não foi oficializado. Este conceito não significa a

“...inexistência de uma organização para além do âmbito de uma cultura instituída; organização que, no entanto, não é percebida ou aceita pelos parâmetros da cultura instituída, até o momento em que as fronteiras da cultura irão se expandir em direção à não-cultura, num movimento antropofágico” Contrera (2000:26)

(38)

Inserido neste “movimento antropofágico” o carnaval não pára seus deslocamentos. Como parte da mesma família de críticas sobre a descaracterização do carnaval , há inúmeras discussões sobre o fato do desfile carioca estar contrariando o principio de participação popular, ligado excessivamente aos mecanismos da indústria cultural, fazendo então parte do

mainstream, uma vez que a festa tem se conectado à mídia60. Muitas vezes

acusado de funcionar como uma espécie de controle ideológico, algumas leituras acerca do evento ( ver Cabral 1996) sugerem subliminarmente que as lições de “O Príncipe” de Maquiavel 61 estão em curso: umas das formas de se manipular as

coletividades é prover-lhe festas que inibam reações contrárias ao poder. Mas fica mais uma questão: o carnaval não significa a ocupação de espaços oficiais transformando-os, invertendo-os sobretudo como brinquedos?62 O carnaval esta no centro, ou foi o centro que deslocou-se para o carnaval?

60 Entendida aqui como o conjunto de meios de

comunicação que sob instâncias sociais, econômicas, políticas e culturais fazem circular as informações na sociedade.

61 Há uma discussão sobre a intenção de Maquiavel ao

escrever este livro. Discute-se a possibilidade de que “O príncipe” seja um conjunto de mensagens subliminares que“alertam” sobre as estratégias do poder.

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É “estranho” ver que a participação popular esteja condicionada pelo caráter mercadológico da festa. Não há como negar que a projeção turística do evento trouxe uma perda para o povo. É neste jogo que pensamos na Liesv como uma estratégia de comunicação, pois se pensarmos sob a lógica da inversão podemos ler na invenção dos desfiles virtuais um gesto digno das inversões carnavalescas: colocar a brincadeira nos espaços oficiais, no caso o Ciberespaço, e além disto ressaltar que as pessoas tem o desejo de brincar o carnaval, mas estão, de alguma forma, excluídas do processo. Apropriar-se da Internet como espaço oficial para a realização de “brincadeiras” é algo bastante carnavalesco no sentido de participação popular.

Vendo desta forma, percebemos o carnaval como um espaço onde se coloca para fora aquilo que estava censurado: o “desejo” de brincar. Em uma metáfora psicanalítica, é como se fosse “um corpo sobre um divã alegórico” que busca o inconsciente o “obscuro”, a “loucura”. Sigmund Freud (1859-1939) criticando a racionalização excessiva da sociedade, esta mesma racionalização que é parente próxima dos fatores que acabam tornando difícil a participação popular no carnaval, fala sobre o “mal estar na civilização” (2002) assinalando justamente que se não houver espaço para estes “desvios obscuros”, gera-se um “mal estar” onde homem literalmente “enlouquece”. Como também observa Edgard Morin (1979), o “homem é um enigma”, torna-se notório que a crença de que pela razão a civilização tornaria o homem mais educado é inverossímil. 63

63 Sebe (1997) conta sobre uma passagem da peça ‘As Bacantes”

Referências

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