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Cf. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore? São Paulo: Brasiliense, 1984. Figura 9

manifestações da cultura popular, Sílvio Romero e Melo Moraes Filho experimentaram as práticas acontecendo in loco, capazes de comunicarem o que seria um jeito de crer do lugar e manifestar a sua crença. Nesse sentido, até para pensar esse jeito sergipano popular e católico de viver a sua religiosidade naquele tempo determinado, e na perspectiva dos dois intelectuais como cientistas que buscaram captar aquela atmosfera, vale ressaltar o que afirma Luiz Beltrão:

Não há melhor laboratório para a observação do fenômeno comunicacional do que a região. Uma região é palco em que, por excelência, se definem os diferentes sistemas de comunicação cultural, isto é, do processo humano de intercâmbio de idéias, informações e sentimento, mediante a utilização de linguagens verbais e não-verbais e de canais naturais e artificiais empregados para a obtenção daquela soma de conhecimentos e experiências necessárias à promoção da convivência ordenada e do bem-estar coletivo303.

O século XIX foi para Sergipe um momento de afirmação. Dependente política e economicamente da Bahia desde 1590, alcança sua maioridade em 08 de julho de 1820. Mas só a partir de 1823 que começa em definitivo a galgar espaços no cenário nacional. A partir da segunda metade, repensam duas estratégias e começa por redefinir sua capital, deixando de ser São Cristóvão para Aracaju em 1850. Na esfera econômica, além da até então predominante cana-de-açúcar, outros produtos e atividades se notabilizavam304, a exemplo da mandioca e da criação de gado, presentes em Vilas como a de Nossa Senhora da Piedade do Lagarto, alvo das análises de Melo Moraes Filho e de Sílvio Romero, este último natural de lá.

Uma análise de sua população nesse período305 aponta para uma série de questões verificadas em outros escritos de Sílvio Romero, sobretudo no que diz respeito

303

BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do Campo: Editora UMESP, 2004. p. 57.

304

SOUZA, Marcos Antônio de. Memória sobre a capitania de Sergipe: sua formação, população, produtos e melhoramentos de que é capaz. Aracaju: Typ. do Jornal do Comércio, 1878.

305

à mestiçagem do povo brasileiro. Sergipe, de um contingente populacional de 115.418 habitantes, 44,27% foi registrado como sendo pardos.

Para Vanessa Oliveira e Verônica Nunes, do panorama acima exposto, Sergipe vivia uma experiência religiosa de tipo catolicismo tradicional e popular, marcadamente devocional e de cunho familiar306. Porém, a análise dos registros e estudos de Sílvio Romero e Melo Moraes Filho apontam para outros elementos que tornam essa época ainda mais interessante e particular num contexto de vivência religiosa do catolicismo popular em Sergipe no século XIX. Além disso, ao contrário do que afirma Thétis Nunes307, está longe de se restringir ao ambiente urbano, sobretudo a São Cristóvão, com seu conjunto de irmandades religiosas.

Afora todas as questões aqui ressaltadas, devem-se acrescentar alguns aspectos bastante pertinentes quando o assunto é catolicismo popular em Sergipe no século XIX. Em que pesem as afirmações dos intelectuais em questão, vale registrar que aquele catolicismo foi eminentemente lúdico, também rural, multifacetado e não necessariamente assentado sob-hostes clericais. Ele se manifestou nas mais variadas situações e esteve presente nos mais tênues fios do tecido social sergipano, não só às voltas de espaços sagrados, mas também e muito destacadamente numa faceta configurada como profana.

A necessidade de se discutir um catolicismo popular308 praticado em Sergipe por meio de registros folclóricos pode levantar alguns problemas e discussões preliminares, mas não elimina a sua possibilidade historiográfica. Para tanto, antes de qualquer coisa, é preciso também pensar sobre o que era encarado como cultura popular no momento em que as obras foram a público.

306 OLIVEIRA, Vanessa dos Santos, NUNES, Verônica Maria Meneses. A festa do Rosário dos homens

pretos na cidade de São Cristóvão (SE). Cadernos de História. Departamento de História da Universidade de Ouro Preto-MG. Ano 2, nº 2, setembro de 2007. pp. 14-24.

307 NUNES, Maria Thétis. Sergipe colonial II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1996.

308 Em que pesem as suas várias definições, boa parte delas assentadas em autores como Riolando Azzi, e

Nesse sentido, embora existam diversas discussões já amplamente difundidas por autores consagrados, autores como Geertz, Peter Burke, Roger Chartier, Renato Ortiz, Carlo Ginzburg e Terry Eagleton podem lançar luzes sobre essa empreitada que envolve aspectos da cultura popular como sua religiosidade.

O conceito de cultura proposto por Geertz309, por exemplo, está baseado numa orientação semiótica. O autor defende a tese de que determinadas ideias se apresentam tão geniais, a priori, tão capazes de explicar tudo que por isso mesmo são encaradas como sendo únicas, desqualificando outras que as precederam. Para ele, nem mesmo a teorização de cultura fugiu disso, apresentando E. B. Taylor como a encarnação desse processo, incapaz de permitir outras conceituações de cultura às quais gerassem um ecletismo auto-frustrante, notadamente presente em Kluckhohn.

As muitas possibilidades de entender a cultura estão na raiz da proposta defendida por Geertz em sua obra. Ele propõe uma ciência interpretativa da cultura, que amplie justamente suas possibilidades significantes. Os exemplos das piscadelas de Ryle e dos berberes no Marrocos (1912) apresentados pelo autor dão uma ideia da complexidade que é praticar ciência ao tempo em que aponta um caminho que parece ser um dos mais seguros: “primeiro apreender e depois explicar310”.

Nesse sentido, nenhuma teorização da cultura, mesmo a popular, deve estar assentada numa ideia iluminista capaz de ofuscar as possibilidades significantes e explicativas de outras. Nada pode ser explicado aprioristicamente e tudo nada mais é que a soma de inumeráveis significados e explicações necessariamente situadas e transitórias. Ou seja: “(...) o que chamamos de nossos dados são realmente nossa

própria construção das construções de outras pessoas311”.

O caráter polissêmico que o termo cultura popular assume por si só talvez impeça uma análise histórica apoiada nessa ideia, sobretudo quando o objeto é um fenômeno religioso. A recorrência a expressões como folguedos ou folclore para referir

309 GEERTZ, Clifoord. A Interpretação das Culturas. Guanabara: Rio de Janeiro, 1989. 310 Idem. p. 20.

311

à uma religiosidade popular é controversa e pode esconder uma tentativa de menosprezá-la e desvalorizá-la como um objeto legítimo da história.

Geertz, de certo modo, aponta estratégias que podem ser usadas como aporte para superar as barreiras teóricas impostas, na medida em que se abre espaço nesse terreno tão movediço para diferentes possibilidades de análises interpretativas de um modo particular de apropriar-se do sagrado. Um ponto de partida conceitual para se discutir uma cultura religiosa, como aqui buscamos entende, numa análise histórica pode se apoiar na seguinte afirmação dele:

(...) o conceito de cultura a que me atenho não possui referentes múltiplos nem qualquer ambigüidade fora do comum, segundo me parece: ele denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida312.

Chartier, por exemplo, entende como problemática uma conceituação de popular como algo que seja oposto de letrada, como se cada um pudessem ter vida própria descolada de uma noção mais holística de cultura. Segundo ele:

(....) Saber se pode chamar-se popular ao que é criado pelo povo ou àquilo que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa antes de mais nada identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam e se imbricam diferentes formas culturais313.

312 Ibidem. p. 103. 313

CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre Práticas e Representações. 2 ed. Difel: Rio de Janeiro, 2002. p. 56.

Nesse sentido, para a história cultural o sentido das coisas, dos fatos/acontecimentos só se completa quando evidenciados no processo de nomeação, conceituação ou relato (na invenção da história, na fabricação de seu discurso) pelo presente A história é como areia movediça, é como massa de modelar, é como bloco de gelo em ação do sol, é como adolescente em sua puberdade, como pano/tecido e suas inumeráveis lavagens: “(...) A história não é apenas fluxo, processo, evento: é também

cristalização, estrutura, sedimentação, é acima de tudo, relação entre fluxo e cristalização, entre estrutura, processo e evento314”.

Considerando a vulnerabilidade da vida humana, de sua produção cultural, o que realmente sobra do passado é o que é determinado ou orientado por uma escolha: a do historiador. Da escolha ao produto final, transitar pelo campo cultural, nesse amálgama de religiosidade “popular”, não é tarefa fácil, mas pode se tornar efetiva quando a opção se dê por uma concepção de cultura religiosa, resguardada de uma boa dose de hermenêutica histórica.

Peter Burke315 aponta para situações bastante pertinentes que podem vislumbram caminhos preciosos para um historiador que se proponha a estudar cultura popular. Para ele, qualquer interesse sobre o tema tem que ultrapassar a ideia do exotismo. O movimento que marca os primeiros processos industriais e a afirmação de preceitos de civilização e progresso é também o da “descoberta do povo” pelos intelectuais. Em escala latino-americana, os primeiros exemplares sistemáticos foram exatamente Sílvio Romero e Melo Morais Filho. A percepção de que na poesia popular estavam depositadas as raízes da humanidade foi o insight para se valorizar os saberes e os fazeres do povo.

Assim, afirma o autor, a um momento inicial de desconfiança, seguiu-se outro em que os historiadores passaram a entender que o conceito de cultura popular era bem-

314 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a Arte de Inventar o Passado. Ensaios de

Teoria da História. Bauru, EDUSC, 2007. p. 300. 315

Cf. BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Edição de Bolso).

vindo à seara da pesquisa histórica316. Burke faz um apanhado teórico sobre as diversas tentativas de se substituir o conceito de cultura popular, dialogando com autores como Bakhtin, Ginzburg, Gramsci, Willian Christina, Chartier, Certeau e Bourdieu. Tais tentativas concentram-se na ideia de superação da dicotomia cultura de elite e cultura popular. Ele afirma que a tarefa não é fácil e que a revisão de um conceito de cultura popular deve passar necessariamente por um reexame da própria noção de cultura. Para Burke, a ampliação do conceito de cultura e a ampliação dos interesses em torno dela, tornaram seus problemas de categoria ainda maiores do que a noção de popular.

No que concerte ao catolicismo, Burke assim se pronuncia:

No caso do Catolicismo, podemos razoavelmente assumir que Roma seja o centro, mas é bastante claro que as devoções não oficiais eram tão comuns naquela cidade santa quanto em qualquer outro lugar. Ao se tentar eliminar uma dificuldade conceitual, criou-se outra317.

Renato Ortiz, ao optar por uma “arqueologia do conceito” oferece outra vertente. Para ele o que se entendia por cultura popular no século XIX (momento da invenção do conceito) foi se alterando com o passar do tempo. Porém, sua crítica em relação aos folcloristas é mordaz e pode por em xeque qualquer intenção de ver as fontes que aqui selecionamos como válidas para atingir nosso propósito, pois os folcloristas diziam mais de suas ideologias do que da realidade das classes subalternas, entenda-se povo318.

Tese que em boa medida pode ser contestada por Ginzburg, pois lidar com a cultura popular ou subalterna, como quer, na pesquisa histórica é está sempre às voltas com uma documentação indireta. Embora isso possa parecer desencorajador também

316 BURKE, Peter. Idem. p. 15. 317 Ibidem. p. 21.

318

ORTIZ, Renato. Românticos e Folcloristas: cultura popular. São Paulo: Ed. Olho D’Água, 1992. p.7.

pode se tornar num excelente exercício para o historiador, ora se distanciando, ora se aproximando de seu objeto319.

Outra discussão que merece nossa atenção emana da leitura de Terry Eagleton, para o qual a cultura se apresenta como aquela capaz de formar o cidadão apto para viver em harmonia no campo social, capaz de aplacar os interesses opostos, o estado de antagonismo crônico. A cultura seria um ente universal presente na individualidade de cada um. Nesse sentido, parece-nos muito apropriado para o que vimos discutindo, uma das três categorias propostas por ele, a partir do desenvolvimento histórico do conceito: a cultura como civilidade320. E no campo da relação entre cultura e religião, coube a ele ideia de procurar algo além do fundamentalismo ou fanatismo, mas como aporte de uma emancipação humana321, a nosso ver, presente nas religiosidades populares.

No momento em que as obras de Sílvio Romero e Melo Morais Filho foram publicadas, Sergipe, ainda que de forma tímida, vivia o clima de romanização, intensificado após a criação da Diocese de Aracaju, em 1910322. Em alguma medida, o movimento verificado entre os finais do século XVIII e inícios do século XIX de salvaguarda das coisas do povo na Europa em muito se aproxima com o movimento vivido pelos autores aqui em questão. De sorte, foi importante para registrar uma forma de catolicismo praticada pelo povo sergipano antes do mesmo ter sido quase que suplantado pela onda reformadora que tomou conta dos vários rincões do Estado de Sergipe323.

319

Cf. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. 10ª Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.