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MAPA III CORPO COMO CARNAVAL: A BUSCA DO NOVO E A CONSTRUÇÃO DE UM DESFILE

4. OS CARNAVAIS DO CORPO: A OPERAÇÃO DAS IMAGENS

4.1. OPERANDO “MIXAGENS” ENTRE IMAGENS E SONS

Em diversas situações, podemos operar o olhar criando fusões “multímidia”, “mixagens” sensoriais106. Arlindo Machado (2003:158-159) relaciona música e

imagem contextualizando o espaço. “A principal razão por que uma peça musical

pode não funcionar em qualquer ambiente está no fato do compositor muitas vezes tirar proveito da arquitetura onde deve ocorrer a perfomance, fazendo a música dialogar com seu entorno”.Esta relação entre música e ambiente pode ser

encontrada na obra de Bach: a polifonia de vozes que corresponde à polifonia das profundidades dos volumes arquitetônicos. Para Arlindo Machado, há também relação audiovisual no corpo, “... o discurso musical pressupõe, ao lado dos seus

atributos mais propriamente acústicos, todo um sistema kinésico, entendendo-se como tal o conjunto dos elementos motores invocados pelo intérprete durante a performance”.(2003:160)

Um cego “visualiza” o espaço através da reverberação do som no ambiente, assim como pode avaliar a quantidade de luz que banha uma cena pela temperatura sentida na pele, ou seja, sinestesicamente um cego pode fotografar, como é o caso de Evgen Bavcar107.

Ao lado desta questão das fusões sensoriais, podemos pensar no aspecto das possibilidades de construção da imagem no cotidiano: a variada utilização do computador em diversas áreas. Desde as recentes, porém restritas, tecnologias de simulação de realidade, sensores automáticos de movimentos do corpo como

106 Sérgio Basbaum (2002) traça uma história da sinestesia,

apontando algumas questões neurológicas e também culturais sobre os processos de arte, tecnologia e sinestesia.

107 Na aula “Os olhos e o corpo” ministrada pela professora

Cleide Campelo, no curso “Comunicação das artes do corpo” na Puc-sp, há uma interessante pesquisa neste sentido. Em uma atividade, a professora convida os alunos a tirar fotos de olhos fechados, e também que andem de olhos fechados percebendo a fusão sensorial que pode decorrer daí.

datagloves (luvas eletrônicas) óculos de imersão em realidade virtual, e

hologramas são diversas possibilidades complexas da tecnologia contemporânea criar imagens e sensações hápticas. Sobre o acesso à criação de imagens computadorizadas, também Arlindo Machado (2000) descreve a história destes recursos e aponta que trata-se de um vasto campo para a investigação estética.108

A riqueza destas possibilidades só faz buscar incessantemente outros meios de utilizá-las. Na arte contemporânea há diversos exemplos, não apenas da utilização de computação gráfica e realidade virtual, mas também dos próprios recursos de interatividade. Eduardo Kac (2002) cita, entre diversas outras obras, um trabalho que simula uma estrutura corporativa. Esta obra da artista californiana Victoria Vesna intitulada Bodies©INCorporated foi desenvolvida com a colaboração de artistas, músicos, empresas e programadores. A artista vê sua obra como uma investigação na área da psicologia social e dinâmica de grupo num contexto corporativo. Para tanto, de suas casas, as pessoas escolhem corpos digitais (avatares) e vivem socialmente estes indivíduos nesta realidade simulada.

A própria criação de “corpos digitais” é algo incorporado também por outros territórios. A idéia de Realidade virtual já é bastante comum na “sétima arte”, uma vez que ferramentas digitais são freqüentes nas atuais produções cinematográficas atuais criando a performance de atores “virtuais”109.

A dança também já experimenta o espaço do computador. Como argumenta a pesquisadora Helena Katz, a dança é pensamento do corpo, e sobretudo, significa um corpo experimentando o espaço, e outras formas de sobrevivência. O coreógrafo norte americano Merce Cunnigham é famoso por utilizar o software Life

Forms© para a criação de suas coreografias. Criadoras como Andrea Levinson

108 Arlindo Machado publicou um importante livro intitulado

“Máquina e imaginário” onde em um dos capítulos discorre sobre os primórdios da utilização da computação gráfica.

109 O filme Homem Aranha 2 apresenta a performance de

atores totalmente criados por computação gráfica. Caderno MAIS! De 14 de novembro de 2004

trabalham com a Internet, também trazendo outras possibilidades de ambiente para a dança. A poesia multimídia de Arnaldo Antunes é outro exemplo que assinala a presença do computador e a criação de novas imagens. Traduzindo visualmente suas obras o computador desdobra, para além do papel, os significados de obras como “Fênix”, por exemplo.

Mas não só no campo da arte, estas diversas possibilidades da imagem estão disseminadas. Arlindo Machado (2003: 197) ainda metaforiza que a televisão é uma espécie de mostra cotidiana e permanente de design gráfico, “Você não precisa ir

ao MoMA de Nova York, ou à Documenta de Kassel, ou ainda à Bienal de Veneza para conhecer algumas das últimas tendências das artes visuais. Uma das mais avançadas galerias de arte fica bem aí na sua sala de estar”. Estas “exposições” a

cada dia se tornam mais complexas do ponto de vista estético, e pensamos que a riqueza dos significados dos graphics de televisão seja um exemplo de como a imagem, no cotidiano, pode significar um processo de descobertas. Como já analisamos, a combinação de computação gráfica na transmissão televisiva do desfile confere complexidade estética à narrativa do carnaval. Fora do contexto carnavalesco, há outros exemplos que dizem respeito aos grafismos visuais como uma rica possibilidade do uso da imagem. Arlindo Machado também cita a MTV como um canal identificado à riqueza da utilização da imagem por suas propostas gráficas, com vinhetas elaboradas que identificam sua logomarca em constante mutação visual, e também aponta a simulação de um mundo sem gravidade presente em muitos dos trabalhos criados pelo designer Hans Donner ( um dos responsáveis pelo grafismo das transmissões televisivas do desfile) para a rede globo, aberturas de telenovelas, telejornais e outros programas, como um exemplo criativo da imagem eletrônica. Machado conclui, observando exemplos como estes, que “... nos termos da extensão e alcance da cultura de massa, nada tem

contribuído melhor para a renovação da sensibilidade e do gosto coletivos, no campo da visibilidade, do que o graphics de televisão” (2003:203). Estes

apontamentos sobre a grande disseminação do uso do computador e sua capacidade imagética, além de sugerir criatividade multimidiática, são fontes de

provável convívio para o corpo folião. Pois, os próprios desfiles virtuais entram neste contexto das novas possibilidades de uso da imagem que emergem na sociedade atual, demostrando que a operação, e não somente a apreciação da imagem, é um dos percursos da cultura contemporânea.

No entanto, a mesma imagem que sugere uma rica percepção e fusões sensoriais pode embotar a imaginação. Diversas vezes a televisão utiliza-se da imagem dificultando a construção individual de conhecimento, a busca do self e seus processos de representação da identidade, a busca que pode apontar outros caminhos para a construção de uma história diversificada e singular para o corpo.110

Tal questão está entrelaçada ao carnaval. Pelos “padrões da moda”, algo presente em boa parte do discurso televisivo, podemos discutir o que é expressar e ocultar um corpo. A padronização das imagens cotidianas exige e impõe como única possibilidade de identidade a existência de “corpos perfeitos”. Esta realidade tem contaminado o desfile das escolas de samba negando as outras diversas identidades que o corpo é neste evento. É preciso refletir sobre a excessiva padronização do corpo no desfile carioca que tem tornado a festa uma “ópera” que pode “esconder” as singularidades corporais.

O samba enredo do Império Serrano de 1982 já refletia sobre a transformação estética do carnaval, o crescimento da festa, afirmando que o carnaval estava “escondendo” o corpo, relegando a participação popular: “... Super escolas de

samba S.A., super alegorias/ escondendo gente bamba/que covardia...”. Como

temos discutido, o desfile e seu real glamour é motivo de inúmeras discussões, e pode também ser lido sobre as opiniões de que a representação pela imagem pode “disciplinar” o corpo.

110 É interessante notar que o próprio António

Damásio(1999) ao pesquisar a consciência também aponta que as operações corporais realizadas resultam na

construção de imagens mentais que podem representar o corpo na consciência de um indivíduo. Ao mesmo tempo, estas imagens também escondem outros padrões neurais, “tampam” outras imagens corporais internas que ainda não emergiram.

Para entender isto, podemos utilizar aqui a “velha conhecida” lógica da inversão. O cotidiano mostra, principalmente pela publicidade uma miríade de corpos “nus” que não querem se mostrar, e sim “esconder-se” pela imposição de um ideal: corpos esteticamente perfeitos. O sociólogo e filósofo Dietmar Kamper (1925-2001) conceitua que “...O poder do olhar manifesta-se naquilo que não é visto, que é deixado à margem como vítima da primeira distinção de uma visão focalizadora. Os corpos que nos circundam foram inicialmente distanciados e estilizados em retratos,

estátuas e corpos ideais (Bildkörpern)...” (1995). Entendemos que este ideal

estético seja a imposição de uma única possibilidade de identidade corporal. Mas o corpo pode construir e representar outras além desta, pelo sonho, uma das fontes de imagem que significam a constante (re0construção do corpo.

Os sonhos são ações que acontecem também em outros animais111. São representações imagéticas de nossa vida que acontecem durante o sono, “uma brincadeira que ensaia a morte”112. Como somos a “espécie simbólica”, seu significado para a existência do homem é incalculável, para a semiótica da cultura, o sonho, assim como o jogo, é um dos universais da cultura113, mantendo viva as memórias e enfatizando o constante trânsito entre dentro e fora. No sonho parecem se realizar muitos dos desejos que não podem se efetivar enquanto estamos

111 Aves e cães são classificados como animais superiores

que também sonham

112

O sonho acontece fora do estado de vigília, dentro de algum abrigo. Em tempos remotos nossos ancestrais buscavam um lugar seguro para se recuperar das tensões geradas pelos comportamentos ofensivo/defensivo do paradigma presa/predador. Hoje, continuamos a nos abrigar para poder dormir, e enquanto isto acontece nos recuperamos dos déficits causados pelo estado de alerta. Sem este desligamento o cérebro não sobrevive. Dormir seria necessário para descansar certos sensores sinápticos mais ligados à realidade externa, deixando livres outros mais conectados à realidade interna, originando o sonhar. Ver Baitello(1997)

113

Para Ivan Bystrina(1995), o sonho, os estados de extase, os jogos e o desejo de superar a morte criam a cultura.

acordados. Vencer um predador “invencível”, por exemplo. O carnaval é também um “sonho”. Sua estrutura narrativa enfatiza seu caráter non sense tornando-o bastante próximo da estrutura narrativa “absurda” do sonho: tanto em, um quanto em outro, “mortos ganham vida, vivos morrem”. Baitello (1997:27-28)

Em contraste com a criação de outras realidades e a riqueza das representações imagéticas como estas do universo onírico, o desfile de rua tem criado soluções visuais para alegorias e fantasias, mas ao mesmo tempo, tem deixado de mostrar a diversidade de identidades corporais que fazem parte de sua realidade. O que contaria até mesmo sua própria vocação histórica para a pesquisa visual. A nudez de corpos esteticamente perfeitos promovida pelo cotidiano desdobra-se na busca de corpos esteticamente perfeitos no desfile das escolas de samba. No carnaval esta institucionalização da nudez foi sugerida pela televisão. “...A partir da década

de 60, passou-se a ver, cada vez mais, nos desfiles das escolas de samba e nos bailes de carnaval nos clubes das grandes cidades, a nudez como marca registrada dos dias de carnaval. Na última década a televisão passou a transmitir esta nudez carnavalesca.” Campelo (1995). O que este comportamento designa é que este

corpo nu das escolas de samba , contaminado pelo padrão estético do cotidiano, é um corpo que ao invés de representar a “tridimensionalidade” de suas inúmeras possibilidades e singularidades, passa a se resumir nesta única possibilidade: os padrões da moda. A inversão no carnaval é justamente o contrário, a tridimensionalidade de seu corpo, seus sonhos. Saber suas sombras, mortalidades, suas diferenças, “imperfeições”, trazer sua realidade non sense para assim poder dar vida a estas singularidades: identidades e fantasias em processo de metamorfose. Este é o sentido de inversão de que fala Mikhail Bakthin, autor citado na introdução deste trabalho. Sem dar atenção a isto o carnaval deixa de ser uma diferença para ser apenas o cotidiano. A visibilidade exacerbada dos padrões estéticos fica evidente pelo “olhar vigilante”114 da mídia: na maioria das vezes são

114 O Filósofo Michel Foucalt (1926-1984) produziu análises

sobre a questão do olhar vigilante(1975) estudando que instituições como os hospitais, o exército e as prisões são locais de adestramento do corpo. Estamos lendo que o

valorizados os modelos, atores e atrizes e seus “corpos perfeitos”. Muitos dos atores da “ópera de rua” deixam de ser mostrados como parte desta complexa rede. Muita visibilidade ofusca e torna-se invisível. Os “principais atores”, o carnaval é o palco deles, estão invisíveis.

Contudo, o desfile não depende exclusivamente deste tipo de visibilidade que valoriza o espetáculo como obra a ser contemplada. É apenas um momento do processo carnavalesco, dos diálogos que o carnaval como texto da cultura realiza com outros textos da cultura: um ponto da rede carnavalesca. O espaço/tempo carnavalesco é maior do que apenas o dia do desfile e a avenida.

Como processo, já se sabe que o carnaval é construído em sua véspera. A quadra e o barracão são pontos desta rede e permitem assinalar possibilidades de construção de outras respostas, sublinham a operação da linguagem, e não a sua fruição, como sugere este olhar dos padrões da moda. Toda a criação da festa é um espaço de construção, que permite ao corpo (re)descobrir suas singularidades e encontrar outras identidades. A quadra é um exemplo típico: nos dias de ensaio, onde não há a imposição excessiva do olhar da avenida, há um espaço onde as singularidades do corpo podem ser exploradas, o corpo está mais “solto”. Podem-se explorar as possibilidades da dança sem que o “olhar vigilante” e excessivo do espetáculo condicione papéis.

É comum achar que o corpo que trabalha no barracão não faça parte do carnaval, mas este é também um corpo folião. No barracão, as performances de um corpo trabalhando significam que um corpo pode (re)inventar-se ao encontrar meios de utilizar algum material alternativo para a concepção de uma alegoria. Paradoxalmente, no ensaio e no barracão os corpos estão “vestidos”, mas há uma “nudez” que pode apontar as singularidades do corpo, revelando sua tridimensionalidade.

desfile na avenida esteja, de certa forma, “adestrando” o corpo e que isto se torna uma contradição para o carnaval.

Longe da efemeridade e rigidez dos excessos do espetáculo, há mais possibilidades de mixar as singularidades do corpo, perceber suas fusões sensoriais, pois o espetáculo, onde são valorizados “os corpos perfeitos”, é apenas uma parte (in)visível da realidade do carnaval, e por isto mesmo não é a única realidade a ser vista.

Se estamos argumentando que a imagem pode representar possibilidades criativas do corpo, mas que também, através da padronização estética é capaz de “esconder” o corpo e negar suas possibilidades de encontrar outras singularidades, fica a questão: O carnaval virtual esconde ou revela o corpo? Pelo senso comum, a Internet tem vocação para “esconder, apesar de que em Chats podemos omitir a tridimensionalidade do corpo ocultando informações que pareçam “estranhas”. Isto é um fato.

Ao utilizar a imagem como representação, estaria o carnaval virtual escondendo o corpo, assim como parece acontecer no espetáculo do desfile? Argumentamos que não. A idéia destes desfiles virtuais marca um encontro, literal, entre a imaginação e as singularidades do corpo, sublinhando as soluções deste corpo ao imaginar outros caminhos para revelar-se.

Esta imaginação tem um papel decisivo em relação ao corpo na Internet. Imaginar seu corpo ou o corpo de quem esteja “do outro lado” talvez não seja negar a realidade. Quem atesta que a imaginação esteja radicalmente isolada da “realidade”? Imaginação e “realidade” também são instâncias enredadas. É fato que a excessiva padronização estética é uma realidade que pode condicionar a liberdade de nossa imaginação. No entanto, não caberia a cada corpo, cada indivíduo confrontar-se com o “real” em acordo com seu tempo e suas singularidades como possibilidade de seus processos de transformação e de amadurecimento?

A idéia de um carnaval virtual assim como mostra a própria natureza do corpo busca revelar-se pela imagem. Comunidades virtuais não excluem o corpo, mas apontam novas possibilidades de encontros, uma aproximação entre indivíduos diferentes. Ao invés de pensarmos na imagem exclusivamente como uma interface que esconde o corpo, podemos inverter a questão e analisarmos a imagem como um corpo que se apresenta a partir de diferentes possibilidades de representação. É preciso relembrar que a diversidade de traços que compõe os desenhos do desfile virtual assinala a riqueza das diferenças.

Trata-se de diversos sentidos de self buscando outras singularidades, diferentes daquelas referentes à rigidez do espetáculo de rua. Daquilo que é aceitável como norma(l). Um mergulho na imaginação do corpo e toda singularidade que isto pode permitir. Imaginar um carnaval na Internet é fundamentalmente criar algo fora de qualquer padrão já instituído. Deslocar a imaginação da rota dos

clichês e padronagens excessivos é deslocar o corpo para outros ambientes, é

realizar descobertas. “Na maioria das vezes é a imaginação, é a intuição que

prenuncia uma descoberta, quer se trate de geografia (v. Colombo), quer se trate de física, anatomia, medicina ou astronomia...” Prade (2004:28). O jogo do universo

das representações imagéticas é fundamental neste processo