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Jogos são devires, pois possibilitam a correlação entre o acaso e a indeterminação. Também são espaços onde as diferenças ficam visíveis e são coexistentes, pois organizam também a co-dependência entre os indivíduos. O carnaval é, sobretudo um jogo repleto de disputas que estimulam a concorrência entre seus participantes: concurso de fantasias, disputa de samba nas quadras, eleição do rei momo, dentre outras. A competição entre as escolas de samba virtuais são parecidas com os jogos que já existem na natureza. Pois é fundamental esclarecer que o jogo é também uma estratégia de sobrevivência e vai além das organizações sociais humanas. “O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois se

55Uma interessante relação entre técnica e singularidade corporal , sinestesia, e trabalho coletivo é sugerido por klauss viana . o trabalho deste coreógrafo diz respeito à atenção às múltiplas sensações corporais que emergem junto com o movimento. ver Neide neves (2003)

esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à idéia de jogo. Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e gestos”.Huizinga (1998:7). Para Baitello (1997:55), o jogo é um dos

“universais da cultura”, uma das nascentes da cultura humana.

Desde cedo, quando éramos seres unicelulares vivendo em ambientes aquosos, temos disputado a sobrevivência com outros diversos e inúmeros organismos. As competições existentes em nossa vida social parecem metaforizar e dar continuidade a esta condição.

Jogos pressupõem a criação de máscaras. Seria esta diferenciação, este gesto de fantasiar-se, uma imitação de comportamentos presentes em outros espaços na natureza? Estariam relacionados à invenção de disfarces como possibilidades de sobrevivência, como é o caso do mimetismo dos camaleões, que camuflam seu corpo confundindo-o ao ambiente, ou do exibicionismo dos pavões, que na época do acasalamento “destacam” seu corpo do ambiente? O polêmico “cristo proibido” do desfile da beija–flor de 1989 funde justamente estas questões, ao “esconder”, “metamorfosear” a alegoria que havia sido proibida pela arquidiocese do Rio de Janeiro, aquele desfile ganhou tremenda visibilidade.56

Daí, perceber que jogos também pressupõem a criação de acordos entre os jogadores, os outros “times” e fundamentalmente entre o “campo do jogo”. Todo

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Marlene Soares(1996) em seu livro “Sob o signo do avesso” aborda justamente esta questão. Relacionado a idéia de cobrir o cristo e colocar uma faixa com a frase “Mesmo proibido, olhai por nós!” à força comunicativa dos significados do carnaval.

organismo para sobreviver precisa jogar também com o ambiente onde vive. Explorar o ambiente é um jogo de conquistas espaciais: de vírus nas correntes sangüíneas a qualquer pessoa que percorra os espaços simulados de um videogame . A relação ambiente/jogador pressupõem o acaso e a existência de conteúdos virtuais, nunca pré-determinados, mas que paradoxalmente só podem ser atualizados no decorrer da ação de jogar. Assim, jogar é, sobretudo estar sujeito a alterações.

Assim como a indeterminação parece ser inerente a vários tipos de jogos, outra característica típica é a inversão carnavalesca. Como parte do jogo, criar fantasias carnavalescas é estar sujeito às alterações, à “atualizações”. É promover outras organizações do corpo “atualizando” simbolicamente outras configurações sociais. Trata-se da possibilidade virtual de ser outros corpos diferentes daqueles do cotidiano. A inversão no carnaval é uma estratégia que conhece as “mortalidades”, mas que brinca com a virtualidade desta realidade.

Então, podemos ver que desde seus primórdios, pela jogo incessante de inversões e, consequentemente, a invenção de fantasias, o carnaval opera um vir- a-ser, aproximando-se assim do conceito de virtualidade discutido no contexto da comunicação contemporânea. Quando o “escravo pode se tornar rei” há um vir-a- ser envolvido nesta questão. Ou seja, a inversão carnavalesca é vista como um desvio da norma, do padrão, da categoria pré-estabelecida. Uma “f(r)esta popular” que rompe Imprintings57. A ocupação virtual de espaços transformando-os,

invertendo seus significados.

57Edgard Morin(1991) estabelece que “...há um complexo

de determinações sócio-noo-culturais que se concentra para impor a evidência, a certeza, a prova da verdade do que obedece ao imprinting e à norma”, O carnaval é um

possível meio de inverter estes imprintings. Em correlação a este significado encontramos o livro de Maria Clementino que discute a existência de “f(r)estas“ populares por onde o povo pode “ver e ser visto”.

Há um significado político bastante importante neste movimento de inversão que parodia a loucura, nesta “atualização” das regras sociais. Como jogo e festa coletiva, o carnaval é um tempo e um espaço onde as pessoas podem “rir” coletivamente da hierarquia onde estão inseridas, e alterá-la, mesmo que virtualmente/simbolicamente.

E como jogo, que faz emergir pelo lúdico outras possibilidades para o corpo e para a vida social, simbolicamente o carnaval é um evento que inverte a “não- cultura”58. Em 1997 a escola de samba carioca Unidos do Viradouro realizou um

ume movimento, que processou uma inversão entre cultura e “não cultura”. Colocando uma “batida funk” na cadência do samba naquele ano. O funk é muitas vezes tido como algo marginal, principalmente para outras regiões distantes do Rio de Janeiro, onde este gênero musical encontra grande acolhida. No entanto, diversas pessoas que “estranham“ este gênero reconheceram sua existência na criativa mixagem entre os ritmos do samba e do funk. A questão é que o trânsito antropofágico entre um sistema e outro engendram comunicação59.

58A ‘não cultura’ é um conceito que designa aquilo que não foi oficializado. Este conceito não significa a

“...inexistência de uma organização para além do âmbito de uma cultura instituída; organização que, no entanto, não é percebida ou aceita pelos parâmetros da cultura instituída, até o momento em que as fronteiras da cultura irão se expandir em direção à não-cultura, num movimento antropofágico” Contrera (2000:26)

59 Vale lembrar que o movimento modernista assinalou uma valiosa lição ( que aliás, tinham aprendido, ou melhor, comido de nossos índios!): “Lá vem nossa comida pulando!”, ou seja, só a antropofagia pode nos fazer vivos! Quando comemos o “estrangeiro” podemos manter viva nossa identidade. O movimento modernista e sua apropriação do antropofagismo assinala a preocupação com a identidade da linguagem cultural brasileira, O “baile” modernista que ocupou o Teatro municipal de São Paulo no mês de fevereiro de 1922, gerando uma série de estranhamentos, sublinhou justamente que deveríamos “comer” nossa cultura e também o que vem de fora.

Inserido neste “movimento antropofágico” o carnaval não pára seus deslocamentos. Como parte da mesma família de críticas sobre a descaracterização do carnaval , há inúmeras discussões sobre o fato do desfile carioca estar contrariando o principio de participação popular, ligado excessivamente aos mecanismos da indústria cultural, fazendo então parte do

mainstream, uma vez que a festa tem se conectado à mídia60. Muitas vezes

acusado de funcionar como uma espécie de controle ideológico, algumas leituras acerca do evento ( ver Cabral 1996) sugerem subliminarmente que as lições de “O Príncipe” de Maquiavel 61 estão em curso: umas das formas de se manipular as

coletividades é prover-lhe festas que inibam reações contrárias ao poder. Mas fica mais uma questão: o carnaval não significa a ocupação de espaços oficiais transformando-os, invertendo-os sobretudo como brinquedos?62 O carnaval esta no centro, ou foi o centro que deslocou-se para o carnaval?

60 Entendida aqui como o conjunto de meios de

comunicação que sob instâncias sociais, econômicas, políticas e culturais fazem circular as informações na sociedade.

61 Há uma discussão sobre a intenção de Maquiavel ao

escrever este livro. Discute-se a possibilidade de que “O príncipe” seja um conjunto de mensagens subliminares que“alertam” sobre as estratégias do poder.

62 O Dadaísmo deixa claro que a fase adulta não significa que a “criança” deixou de existir. Tal fator era enfatizado pelos dadaístas que brincavam com a linguagem criando obras que metaforizavam o gesto de brincar, se apropriando da idéia de construir brinquedos. Como movimento artístico surgiu na Europa no começo do século XX e foi caracterizado pela anarquia, recorte e fragmentação da linguagem como possibilidade de criação de outros significados para o pré-estabelecido. Podemos aproximar linguagem Dadaísta e linguagem carnavalesca, pois ”...Sempre que os dadaístas de Berlim construíam suas obras,

obedeciam necessariamente ao principio da montagem. Isto é uma lei Dadá. A montagem, bem como a colagem, reúne elementos por mera justaposição paratática sem a presença de signos ordenadores, de hierarquização ou de simples conexão. E pressupõe uma atividade anterior à da montagem propriamente dita: a desmontagem ou o recorte de elementos isolados, retirados de seu contexto original onde possuíam uma função dentro de uma determinada hierarquia de regras que constituem um determinado código cultural.”

Baitello ( 1997:34). O carnaval é um brinquedo que ocupa espaços oficiais e esta em um constante processo de (des)montagem.

É “estranho” ver que a participação popular esteja condicionada pelo caráter mercadológico da festa. Não há como negar que a projeção turística do evento trouxe uma perda para o povo. É neste jogo que pensamos na Liesv como uma estratégia de comunicação, pois se pensarmos sob a lógica da inversão podemos ler na invenção dos desfiles virtuais um gesto digno das inversões carnavalescas: colocar a brincadeira nos espaços oficiais, no caso o Ciberespaço, e além disto ressaltar que as pessoas tem o desejo de brincar o carnaval, mas estão, de alguma forma, excluídas do processo. Apropriar-se da Internet como espaço oficial para a realização de “brincadeiras” é algo bastante carnavalesco no sentido de participação popular.

Vendo desta forma, percebemos o carnaval como um espaço onde se coloca para fora aquilo que estava censurado: o “desejo” de brincar. Em uma metáfora psicanalítica, é como se fosse “um corpo sobre um divã alegórico” que busca o inconsciente o “obscuro”, a “loucura”. Sigmund Freud (1859-1939) criticando a racionalização excessiva da sociedade, esta mesma racionalização que é parente próxima dos fatores que acabam tornando difícil a participação popular no carnaval, fala sobre o “mal estar na civilização” (2002) assinalando justamente que se não houver espaço para estes “desvios obscuros”, gera-se um “mal estar” onde homem literalmente “enlouquece”. Como também observa Edgard Morin (1979), o “homem é um enigma”, torna-se notório que a crença de que pela razão a civilização tornaria o homem mais educado é inverossímil. 63

63 Sebe (1997) conta sobre uma passagem da peça ‘As Bacantes” de Eurípedes nos mostra algo sobre este “mal estar”. A peça conta a história do deus Dionisio que foi proibido de entrar com seus ritos na cidade de Tebas pelo governante da cidade Penteu. No “sparagmos “ Dioniso seduz as mulheres da cidade levando-as às montanhas onde as mesmas , sob estado catártico, são conduzidas à exteriorizar seus desejos mais profundos. A cena descreve que as mulheres haviam perdido as noções das regras sociais vigentes da cidade conduzindo seu comportamento a um estado de completa não censura: mulheres se comportando como ‘animais’. No decorrer da narrativa, Dioniso convence Penteu a observar as bacantes e ver o comportamento fora do comum

Mas, paradoxalmente o carnaval não é somente uma “vazão” do que estava reprimido, pois como vimos anteriormente também abre as portas para o devir. É um espaço que organiza não apenas conteúdos que estavam “censurados”. O próprio corpo vive pela alteração também oriunda do reconhecimento de novos conteúdos, informações “estranhas”, e não somente por informações que estavam “alijadas”. É fato que esta nova informação possa se transformar em outra forma de censura, futuras repressões.

Mas agora é fundamental perceber que o “carnaval aprende” outros lugares, espaços estranhos. Coletivamente, os corpos devoram singularidades indeterminadas. O corpo aprende o virtual.