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Por uma Cultura Religiosa na Análise Histórica (Acomodações e Tensões)

A escolha de conceitos que apoiem uma tese não é uma tarefa fácil e nem sempre é promissora. Partindo da concepção de Koselleck65, é necessário instrumentalizar esses conceitos dentro de uma perspectiva histórica e também historiográfica. O mesmo pode ser dito a respeito das instituições. Trabalhando com o termo paróquia, é muito pertinente, nesse sentido, o que afirma Severino Vicente: “As instituições seguem em um determinado momento histórico e, algumas são superadas pelo tempo, perdem sua importância, são esquecidas. Outras tomam rumos diversos, acompanhando as mudanças e a elas se adaptando66”.

No texto de Severino Vicente, percebe-se como o conceito de paróquia, por exemplo, vai se transmutando, se recriando e se ressignificando ao longo dos tempos da Igreja cristã, assumindo ora conotação e funções sociais, ora econômicas, ao prazer e sabor das necessidades de contexto. Esse movimento de fluxo e refluxo dos conceitos é que adotamos na escrita da tese, mostrando a plasticidade dos mesmos no tecido histórico.

Afora outras tentativas de classificar o catolicismo, presentes em trabalhos de cunho social e historiográfico, entende-se que a fórmula de Riolando Azzi67 ainda é a mais confortável e a mais segura para se aventurar sem maiores riscos e perdas na seara da história da Igreja Católica no Brasil. Interessam-nos de perto as noções de catolicismo tradicional (popular) e catolicismo renovado, conceitos capazes de nos auxiliar nesse processo verificado em Lagarto.

A reforma iniciada pelo catolicismo na segunda metade do século XIX chega aos princípios do século XX com algumas coisas bem definidas, como a necessidade de

65 KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos

Históricos, Rio de Janeiro, vol, 5, n. 10, 1992, p. 134-146.

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SILVA, Severino Vicente da. Uma Leitura de Paróquia e Comunidade no Brasil – Perspectiva Histórica – Fernando Londoño (org.), São Paulo, 1987. In: CLIO – Revista do PPGH da UFPE. Nº 17. Recife, UFPE, 1998. p. 149.

67 Cf. AZZI, Riolando. Elementos para a História do Catolicismo Popular. Revista Eclésiástica, v. 26,

caracterizar o que seria uma fé católica pautada em preceitos romanizadores. Das definições apresentadas por Roger Bastide sobre a romanização verificada na Igreja Católica a partir de meados do século XIX uma, em especial, chama-nos a atenção: “(...) a afirmação de uma autoridade de uma Igreja institucional (episcopal), estendendo-se sobre todas as variações populares do catolicismo (folk)68”. A ênfase do acesso à cultura letrada como condição para o reconhecimento das verdades da fé, a vida necessariamente ascética e a prática eminentemente sacerdotal foram minando as manifestações da cultura popular lagartense, como a devoção e festa de São Benedito.

Segundo Jekins, é preciso assumir a postura, enquanto pesquisador, de “historicizar a própria história” e chegar à conclusão de que os conceitos são construídos historicamente, não são e nem podem ser alicerces universais, mas expressões localizadas e particularizadas69.

A aversão a uma ideia de linearidade e continuidade na história a torna, a nosso ver, mais próxima de sua essência científica. É preciso ficar atento às rupturas e às tensões que as descontinuidades provocam no tecido histórico. Nesse sentido, entendemos que datar seja importante, embora não seja tudo. É só o começo, pois a perenidade das coisas e do homem permite se falar em ritmos diferenciados de realização. É bem verdade, que em termos de delimitação temporal, optamos por um período de 1771 a 1928; porém, numa perspectiva de um tempo de longa duração, o recuar e o avançar nessa temporalidade se fez necessário, evocando as chamadas raízes fundantes e as reminiscências do passado.

Em Lagarto, a adaptação da Igreja Católica aos novos rumos que a modernidade imprimia significou o esquecimento e desaparecimento da festa de São Benedito, coisa não verificada em outros lugares de Sergipe, como Laranjeiras, Japaratuba, Divina

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BASTIDE, Roger. Religion and the Church in Brazil, in SMITH, T. L., MARCHANT, A. (Eds.) Brazil, portrait of half a Continent. New York, 1951 apud SOUSA, Antônio Lindvaldo. O Eclipse de um farol: contribuição aos estudos sobre a romanização da Igreja Católica no Brasil (1911-1917). São Cristóvão: UFS: Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008.

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Pastora e até mesmo São Cristóvão70, onde os dois movimentos (fluxo e refluxo) se deram sem maiores alterações, pelo menos no que tange a se manterem ao menos como memória coletiva.

Embora seja uma incursão perigosa e espinhosa, frente aos intermináveis e contraditórios debates a seu respeito, uma discussão sobre cultura popular71 é inevitável em nosso trabalho. Considerando a festa de São Benedito, no período estudado, como manifestação de uma crença do povo, à luz das questões teóricas de então e por que não dizer de agora, é preciso demarcá-la frente a uma cultura de elite propugnada pelos três tempos e pela Igreja72, representadas aqui por seus três padres párocos, e analisados em suas convergências e divergências.

Ainda que se possa por em questão se a devoção e a festa de São Benedito sejam ou não populares, entendemos que precisam ser encaradas como manifestações da memória coletiva. Um caminho confortável é o de se buscar, perscrutar as condições históricas e humanas que permitiram a sua existência e as suas representações.

No que tange à discussão em torno da religiosidade popular, uma reflexão possível é a levada adiante pelo Padre José Fernando Ávila73. Trata-se de um estudo bem elaborado a respeito da vivência do divino, frente às chamadas tradições populares. É fato que por se tratar de uma iniciativa de cunho claramente catequético-pastoral, nos cercamos dos cuidados que poderiam desqualificar seu uso na seara científica da

70 Uma briga entre os Franciscanos e os irmãos do Rosário pela posse das alfaias da Irmandade, mero

pano de fundo, era a tentativa de controle das irmandades pelo vigário local (o mesmo aconteceu com a Irmandade do Amparo dos Homens Pardos), dentro do processo de romanização na antiga capital de Sergipe. Essa briga levou o Arcebispo da Bahia, em 1907, a interditar a Irmandade do Rosário e, mais tarde, a extingui-la. Trataremos disso melhor, mais adiante.

71 Nunca é demais lembrar que até mesmo a discussão em torno do conceito de cultura tenha lá suas

complicações também. Para tanto, vale lembrar o que diz Eagleton a seu respeito: “(...) é um termo escorregadio, que pode ser trivial ou problemático. Um suplemento de jornal em papel colorido é cultura, assim como as imagens de africanos emaciados que ele oferece a nossos olhos”. Cf. EAGLETON, Terry. Depois da Teoria. Um olhar sobre os Estudos Culturais e o Pós-Modernismo. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: 2005. p. 78.

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Segundo Severino Vicente da Silva (1998, p. 152): “(...) O grande embate ocorrido no século XVI e XVII na Europa, entre cultura de elite e cultura popular, ocorre nos estertores do século XIX e no início do século XX, no Brasil”.

73 SOARES, Pe. José Fernando Ávila. A Vivência do Divino na Tradição de um Povo. Petrópolis,

historiografia, porém não se deve deixar de lado sua importante colaboração para algumas situações que iremos desenvolver no uso daquele conceito e de seu entendimento nas questões por aqui discutidas ao longo da tese. Sua reflexão histórica sobre o fenômeno religioso em Sergipe, na esfera popular, pontuando momentos e situações diversas, é muito valiosa.

Uma análise da religiosidade popular deve ser feita sempre num contexto sócio-cultural donde ele deriva, pois um homem simples ao viver sua vida numa dimensão global é sempre um homem religioso. E a partir do religioso, manifestado em orações, festas, penitências, provérbios, cantos, expressões etc, que ele analisa o mundo e nele consegue se integrar...74.

Afora isso, ainda na seara dos conceitos, ser-nos-á de grande valia, sobretudo para os últimos capítulos, em que nos debruçamos sobre as mudanças no seio da Igreja Católica, a partir da formação dos padres pelos antigos e novos seminários, e a relação Igreja e Estado pós-proclamação da República, o conceito de neo-cristandade, pioneiramente utilizado em âmbito acadêmico pelo historiador Severino Vicente da Silva, em 1985.

Tendo as questões em torno da Primeira Guerra Mundial como mote para entender o novo tipo de relação entre a Igreja e o Estado, Severino Vicente dissertou a respeito da formação da nova cristandade, pautada, que foi, por “um modo específico da Igreja na sociedade, que se utiliza o poder político e social das classes dominantes como mediação junto aos homens75”.

74 Ibidem. p. 43. 75

SILVA, Severino Vicente da. A Primeira Guerra Mundial na Tribuna Religiosa: o Nascimento da Neo-Cristandade. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 1985. p. 36.