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Uma História Local, Uma História do Lugar: por uma História Cultural de Lagarto

CAPÍTULO I DA DEVOÇÃO A NOSSA SENHORA DA PIEDADE À

1.1. Uma História Local, Uma História do Lugar: por uma História Cultural de Lagarto

Em geral, quando se pensa em estudos sobre as vilas e cidades brasileiras, o que se vê são trabalhos que versam sobre questões políticas e econômicas, em nível enciclopédico, e nem sempre se levando em conta aspectos sociais e culturais. A primazia pela narrativa e a iconização de feitos e pessoas também é uma tônica, não deixando entrever elementos que podem colaborar decisivamente para uma compreensão melhor do Brasil, a partir daquilo que lhe é particular, específico e local.

A ênfase em análises históricas, em que pesem tão somente o viés político ou econômico das engenharias humanas, não permitiu, por muito tempo, observar outros elementos importantes, sobretudo na formação dos primeiros núcleos populacionais brasileiros, a exemplo do lagartense, a exemplo do campo cultural e o do campo religioso.

Este último é um conceito do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que nos parece muito pertinente para as reflexões e discussões levantadas por nossa pesquisa, seja pela possibilidade de entender a devoção de São Benedito e de ela ter se propagado em Lagarto a partir da existência de negros escravos no século XVII, que por sua vez teriam transportado elementos das religiões africanas; seja pela compreensão do campo religioso católico e as mudanças por que passou entre o final do século XIX e o início do século XX.

Nesse sentido, vale destacar que, para Bourdieu, o chamado aparato religioso, as “estruturas dos sistemas de representações e práticas religiosas”, em geral,

notadamente exercem o papel de instrumento de imposição e legitimação da dominação, contribuindo para assegurar a dominação e para a “domesticação dos dominados80

”.

Afora alguns estudos sobre a história da Igreja Católica em Sergipe, anteriormente mencionados, algumas questões ainda merecem uma maior atenção, sobretudo no que diz respeito ao universo verificado com a instalação do processo de romanização e sua relação com o chamado catolicismo popular. Pouco estudada, a vida religiosa de Lagarto necessita de investidas mais profundas e contribuições significativas. Os trabalhos que foram escritos apenas a mencionam, sem maiores aprofundamentos e explicações que deem conta de entendê-la.

Nesse sentido, vale destacar o que diz Eduardo Hoornaert sobre a formação da sociedade brasileira. Segundo ele, o Brasil é fortemente marcado pelo simbolismo católico81. Interessa-nos saber quais as marcas desse simbolismo na sociedade lagartense e em seu tecido histórico, notadamente no que diz respeito às suas tradições religiosas populares, a exemplo da festa de São Benedito.

Embora sejam dignos de nota e expressem um valioso contributo, os trabalhos que compõem a historiografia sergipana, no que diz respeito à Lagarto, não têm merecido e nem dado a atenção devida. As informações sobre sua presença no rico e diversificado cenário da história sergipana são esparsas, meramente ilustrativas e quase nulas ou até mesmo anuladas. Isso, talvez, explique a representação de uma história de Sergipe sob a ótica predominantemente cotinguibense82

.

Há alguns anos, os trabalhos de história têm dado uma maior atenção à história dos lugares. Isso se deu, em grande medida, pela contribuição das renovações verificadas no campo da história a partir da primeira metade do século XX,

80

BOURDIEU, Pierre. Gênese e Estrutura do Campo Religioso. 5 ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.

81 HOORNAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil Colonial (1550-1800). 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

p. 9

82

Refere-se ao fato de apenas ou mesmo somente entender Sergipe pelas sociedades que se constituíram no chamado Vale do Cotinguiba, uma expressão geográfica e histórica a partir do século XVI, que compreende, por exemplo, cidades e regiões no entorno de Laranjeiras, São Cristóvão, Aracaju, entre outras. Era uma região fértil de faixa litorânea que proporcionou a introdução do cultivo da cana-de- açúcar.

particularmente pela chamada historiografia francesa, sobretudo a preocupação em levar adiante o que se convencionou chamar de história local.

Nunca é demais lembrar que, anterior a esse movimento de ordem teórica, mas também metodológica, predominava as macro abordagens, as sínteses estruturais, que ofuscavam as potencialidades e diversas possibilidades das microanálises83

, dos olhares multifacetados da história dos lugares, das pessoas, de seus hábitos e crenças particulares.

Tal perspectiva de uma história a partir da aldeia, leia-se do lugar, leva em consideração a potencialidade histórica dos municípios brasileiros, por exemplo, e as tramas envolvendo seus sujeitos, seus agentes históricos os mais diversos, em situações como as vivências religiosas aqui tratadas no campo religioso do catolicismo. Para tanto, é inevitável uma abordagem da cultura e também da sociedade: a “ação social como o resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões individuais84

”.

Por anos, a história de Lagarto viveu na obscuridade85

, o que permitiu dar vazão a uma série de explicações que passam longe de critérios mais próximos da verossimilhança, uma vez que falar de verdade torna-se terreno perigoso e movediço no campo da história enquanto conhecimento.

83 CF. REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In Jogos de escalas. A experiência da

microanálise. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1988. Cf. GINZBURG, Carlo. A micro história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1990.

84 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In Peter Burke (org). A escrita da história. Novas

perspectivas. São Paulo, Editora da UNESP, 1992. p. 135.

85 A tese de uma obscuridade envolvendo a origem de Lagarto está presente num documento de 1881,

enviado pela Câmara Municipal ao Doutor Benjamim Franklin Ramiz Galvão, então Diretor da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Assinam o documento, por sinal repleto de incorreções e lacunas, os seguintes membros da Câmara: Miguel Theotônio de Castro P., Serafim da Silva Vieira, Gonçalo Rodrigues da Costa, Manoel José d´Almeida, Antonio Manoel de Carvalho, Antonio Alvez de Gois Lima, Luiz Franco de Carvalho e Manoel Romão da Piedade. Cf. Descrição do Município de Lagarto, na Província de Sergipe. 06 de abril de 1881. In: Anais da Biblioteca Nacional. Volume 111. Rio de Janeiro, 1991. pp. 267-268. Opinião partilhada por um dos ilustres lagartenses em 1902. Cf. FREIRE, Laudelino. Município de Lagarto. In: Quadro Corográfico de Sergipe. 2 ed. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier Livreiro-Editor, 1902. p. 120.

A necessidade de uma história sistemática de uma das vilas mais antigas de Sergipe, dívida até mesmo deixada por dois de seus maiores nomes (Laudelino Freire86 e Sílvio Romero87

), levou um natural de Campo do Brito-SE, Adalberto Fonseca88 , radicado e que constituiu família em Lagarto, a uma empreitada que se arrastaria por mais de quarenta anos até o seu desfecho em 2002, com sua obra História de Lagarto89

.

A iniciativa de Adalberto Fonseca rende até hoje comentários os mais diversos, categorizando sua obra, pejorativamente, no campo dos chamados memorialistas. É fato que ela não teve o cuidado acadêmico, que peque pela falta de precisão dos dados e até mesmo pela imprecisão de algumas teses como a da origem do nome Lagarto atribuída a uma pedra em formato de réptil e a versão sobre a penetração jesuítica em Lagarto, da forma como é exposta, já pelos idos de 1574, como outras assertivas suas ou por ele disseminadas, de outrem, que merecem algumas ponderações, sobretudo ao primeiro século de sua história tricentenária. As informações, por ele apresentadas, ainda carecem de uma maior fundamentação e somente novas pesquisas poderão vir a dar conta de algumas lacunas e incongruências.

86 Laudelino de Oliveira Freire é natural de Lagarto, nascido no dia 26 de janeiro de 1873. Tornou-se

conhecido nacionalmente em diversas áreas, como jornalismo, direito, docência, política, entre outras. Foi no campo da linguística, aonde seus dotes intelectuais o conduziram à Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de número 10. A partir de 1918, publicou mais de 68 volumes da famosa Revista da Língua Portuguesa, decisiva para traçar o perfil de nosso idioma e seus normativos. Ainda nessa seara, foi responsável pela elaboração do Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, obra publicada postumamente. Em 1898, publicou “Quadro Corográfico de Sergipe”, onde Lagarto aparece com rápidas pinceladas, sem maiores aprofundamentos que ajudem a elucidar sua história. Laudelino morreu no Rio de Janeiro em 1937, aos dezoito dias do mês de junho. Cf. ARAÚJO, Acrísio Torres. Laudelino Freire. In: Literatura Sergipana. 2 ed. Brasília, 1976. pp. 73-75.

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Sílvio Vasconcelos Ramos Romero nasceu em Lagarto no dia 21 de abril de 1851, tendo se criado ali até à altura dos cinco anos de idade, quando se tornou uma dos mais importantes intelectuais brasileiros de sua época, tendo como uma de seus valiosos feitos a criação da Escola de Recife em 1870, ao lado de outro sergipano, natural da antiga cidade de Campos, Tobias Barreto. Sílvio cita Lagarto diversas vezes no conjunto de sua obra, particularmente em seus trabalhos dedicados à cultura popular, esteio fundamental para identificar e compreender as vivências religiosas em torno da devoção à São Benedito na Vila de Nossa Senhora da Piedade do Lagarto. Cf. RABELLO, Sylvio. O Itinerário de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. Cf. BARRETO, Luiz Antônio. Silvio Romero. In: Personalidades Sergipanas. Aracaju: Typografia Editorial/Banco do Estado de Sergipe, 2007. pp. 25-34.

88 No ano de 1972 propôs e foi atendido (Lei municipal nº. 263) com a criação da bandeira, do hino e dos

símbolos lagartenses (como o brasão). Teve o apoio do poder público municipal, à época sob a responsabilidade de José Ribeiro de Souza (Zé Coletor).

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Ressaltar a importância de sua pesquisa é fato, pois não se pode escrever ou pretender escrever uma História de Lagarto sem lhe prestar a atenção e cuidados merecidos. Não se pode negar seu valor e não se pode partir do nada para acrescentar- lhe algo novo que ajude, sobretudo, a elucidar situações que tornem essa primeira tentativa sistemática em algo mais plausível e detonador de novas possibilidades de estudo.

Para levar adiante uma história local de Lagarto, a obra de Murilo Marx90 nos parece muito salutar para o que estamos apresentando nesse momento da tese em que introduzimos questões que serão esgarçadas ao longo de seus próximos quatro capítulos. Seu trabalho apresenta como mola-mestra a ideia de que Igreja Católica na formação das vilas e cidades brasileiras, mormente o momento de ruptura entre Estado e Igreja na República, sempre se apresentou como a raiz fundadora dos espaços urbanos.

Desde o surgimento – e a partir da própria gênese dos núcleos – os assentamentos coloniais expressam as precisas determinações eclesiásticas, não contrapostas ou sequer canalizada por instrumentos equivalentes do poder temporal, mas aceitas pela importação dos costumes e das práticas do reino91.

Outro trabalho que vai nessa direção, embora apresente algumas particularidades, é o de Ronald Raminelli92

. O autor defende a ideia de que o espaço urbano pode ser compreendido pelas fundações e existências de vilas coloniais. Para o autor, as vilas exerciam um papel de grande importância, em especial como reguladoras da vida política da colônia, como também religiosa, em nível de vigilância das consciências.

90 Cf. MARX, Murillo. Cidade no Brasil, Terra de Quem? São Paulo: Nobel, Editora da USP, 1991. 91 MARX, Murillo. Cidade no Brasil, Terra de Quem? São Paulo: Nobel, Editora da USP, 1991. p. 11. 92 RAMINELLI, Ronald. Simbolismos do Espaço Urbano Colonial. In: VAINFAS, Ronald. (Org)

Mesmo considerando que a realidade do espaço urbano das vilas da costa nordestina do Brasil estivesse longe dos moldes espanhóis, Raminelli entende que pode servir como norte para compreender a nossa realidade colonial, uma vez que as duas realidades foram construídas pelas mesmas tradições culturais: o Estado e a Igreja.

Por isso mesmo, nossa preocupação em escrever uma história de Lagarto levando-se em conta essa premissa, onde a mitra se ocupava, sob a delegação da coroa, de ir dando feições às nossas vilas e cidades93

. Nossa opção em estudar a história de um lugar pelo viés cultural e religioso se dá muito em razão de entendermos que o elemento religioso foi um aspecto marcante e decisivo na formação da Vila de Nossa Senhora da Piedade do Lagarto.

A História de Lagarto está impregnada de valores cristãos, marcadamente católicos, em que a figura do padre se apresentou não só como agente religioso, mas também como agente sociopolítico, tendo sido decisivo em ações que fomentaram seus principais acontecimentos. Esse aspecto não só definiu a sua identidade, como foi fator decisivo em sua formação e desenvolvimento.

A figura e a identidade funcional do padre no Brasil mudaram ao longo do tempo. Inicialmente, não eram exímios pregadores e detentores de conhecimentos teológicos profundos como os que serão analisados ao longo dessa tese. Eles estiveram durante muito tempo mais para funcionários e servidores da Coroa Portuguesa, com a obrigação precípua de prestar serviços religiosos à população, como: batismos, casamentos, missas e enterramentos. Além, é claro, de manter a fé através de ritos, aqueles padres dos primórdios do Brasil e de Sergipe ocuparam-se de registrar a vida dos povoados, vilas e cidades das quais eram responsáveis94

.

A nosso ver, como formadora de costumes, hábitos e crenças, a Igreja Católica influenciou decisivamente no modo de vida e nas representações culturais da gente do Lagarto. Tal assertiva não quer, em nenhum momento, atribuir única e exclusivamente

93 MARX, Murillo. Op. cit. p. 12

94 Não foi à toa, que os registros paroquiais se tornaram fontes imprescindíveis para pensar uma história

à ação de um homem religioso, notadamente o pároco ou vigário, o potentado da história. Porém, quer reconhecer e ressaltar que em Lagarto ela foi decisiva. É o que irá ser deslindado ao longo dos próximos capítulos.