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Mendigando carrinhos de supermercado

percursos e discursos

5. Mendigando carrinhos de supermercado

Rondam clientes de supermercado, esperando que descarreguem nos porta- bagagens dos veículos estacionados as compras feitas. Quando sentem que o carrinho do supermercado está quase descarregado, aproximam-se, olhar profundo e ansioso, mendigando o carrinho das compras e a moeda que se solta da ranhura logo que o atrelam à fileira dos carrinhos que esperam novos clientes.

Rui e Francisco são dois jovens toxicodependentes que, neste mendigar de “carrinhos”, buscam a sorte possível, uma moeda de 50$00 aqui, uma moeda de 100$00 ali, entre uma e outra moeda, pés que se arrastam no solo de uma sobrevivência arrastada, sofrida, esmolada. Rui faz carrinhos no Carrefour de Telheiras e no Colombo. Francisco é assíduo do Jumbo de Alfragide. Rui tem 21 anos, nos estudos não foi além da 4.ª classe. Nasceu na pobreza. Tem 12 irmãos. A mãe, com 50 anos é doméstica; o pai faleceu há 4 anos, tinha 60 e era trolha de profissão. Francisco tem 24 anos, chegou ao 9.º ano da escolaridade, o pai era fiel de armazém, agora faz biscates, a mãe faleceu-lhe ainda era menino.

Na expressão facial de Francisco descobrem-se marcas de um tempo que, mais veloz que o tempo objectivado pelos ponteiros do relógio, lhe vai arrancando dentes, enrugando a pele, minguando os músculos, arqueando o esqueleto. Por isso, puseram- lhe a alcunha de Chico Palito. Quando andava na escola, até nem era mau aluno, mas as “más companhias” arrastaram-no para a “má vida”. Reprovou dois anos seguidos, por falta de aproveitamento escolar e por faltar às aulas. Os professores acusavam-no de ser fonte de distúrbios, o que alguns sociólogos traduzem por comportamento de tipo “disfuncional” ou “desviante”, tão preocupados que estão em explicar esse comportamento à luz da teoria dos “múltiplos défices”, provindos de disfunções cerebrais, dislexia, disgrafia, dislalia, discalculia, disortografia e outras que mais.

Francisco começou então a interiorizar o estigma de fracassado, dando razão àqueles outros sociólogos que protestam contra os defensores do fracasso inato, contrapondo-lhe o fracasso socialmente produzido. Fracasso puxa fracasso, numa sucessão que debilita, desqualifica. Através de um jogo de compensações, Francisco procura outros centros de interesse, outras fontes de prestígio, outros espaços de

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afirmação. Passa ele próprio a rejeitar a escola e os professores144 e a interiorizar o

estigma de burro: “não tinha cabeça para os estudos”. Esta “deficiência cultural” foi estimulada por acções compensatórias: as faltas e más notas no final de cada período eram traduzidas em “tabefes” do pai, entremeados por ameaças do género “se não estudas, vais trabalhar”.

Francisco começou a ter problemas em casa, as ameaças concretizaram-se e acabou por abandonar a escola, já que os tabefes não eram suficientemente dissuasivos. Ainda fez alguns ganchos – distribuiu pizas e fez serviço de paquete – mas acabou por se enganchar na droga. Ao princípio, pensava ser fácil controlar o desejo. O pior foi quando o desejo passou a ser controlado pelo vício. Quando se dá a iniciação ao consumo da droga é frequente que um jovem pense que “está tudo sob controlo”. Vive-se uma sensação de auto-domínio que origina a crença de que em qualquer momento se pode parar, logo que se queira. Auto-domínio cuja prova decisiva se projecta para o futuro, “um dia, quando quiser, paro”. Prova que sucessivamente se vai adiando para um amanhã que, logo que chega, se transforma em depois de amanhã. Agora, Francisco ganha e perde a vida por uma picada. Começou com amigos caninos,

snifando droga, sempre a cheirar, como os cachorros; agora é um farpa, sempre a espetar (seringas). De poucas falas, e olhando-me com serenidade, atira-me: “Sou

dependente, eu sei, e os outros que são?”.

O que são? O que são? Os outros são demasiadamente sóbrios para te perceberem, assim às primeiras. Mas sabem, iluminados que são (ou julgam ser), que desde Rousseau a característica mais importante do ser humano é a independência, sem a qual não há liberdade. A liberdade significa não estar submetido a necessidades para cuja satisfação se precisa depender de outros. Provavelmente, Francisco, querias-me dizer que, em sociedade, todos dependemos de todos. Os próprios polícias, políticos, sociólogos e terapeutas dependem de jovens como tu, Francisco, para legitimarem um trabalho, uma razão de ser, um meio de vida que seria outro se não existissem toxicodependentes. Só que a maior parte deles pode eleger a sua dependência e é nessa capacidade electiva que reside a sua independência. Um adulto pode escolher entre viver amarrado a um emprego, a um matrimónio, às letras da prestação do carro.

144 Há uma vasta literatura sociológica sobre a resistência dos jovens à escola. Veja-se: Paul Wilis,

Learning to Labour. How Working-Class Kids Get Working Class Jobs, Saxon House London, 1977; Peter

McLaren, Schooling as a Ritual Performance, Routledge & Kegan Paul, London, 1986; Daniel Liston,

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Em contrapartida, para um jovem toxicodependente não é fácil eleger a sua dependência, não é Francisco?

Entre a fase canina e a da farpa, Francisco passou por uma fase intermédia de consumo em que o prazer que outrora tinha a cada retomada se transformou progressivamente num aliviar de dor a cada recaída. Ao princípio, o desejo não se traduz em necessidade, mas o prazer torna-se cada vez mais necessário. Depois, com o incremento do consumo, o prazer é secundarizado pela necessidade de se evitar o sofrimento. Uma dose mais, e sempre mais uma, é uma necessidade vital para uma espécie de mínimo existencial. A droga deixa de ser opcional e passa à categoria de indispensável.

Já em plena fase de farpa, a tia levou-o ao psicólogo, porque não o via bem. Ele, por seu lado, não via bem que a tia o levasse ao psicólogo, mas condescendeu, depois de algumas resistências iniciais. Francisco não me explicou a aversão aos psicólogos. Apenas sugeriu que achava que não tinha “problemas psicológicos”. Ou seja (dedução possível), não teria sido por “problemas psicológicos” que havia caído na droga. Então (dedução derivada), se os “problemas psicológicos” não eram causa do vício, não custa admitir que Francisco tivesse dificuldades em ver qual o sentido de sua ida ao psicólogo. Talvez que os “problemas psicológicos” fossem uma consequência, não uma causa. O psicólogo esforçou-se por o convencer de que não era um viciado, apenas um enfermo. Tanto lhe dava, mas acabou por aceitar a sugestão do psicólogo, já que a enfermidade é uma explicação da toxicodependência mais optimista do que a do vício e o optimismo facilita a crença na mudança, ou seja, a cura.

Mas a cura não está ali à espera do enfermo, ao virar da esquina do consultório do psicólogo. As tentativas de limpeza foram apenas anunciadoras de recaídas sofridas. Em vez da cura, Francisco encontrou-se envolvido no consumo de crack, primeiro em pasta-base, depois em pó, esfarelado com o manejo e misturado com maconha em cigarros manufacturados para o efeito. Noites lembradas, nas praias da Costa da Caparica, com brasileiros e africanos, cachimbos improvisados feitos de antenas de carro, cargas de esferográfica, copos de iogurte ou de gargalos de garrafa de água mineral. Muita pedrada, bom jumbo (pedras de boa qualidade).

Foi numa altura em que se envolveu no pequeno tráfico. Os riscos de ir de cana (ser preso) eram elevados, mas os ganhos também, as habilitações requeridas mínimas, e os horários flexíveis. Era um tacho de submundo. Depois havia a fidelidade da clientela, entre a qual os que, a troco de algum bónus, angariavam novos consumidores. Foi

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assim que começou sua vida de pequeno traficante. E foi assim que acabou por ir de

cana. Literalmente, pescado. Oportunidade para se envolver com pesca graúda, na

universidade do crime. Não deixou de consumir. E recordou os tempos da prisão, do tédio, da batota, da revolta.

Voltado da prisão, Francisco regressou à aventura e à batota da vida. Baralhou ideias, decidiu partir para outra, distribuiu ilusões, aparelhou trunfos, insinuou jogatanas, biscando aqui e acolá, como se a vida fosse um naipe de biscates. Mas o jogo da vida continuava persistentemente em baixo, deitando por terra as leis da probabilidade que, se funcionassem, lhe abririam tanto as portas da ocorrência do azar como as da sorte. Com os amigos, quando se juntavam para jogarem à lepra, um velho hábito adquirido na prisão, aí a lei das probabilidades funcionava, jogava forte e tanto perdia como ganhava. Ao jogar à batota sacralizava o gratuito, mas também o poder do aleatório em relação ao qual a sua vida aparece submetida. Na batota busca-se dinheiro fácil, mais do que isso, como a própria designação de batota sugere, busca-se uma anulação das regras que fundamentam o sistema convencional de trocas económicas regido por uma ética imperativa: a todo o esforço corresponde uma recompensa, a todo o investimento um lucro. É nisto que a batota é subversiva, ao propor uma conversão singular, a sobrevivência através da subversividade.

O futuro é a única temporalidade onde se podem emendar os erros. O pior é quando o passado não dá possibilidades ao futuro. Do mesmo modo que não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio, nem comer cru o que já foi cozinhado, também não podemos voltar atrás e recomeçar a vida. De revés em revés, Francisco viu cada vez mais a sua vida degradar-se. Encontrar trabalho passou a ser uma miragem. Antes de mendigar carrinhos de supermercado, arrumou automóveis, pediu dinheiro na rua, no metro, à porta de igrejas. Quando o questionei sobre se as esmolas compensavam respondeu-me que não, reforçado com um aceno abanado de cabeça: aquele te deu, estoutro te dá, bem haja quem do seu não dá. Ao esmolar a sobrevivência à porta das igrejas, Francisco punha à prova a piedade cristã, viu que muitos davam o que podiam, mas também viu mais ingratos que sapatos. O insucesso no esmolar cedeu passo às tentações de roubar. O roubo como consequência de uma falsa piedade cristã? Pecado gerando falso pecado? Violentos, os jovens delinquentes? Ou vítimas da indiferença, a mais violenta das violências?

Francisco andou também pelo Parque (Eduardo VII), vendeu favores sexuais, em terminologia da moda dir-se-ia que foi vítima de exploração sexual. É interessante

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verificar que a vitimização de um jovem se define essencialmente a partir da conduta do jovem. De vez em quando há alusões vagas à conduta dos agressores, mas passam despercebidas, são tornadas invisíveis pela censura social, hipocritamente correcta. As respostas institucionais à vitimização dos jovens incidem exclusivamente sobre eles quando são encerrados em qualquer instituição de reabilitação. E os agressores? Os malfeitores? Os verdadeiros culpados da exploração sexual dos jovens? Ao que assistimos é que as medidas de prevenção, protecção e reabilitação tendem a ser coercitivas e punitivas apenas para os jovens, são medidas baseadas numa discriminação de idade. Quando um jovem sai de uma instituição de reabilitação e se vê abandonado na rua, o seu estatuto transforma-se imediatamente: de vítima passa a transgressor, de ser vulnerável a delinquente. Um jovem acaba por ser rotulado de delinquente em razão de uma situação que o vitimiza.

Francisco vive agora das migalhas que o presente tem para lhe oferecer. O futuro não lhe interessa, passado nunca o teve, mesmo quando o busca nas dissidências da vida. Apenas lhe parece ter sido dado um destino, sombras de determinações dadas por razões que se aparentam com leis sociológicas. Francisco não se preocupa com o futuro. No seu olhar vidrado adivinhamos um lema de vida: “por falta de interesse fica cancelado o amanhã”. A morte mais temível não é aquela que o espera, mais dia menos dia, mas aquela que o impede de viver quotidianamente.

Como outros jovens, Francisco vê-se apanhado por um double-bound: por um lado, há quem desejasse forçar estes jovens marginais a trabalhar como condição necessária de fuga à marginalidade; por outro lado, as estruturas convencionais de emprego persistem na sua rejeição. Então, a estes jovens nada mais resta que a vagabundagem, converterem-se em errantes de uma vida errática. Os sistemas de protecção social não os alcançam. Os trabalhadores encontram-se ou não protegidos em função da sua integração nas estruturas produtivas. A um trabalho estável corresponde um determinado número de garantias assistenciais que “protegem” o trabalhador do risco de doenças, acidentes, desemprego. Os sindicatos lutam por isso. Mas os desempregados de longa duração, os marginais, não se encontram sindicalizados, os sindicatos não olham por eles.

Francisco responde-me com longos silêncios. Nesses silêncios parece morarem memórias de vida que ele não relembra ou não quer relembrar. Em qualquer dos casos, as palavras são instrumentos vãos de comunicação, indescritores do que a vida escreveu por linhas tortas. Chegou-me a dizer que conheceu a mãe e provavelmente

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não se lembra dos beijos que ela lhe terá dado. Sabe-se que ficou órfão, por abandono ou por morte, tanto faz, e a tanta clarificação não é necessário chegar. Com Francisco aprendi que podemos fazer entrevistas sociológicas, entrevendo o muito que o silêncio diz e o olhar comunica. O olhar quedo de Francisco parece retardar-lhe a sensação de estar vivo. Mas, de vez em quando, olha obliquamente e, de golpe, não se sabe bem o quê: um carrinho de supermercado atestado de compras cuja moeda perdeu por culpa da entrevista? Alguém de quem está à espera? Puro gesto de enfado?

Francisco dá mostras de impaciência, possivelmente está em fase de ressaca. Despeço-me e afasto-me lentamente, enquanto ele gira em sentido contrário, num arrastar de passo, lentamente apressado. Quando lhe dei algum dinheiro, ofereceu-me um sorriso disfarçadamente sardónico que lhe deformava a boca e punha a descoberto dentes escurecidos e esburacados de cáries de heroína. Reparo nas suas roupas rotas de sonos mal dormidos; parece ter saído de uma violenta briga de rua, calças folgadas à cintura de um estômago de fome, seguras com um cinto de cordel. Os sapatos, sola desligada do couro, também têm fome (há mais ingratos que sapatos...), o dedo do pé esquerdo não deixa perceber se a sua nudez se deve a buraco de meia ou a ausência da mesma. Vejo-o desaparecer na volta de uma esquina, de uma esquina de vida na qual o que se tem é apenas uma vida jogando com a morte. Ninguém sabe o que é a droga antes que sinta a angústia da falta dela.

***

Rui é mais falador do que Francisco, embora recorra a frases curtas, directas, inci- sivas.

(Que fazes?) Neste momento sou arrumador de carros. (De carros de compras?) – Sim, sim.

Destes carrinhos de compras... É a arrumar carros. (E como é que fazes, abordas as pessoas?) – Pergunto se querem ajuda para levar as compras para o táxi ou para o carro ou, pronto, para o autocarro. Normalmente, muitas querem e muitas não querem. As que querem eu ajudo e dão-me sempre qualquer coisa a ganhar.

Rui fez a 4.ª classe, transitou para o 1.º ano, mas não passou daí. Levavam--no à escola, mas fugia sempre. Como tinha doze irmãos, foi viver com uma tia – “A minha tia sim, deu-me respeito, dava-me com o chicote todos os dias e não era pouco!”. Mas da escola não queria saber. Voltou para casa da mãe, continuando a não “atinar” com

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a escola. Os pais internaram-no então num colégio, de onde fugia frequentemente. Passou a “externo”, estatuto que mais lhe agradava.

(Porque é que começaste a faltar à escola? Arranjavas outras coisas para fazer?) – Pois era, vadiagem, andava aí dum lado para o outro, só ia era vadiar, olha, não ligava à escola. (Sozinho ou com...) Sozinho... acompanhado, era mais acompanhado com os amiguinhos (risos). A 4.ª classe fiz só até meio e disseram-me que me passavam na mesma e passaram-me. Não fiz a 4.ª toda, fui a meio e nunca mais fui à escola. Quando saí da casa da minha tia, depois aqui é que me internaram e disseram que como eu não tinha acabado de fazer a 4.ª que me passavam para o 1.º ano na mesma (...). Só que eu não liguei, fui um dia ou dois e não fui mais (...). Deixei a escola porque quando estava em casa da minha tia (...) ela de vez em quando punha--me a vender bonequinhos (...). Olha, deixei a escola também mais precisamente por causa dela, tava-me sempre a bater.

Vendia bonequinhos, bonequinhos de um lado, obrigações escolares de outro. Trocou a escola pela rua e desta fez a escola da vida. É curioso. Proíbe-se o trabalho infantil, mas não se proíbem as condições de penúria económica que levam as crianças, como o Rui, a terem de trabalhar, para ajudar à sobrevivência familiar. Há jovens que, pela idade, não deveriam trabalhar. A legislação enquadra-os como dependentes. Mas muitos jovens não têm nenhuma instituição ou pessoa fiável de quem depender. Qualquer coisa está mal no entendimento do trabalho infantil quando as crianças são referenciadas de “vítimas” e se menosprezam os factores que provocam a sua vitimização.

Depois de algumas aventuras, Rui tentou assentar, começou a trabalhar em carpintaria, tinha já 17 anos:

Sim, sim, a fazer caixotaria. (E estiveste quanto tempo a fazer isso?) Tive uns quatro ou cinco meses, já não tive mais. E até era um bom horário, das dez da manhã até ao meio-dia e meia, depois pegava à uma e meia e saía às quatro. Era um bom horário... (E ganhavas bem?) – O ordenado mínimo. Já com alimentação, já tudo... (E tinhas um contrato?) – Não, não. (E

trabalhavas para quem?) – Era estilo oficina, era no Campo das Cebolas, era para uns senhores.

(Depois disso, o que é que fizeste a seguir?) – Ora, depois daí saí, vim para aqui, comecei a andar aí dum lado para o outro, olha, acabei por cair na vida que caí, olha, até hoje. (Nunca fizeste outro

trabalho?) – Fui uma vez para a padaria, tive lá também pouco tempo, um mês se tanto. (Mas a

fazer pão mesmo?) – Sim. (E aprendeste a fazer pão ou eras só...) – Alguma coisa, era ajudante ‘tava a aprender. (...) Era durante a noite, entrava para aí à meia-noite, saía às seis da manhã ou às sete. (Outras coisas que tenhas feito?) – Às vezes faço biscates, faço. Pessoas que me pedem, querem mudar coisas para outra casa ou assim. Ainda um senhor há pouco tempo no Colombo pediu-me, até me deu o número de telefone para quando eu quisesse telefonar, e arranjar mais

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um ou dois que precisava... (Para fazer mudança?) – Pois. (Então também estás no Colombo?) – Sim, só vou para o Colombo é quando isto (Carrefour de Telheiras) fecha na parte da tarde. Isto fecha à uma da tarde aos domingos e feriados e assim vou até lá abaixo passar o resto do dia.

As dificuldades de inserção profissional geram subculturas “desviantes” e bolsas de marginalidade social: temporais nuns casos; definitivas, como no caso do Rui. A exclusão do trabalho traduz-se em exclusão social. Rui não tem amigos porque os amigos da droga, sustenta, não são amigos.

(Tens amigos?) – Alguns... os de lá do bairro. (Os teus amigos são os de lá do bairro onde tu

cresceste?) – Sim, sim... (E continuam a ser os teus amigos?) – Amigos, amigos da rua! Amigos não é aquilo, porque amigos da droga... na droga não há amigos! Não há mesmo! (O que é, que

fazem esses teus amigos lá do bairro?) – Muitos trabalham, muitos não trabalham, tão lá no

bairro... Olha os amigos desta vida... (Tens muitos amigos que fazem mais ou menos a vida como

tu?) – Sim, muitos que fazem porque muitos outros já foram mesmo amigos e agora, se for preciso,

hoje em dia não são porque não se meteram na vida em que eu me meti e eu meti--me, olha, já nem me ligam se for preciso... (E estes com quem estás aqui?) – Isso são os que andam na mesma vida que eu.

Vida de quem não encontra outros marcos de referência e de identificação que os do próprio submundo em que sobrevive. Rui conta apenas com a compreensão de pessoas anónimas, e é na base dessa compreensão gratuita que os territórios da sobrevivência, apesar de miseráveis, se tornam suportáveis.

As pessoas mesmo é que me compram a comida. Normalmente gostam mais de dar comer em vez de darem dinheiro, pronto, dinheiro já sabem para o que é... por isso é que... Muitas dizem logo: “Queres comer? Anda lá dentro que eu dou-te de comer.”

Da família não recebe qualquer apoio, aliás, nunca sentiu grande aproximação dos familiares, a não ser pancada. Quando lhe perguntámos se os pais eram bons para ele, respondeu, baixando a voz: “Eram... mais ou menos”. As palavras de Rui soam a semânticas múltiplas no claustro da descontinuidade da sua resposta quando, ao relembrar o passado, se imobilizou em “eram”... a que acrescentou, depois de um compasso de espera, um ambivalente “mais ou menos”. Gostaria de te dizer, Rui, que alguns sociólogos não teriam dúvidas em caracterizar o teu discurso como típico de “código restrito”. Diriam eles que, para te fazeres entender, não necessitas de grandes elaborações linguísticas, por isso usas frases curtas, frequentemente inacabadas; e,