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3. EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE

3.2 Matemática e Sociedade

Um tema central na sociedade atual refere-se ao conceito de democracia. Pode-se perguntar qual a relação entre Matemática e democracia, e qual a relevância desse assunto para o presente trabalho. Falar em democracia requer definições especificas, e vincular a democracia à Educação Matemática não é uma tarefa fácil. Com isso em mente, pretende-se neste texto sintetizar (sem encerrar) o assunto, destarte, será abordado apenas os conceitos fundamentais para o desenrolar deste trabalho.

O dicionário Aurélio Ferreira (2000) define democracia da seguinte forma: “Governo do povo; soberania popular. Doutrina ou regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição equitativa de poder.”

Abbagnano (2003, p.487) apresenta um entendimento a respeito do conceito de democracia, estabelecido por Aristóteles que declara que a democracia existe quando os livres governam.

Notoriamente democracia tem a ver com governar e o ato de governar requer competências específicas. Não é possível falar em governo sem falar de Estado. O Estado consiste na posse da soberania (ABBAGNANO, 2003 p. 487). A soberania, que é o caráter fundamental do Estado, é una e indivisível. O governo consiste no aparato, por meio do qual esse poder é exercido. O governo pode ser democrático ou despótico, tirânico. A diferença das formas de governo depende da diversidade das pessoas às quais é confiado o poder soberano (ABBAGNANO, 2003, p.487).

A experiência histórica do mundo moderno e contemporâneo mostrou que a liberdade e o bem-estar dos cidadãos não depende da forma de governo; mas da participação que os governos oferecem aos cidadãos na formação da vontade estatal e da presteza com que eles são capazes de modificar e de retificar suas diretrizes políticas e suas técnicas administrativas (ABBAGNANO, 2003, p. 487) A liberdade e o bem estar dos cidadãos dependem da presteza com que eles são capazes de modificar e de retificar suas diretrizes políticas e técnicas administrativas. Em outras palavras, o bem governar, depende de qualificações especificas dos cidadãos envolvidos de forma direta ou indireta no governo. E como estabeleceu Skovsmose (2008), existem competências distintas em um governo, a saber, as competências de quem é escolhido para governar - no caso da democracia indireta – são as competências que tornam os governantes capazes de tomar decisões bem fundamentadas e atuar de maneira apropriada. E

a competência necessária para julgar se os resultados e as conseqüências de quem governa são aceitáveis, esta última competência é atribuída ao cidadão comum.

Isso torna óbvio o que é a hipótese básica na interpretação clássica de democracia: a competência para governar das pessoas encarregadas é de natureza especial, ao passo que a competência para julgar é de natureza comum. À última também chamamos de competência democrática. Em outras palavras, competência democrática é uma capacidade comum a seres humanos – mas talvez apenas uma capacidade potencial, porque apenas uma postura enfatiza a importância de um modo democrático de controle social. (SKOVSMOSE, 2008, p. 55)

A competência democrática deve ser cultivada na escola e parte significativa dessa competência é uma conseqüência do aprendizado matemático. Via de regra, as implicações dos atos de quem governa são analisadas estatisticamente, é na estatística que encontramos ferramentas para representação dos dados e tratamento das informações. As decisões econômicas são tomadas com base em modelos matemáticos, o entendimento de como ocorrem os ajustes nas taxas de juros, taxas de câmbio, os modelos utilizados para medir o PIB (produto interno bruto), PNB (produto nacional bruto) entre outros, são todos desenvolvidos com base em conhecimentos matemáticos. É importante destacar que não só na elaboração de tais modelos, mas também na interpretação dos dados colhidos, na transformação de informações em conhecimentos, em todas essas etapas o conhecimento matemático é essencial.

Como determinar se o país está realmente crescendo? Como entender o sistema monetário? Como determinar se os custos com uma obra foram realmente compatíveis com o que foi construído? Como determinar se o salário mínimo é justo ou não? Como julgar criticamente o aumento ou redução de preços? Como entender as conseqüências das taxas de inflação? Como entender o funcionamento de mercado – os deslocamentos das curvas de oferta e demanda de determinados produtos em função de medidas protecionistas ou não por parte do governo, ou em função de outras variáveis? Como entender?

As respostas a todas estas perguntas serão incompletas se não incorporarem a Matemática como parte de suas explicações. Nessa ótica, a Matemática é parte fundamental da competência democrática. Este é também o entendimento do Ministério da educação, no que diz respeito ao ensino fundamental:

A compreensão e tomada de decisões diante de questões políticas e sociais também dependem da leitura e interpretação de informações complexas, muitas vezes contraditórias, que incluem dados estatísticos e índices divulgados pelos meios de comunicação. Ou seja, para exercer a cidadania, é necessário saber calcular, medir, raciocinar, argumentar, tratar informações estatisticamente, etc. (BRASIL, 1997, p.25)

O Estado de São Paulo, com sua proposta curricular para o ensino de Matemática, também destaca a importância desta disciplina para o desenvolvimento da competência democrática, não de forma explícita, mas com idéias que corroboram com as deste texto. Vislumbrando, por exemplo, como competências necessárias a serem desenvolvidas pelos alunos ao longo da escola básica, três pares complementares, que constituem três eixos norteadores da ação educacional, os quais estão diretamente relacionados à Matemática:

1. O eixo expressão/compreensão: a capacidade de expressão do eu, por meio das diversas linguagens, e a capacidade de compreensão do outro, do não-eu, do que me completa, o que inclui desde a leitura de um texto até a compreensão de fenômenos históricos, sociais, econômicos, naturais etc;

2. O eixo argumentação/decisão: A capacidade de argumentação, de análise e de articulação das informações e relações disponíveis, tendo em vista a construção de consensos e a viabilização da comunicação, da ação comum, além da capacidade de decisão, de elaboração de sínteses dos resultados, tendo em vista a proposição e a realização da ação efetiva;

3. O eixo contextualização/abstração: a capacidade de contextualização, de enraizamento dos conteúdos estudados na realidade imediata, nos universos de significações – sobretudo no mundo do trabalho – e a capacidade de abstração, de imaginação, de consideração de novas perspectivas, de potencialidades no que ainda não existe. (SÃO PAULO, 2008, p.42)

Em cada um dos eixos citados, pode-se compreender o papel da Matemática. No primeiro eixo, ao lado da língua materna, a Matemática compõe um par complementar como meio de expressão e de compreensão da realidade. O texto declara ainda que os objetos matemáticos – números, formas, relações – constituem instrumentos básicos para a compreensão da realidade, desde a leitura de um texto ou a interpretação de um gráfico até a apreensão qualitativa das grandezas e relações presentes em fenômenos naturais ou econômicos, entre outros. (SÃO PAULO, 2008, p. 42).

No eixo argumentação/decisão, destaca-se o raciocínio lógico – tendo em vista a obtenção de conclusões necessárias para a tomada de decisões. Enfatiza-se que a Matemática, com situações problemas, favorece o exercício do movimento argumentar/decidir ou diagnosticar/propor.

No que se refere ao terceiro eixo de competências, a “Matemática é um lugar (ou instância) bastante adequado ou mesmo privilegiado para se aprender a lidar com os elementos do par concreto/abstrato” (SÃO PAULO, 2008, p. 43). De acordo com esse ponto

de vista, os objetos matemáticos, mesmo sendo considerados essencialmente abstratos, são os exemplos mais facilmente imagináveis para se compreender a permanente articulação entre as abstrações e a realidade concreta. A essência da Matemática nesse sentido, não está conectada a conceitos particulares e nem à aplicabilidade (utilitarismo puro), mas aos processos de pensamento que levam ao insight matemático (SKOVSMOSE, 2008, p. 24).

Nos três eixos citados, encontramos ingredientes que relacionam a Matemática com a competência democrática, Matemática como meio de expressão e compreensão da realidade, Matemática como meio de obter conclusões necessárias para a tomada de decisões e Matemática para entender as articulações entre as abstrações e a realidade concreta. Todos esses aspectos são competências necessárias para avaliar atos e decisões das pessoas encarregadas de governar.

Em formulação convergente a respeito do amálgama composto pela Matemática e democracia, Skovsmose (2008) descreve dois argumentos a favor da conjunção destes componentes. O primeiro deles, chamado de argumento social da democratização, estabelece a importância da identificação de um assunto relevante da Educação Matemática por meio de reflexões acerca das possíveis implicações deste assunto na construção e aperfeiçoamento de instituições democráticas e capacidades democráticas na sociedade. Este argumento declara que:

• Por causa de suas aplicações, a Matemática tem a função de “formatar a sociedade”. A Matemática constitui uma parte integrada e única da sociedade. Ela não pode ser substituída por nenhuma outra ferramenta que sirva a funções similares. É impossível imaginar o desenvolvimento de uma sociedade do tipo que conhecemos sem que a tecnologia tenha um papel destacado, e com a Matemática tendo um papel dominante na formação da tecnologia. Dessa forma, a Matemática tem implicações importantes para o desenvolvimento e a organização da sociedade – embora essas implicações sejam difíceis de identificar;

• Para tornar possível o exercício dos direitos e deveres democráticos, é necessário estarmos aptos a entender os princípios chave nos “mecanismos” do desenvolvimento da sociedade, embora eles possam estar “escondidos” e serem difíceis de identificar. Em particular, devemos ser capazes de entender as funções de aplicações da Matemática. Por exemplo, devemos entender como decisões (econômicas, política etc.) são influenciadas pelos processos de construção de modelos matemáticos. (SKOVSMOSE, 2008, p. 39)

O segundo argumento, denominado de argumento pedagógico difere do argumento social. Enquanto o argumento social se preocupa com questões externas ao processo educacional, ou seja, questões que não estão diretamente ligadas à sala de aula, o argumento pedagógico trabalha em uma perspectiva voltada para “dentro” do processo educacional. Uma declaração importante deste argumento postula que:

As possibilidades de exercício dos deveres e direitos democráticos não estão apenas relacionadas às estruturas democráticas formais institucionalizadas, mas também a uma atitude democrática individualmente consolidada. Ações democráticas de nível macro devem ser antecipadas no nível micro. Isso quer dizer que não podemos esperar o desenvolvimento de uma atitude democrática se o sistema escolar não contiver atividades democráticas como principal elemento. Se queremos desenvolver uma atitude democrática pela Educação Matemática, os rituais dessa educação não podem conter aspectos fundamentalmente não-democráticos. O diálogo entre professor e estudantes tem um papel importante. (SKOVSMOSE, 2008, p. 46)

Ambos os argumentos – social e pedagógico – estão relacionados a atitudes e competências democráticas. O argumento social da democratização enfatiza que a competência democrática não pode ser constituída apenas por certas atitudes democráticas, para ser consistente, deve buscar entender os mecanismos que regem um determinado sistema social e as implicações da Matemática neste sistema. Já o argumento pedagógico destaca a atitude democrática no ambiente educacional e estabelece como ponto chave desta atitude o diálogo entre professor e alunos, no sentido de analisar criticamente o conteúdo a ser estudado, estimulando assim a abertura do processo ensino-aprendizagem de modo a integrar o aprendiz na construção deste processo. Neste sentido é que afirma Skovsmose:

A competência democrática tem de ser desenvolvida; a competência está fielmente relacionada à atitude democrática, mas elas não são idênticas, o desenvolvimento de uma competência democrática pressupõe uma atitude, mas, ao lado disso, muito conhecimento e muita informação sobre o domínio dos processos democráticos têm de ser desenvolvidos. (SKOVSMOSE, 2008, 9.55)

Em complemento ao argumento social e pedagógico, o autor dinamarquês enfatiza a necessidade de desenvolver no aprendiz uma atitude crítica em relação à aplicação da Matemática, essa atitude diz respeito não somente ao aprimoramento da capacidade dos estudantes, de modelarem matematicamente os diversos problemas que compõem o sistema social em que estão inseridos, mas também associa essa atitude ao desenvolvimento do que chamou de conhecimento reflexivo. O conhecimento reflexivo permite analisar e avaliar as construções tecnológicas e suas implicações. Permite distinguir quais são os interesses que

fomentaram o desenvolvimento de determinado modelo. Pode-se exemplificar este tipo de conhecimento por meio de um tema que entraram recentemente em pauta: as eleições. Atualmente o modelo eleitoral estabelece que o voto de cada cidadão tem peso igual, independente da localização de sua residência. Seria viável, ou melhor, um modelo que atribuísse pesos de acordo com o estado em que o eleitor reside? A um estado com maior expressão econômica e com maior contribuição para o desenvolvimento do país poderia ser dado o direito de um peso maior no voto de seus habitantes?

A competência necessária para argumentar a respeito dessas questões é de natureza distinta da competência necessária para o desenvolvimento de um modelo/algoritmo para a computação de votos. Pode-se dizer que essa última competência é uma competência técnica enquanto a primeira faz parte do conhecimento reflexivo. Skovsmose assevera ainda que:

A capacidade para distinguir entre inferências Matemáticas necessárias e conseqüências de um modelo, que expresse o interesse o interesse que tenha sido incluído na modelagem, é essencial em uma sociedade onde os modelos matemáticos estão em operação. (SKOVSMOSE, 2007, p. 242)

De posse destes argumentos, pode-se afirmar que a Matemática desempenha um papel fundamental na sociedade. A Matemática é um componente para a consolidação da democracia, a Matemática tem o poder de formatar a sociedade Skovsmose (2008). Nesta ótica, torna-se fundamental que a Educação Matemática se ocupe de questões ligadas não apenas ao conhecimento matemático em si, ou a questões epistemológicas relativas ao conhecimento matemático, mas deve incorporar à sua pauta questões relativas à sociedade e as implicações da Matemática em um sistema social.

É nesse mesmo sentido que segundo Skovsmose (2007) a Matemática vem representar a primazia da racionalidade que está intrinsecamente conectada à maneira democrática de ser, afirma ainda que essa idéia tem implicações sobre o modo de ver a Educação Matemática e conclui, citando Hannaford, que “se às crianças for ensinada bem Matemática, esta lhes ensinará muito de liberdade, habilidade e, sem duvida nenhuma, muito das disciplinas de expressão, sentimento e tolerância de que a democracia necessita para ser bem- sucedida”(HANNAFORD, 1998, p. 186, apud SKOVSMOSE, 2007, p. 69).

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No início deste tópico, citamos Aristóteles ao dizer que a democracia existe quando os livres governam. Também foi visto que para governar e julgar as conseqüências das atitudes de quem governa é necessário o desenvolvimento de competências especificas e para o

desenvolvimento de tais competências o conhecimento matemático é indispensável. Partindo dessas premissas, podemos concluir que a Educação Matemática pode vir a ser libertadora - se incluir questões com este propósito - capacitando os cidadãos para pensar e agir, ou seja, tornando-os livres, e tendo como conseqüência, a consolidação da democracia.