• Nenhum resultado encontrado

Dos relatos aos conteúdos de vida

As potencialidades do método biográfico radicam, sobretudo, num valor de subjectividade que permite que a história de vida exista e circule: a via da subjectividade, como Ferraroti reconhece107, é a que possibilita reconstruir o alcance

objectivo de uma consciência individual, de grupo ou de época. São os indivíduos, através dos seus relatos, que nos permitem a reconstrução dos conteúdos de vida, ao considerarem-na do presente, revisitando-a, filtrando-a por diversas categorias, desenvolvendo uma lógica narrativa que procura dotar de sentido o que se conta.

O que está em jogo no uso do método biográfico é a recuperação de memórias narradas do ponto de vista de quem as evoca. Mas em jogo está também a possibilidade de tornar visível o que – de um ponto de vista positivista – nem sempre é empiricamente detectável. São precisamente as dimensões invisíveis de um determinado fenómeno que, muitas vezes, nos permitem organizar o evidente. Os jovens entrevistados contaram-nos experiências de vida – memórias captadas dessas experiências – de apenas algumas, as que nos quiseram contar. Na memória dá-se uma contracção de tempos na dimensão do instante e do acontecimento, num movimento de centripetização que centrifuga outros tempos para as margens do esquecimento ou da ocultação. Sabemos, por outro lado, que as memórias são selectivas e afectivas, não constituindo um registo neutro do que evocam.

E porque as memórias são afectivas, o importante foi criar um ambiente propício à sua emergência, ganhando a confiança dos jovens entrevistados, designadamente dos que nos olhavam com suspeição – jovens reclusos, arrumadores toxicodependentes, prostitutas... Tem razão Gabriel García Márquez quando afirma que as entrevistas são como o amor, havendo necessidade de pelo menos duas pessoas para as fazer. E o resultado final só é positivo se essas duas pessoas se querem. De contrário, o resultado será um sartal de perguntas e respostas das quais pode sair um filho no pior dos casos, mas jamais uma boa recordação108.

A produção dos relatos biográficos foi feita através de entrevistas aprofundadas109.

No caso de um jovem recluso (Blatte) recorri, também, a apontamentos biográficos

107 F. Ferraroti, “Sobre la autonomia del método biográfico “, in J. M. Marinas e C. Santamarina (Ed.), La

Historia Oral. Métodos y Experiencias, Debate, Madrid, 1993.

108 Gabriel García Márquez, Notas de Prensa. Obra Periodistica 5 (1961-1984), Montadori, Madrid, 1999, p. 161.

86

redigidos pelo próprio, e no caso de uma jovem prostituta (Inês) analisei os seus pequenos diários. Com as jovens prostitutas e com os arrumadores fiz, separadamente, pequenas discussões de grupo, para além das entrevistas individuais.

Quando se utiliza a técnica da entrevista, muitas vezes encontramos nos entrevistados uma predisposição, relativamente estável e organizada, para responderem em termos de “juízos de valor”, de acordo com uma matriz ideológica muitas vezes inconsciente que produz (e que se traduz por) um conjunto de tomadas de posição, de qualificações, de descrições e de avaliações que não podem ser compreendidas fora dos contextos em que são produzidas. Esta tendência é particularmente notória em entrevistas marcadas por maior directividade. No caso da pesquisa realizada, houve um propósito consciente de fugir a excessos de directividade. Apenas pedimos aos jovens que nos falassem das suas trajectórias de vida, com relevo especial para as trajectórias profissionais. De qualquer forma, houve uma preocupação

em mapear aprofundadamente os percursos profissionais (tipo de

profissões/ocupações exercidas; durações respectivas; escolhas e abandonos; ritmos de trabalho; rendimentos, etc.); as atitudes e vivências perante o emprego, o desemprego, a precariedade, bem como as estratégias de sobrevivência e desenrascanço; as trajectórias escolares; os projectos de vida e de futuro; os relacionamentos familiares e amicais (influências, interferências, ajudas, reprimendas).

Aos jovens entrevistados deu-se a possibilidade de criarem o seu próprio espaço de narratividade, sem que ficassem constrangidos por sequências narrativas impostas por um guião rígido que, normalmente, obedece a modelos analíticos pré-concebidos – por vezes, com excessiva rigidez – pelo investigador. As próprias perguntas de um guião directivo projectam, implicitamente, esquemas analíticos para respostas anunciadas. Daí que respeitássemos o estilo e o ritmo dos jovens entrevistados, evitando todo o tipo de directividade que pudesse evocar a imagem de um interrogatório. Enfim, tentámos sempre salvaguardar o predomínio da escuta sobre o saber já feito: escuta que passa também pela valorização interpretativa dos silêncios.

A análise das entrevistas funcionou, mais com propósitos heurísticos do que

algorítmicos. A objectividade não tem, necessariamente, de ficar amarrada à obsessão

Bernardes, Eduardo Parreira e Marta Catana. Numa entrevista de grupo a jovens arrumadores contei ainda com a colaboração de Ana Micaela, Maria do Carmo Gomes e Pedro Miguel. A todos estes meus colaboradores manifesto a minha gratidão pelo apoio que me prestaram.

87

do mensurável e do quantificável. Com efeito, é tão perigosa a ilusão subjectivista quanto a ilusão objectivista110.

Ao todo realizaram-se 14 entrevistas aprofundadas, número considerado suficiente para ilustrar as encruzilhadas de vida de muitos jovens, não importa quantos. Cada vida foi considerada um caso, um caso de vida. Os estudos de casos, como acontece com as demais metodologias qualitativas, orientam-se por uma epistemologia interpretativa. Ao estudar-se um caso, o objectivo não é o de representar o mundo; basta a representação do caso111. Aliás, um caso não pode representar o mundo, embora possa

representar um mundo no qual muitos casos semelhantes acabam por se reflectir. A selecção dos jovens foi determinada pela relevância cultural que esses jovens tinham, enquanto unidades de observação, relativamente ao que se estava investigando: o trabalho precário. Em ambiências qualitativas, os critérios de selecção são critérios de compreensão, de pertinência e não de representatividade estatística. Enquanto que em amostragens estatísticas a probabilidade de selecção de cada unidade de observação deve estar determinada com precisão, nas pesquisas qualitativas este aspecto não é tão relevante, uma vez que a selecção é um problema de focagem. As estratégias de selecção não se orientam para a constituição de amostras estatísticas, mas de amostras estratégicas que permitam atingir uma

saturação informativa. Os casos considerados foram achados suficientes para ilustrar

o problema do trabalho precário entre os jovens. Neste sentido, a amostra do estudo pode considerar-se intencional. A relevância deste tipo de amostras não reside na pretensão de representação de uma população com o objectivo da generalização de resultados; em contrapartida, procura-se aprofundar o nível de conhecimento de realidades cuja singularidade é, por si, significativa.

Em sociologia qualitativa uma amostra é representativa não a um nível morfológico (descrição superficial), mas a um nível sociológico (analítico)112. Por outro lado, a ideia

de representação não se filia a um universo de estudo, mas ao estudo (metodológico) desse universo. Assim, e como sustenta Bertaux, a saturação é um processo que se

110 I. Clot, “La Otra Ilusión Biográfica”, Historia y Fuente Oral, nº 2, 1989, pp. 35-39.

111 R. E. Stake, “Case Studies”, in N. K. Denzin e Y. S. Lincoln (Eds.), Handbook of Qualitative Research, Sage, London, 1994.

112 Daniel Bertaux, “De la perspectiva de la historia de vida a la transformación de la prática sociológica”, in Marinas, J. M. e Santamarina, C. (Eds.), La Historia Oral: Métodos y Experiencias, Debate, Madrid, 1993.

88

opera, não ao nível da observação, mas ao nível da representação que se constrói, pouco a pouco, a propósito do seu objecto de pesquisa113.

Em linhas gerais, como interpretei as entrevistas realizadas aos jovens? Através de um trabalho de articulação (collage, montagem) que consistiu em situar diversos sistemas de referência dos jovens com uma problemática central: a de “ganhar a vida”. Esses sistemas de referência encontram-se presentes nas falas dos jovens, de uma forma latente. Faltam depois articulações funcionais (pós-lineares) que, na Psicanálise, Guattari designa de componentes de passagem que fazem emergir outras coordenadas de existência, permitindo encontrar uma saída: os lapsos, os actos falhos, os sintomas, são como pássaros que vêm bater com os seus bicos no vidro da janela. Não se trata de ‘interpretá-los’. Trata-se, isso sim, de situar a sua trajectória para ver se eles têm condições de servir de indicadores de novos universos de referência, os quais poderiam adquirir uma consistência suficiente para provocar uma viragem na situação.

Por exemplo, quando entrevistei jovens prostitutas, senti necessidade de estabelecer pontes de passagem entre a profissão que exerciam e as razões particulares que as levaram a exercer tal profissão, todas elas convergentes na necessidade geral de ganhar dinheiro. Mas elas preferiam falar-me da complexidade das suas vidas. Deixei- as falar livremente, privilegiando a posição de escuta, mesmo quando, ao interromperem os seus relatos, me respondiam com silêncio. Inês, uma jovem universitária, sempre que abordava aspectos da sua vida de prostituta, baixava a voz, arregalava os olhos ou falava de “isso”, “aaaah...”, “coisa” e “não sei quê”, ou seja, voos interrompidos de pássaros a bater com os bicos na janela. Numa interpretação simplicista, poderia supor que ela estaria com vergonha de me falar desses aspectos. Hipótese débil perante a realidade de Inês ir para a cama com qualquer um. Valorizando a via da subjectividade que permite reconstruir o alcance objectivo de uma consciência, lia no seu diário: “Apesar dos outros aspectos negativos, continuo a ser a mesma pessoa de sempre; sou boa pessoa, sou humana, o meu lado obscuro não influencia a minha pessoa, o meu eu”. Ou seja, apesar de reconhecer os “aspectos negativos” da sua vida, que se prendem com a prática da prostituição, Inês não admite que esse “lado obscuro” da vida influencie o seu “eu”, pois, sustenta, continua “a ser a mesma pessoa de sempre”.

113 Daniel Bertaux, “La perspectiva biográfica: validez metodológica y potencialidades”, in Marinas, J. M. e Santamarina C. (Eds.), La Historia Oral: Métodos y Experiencias, Debate, Madrid, 1993, p. 59.

89

Aqui chegados, podemos estabelecer uma componente de passagem entre dois sistemas de referência: de um lado, temos um sistema de referência que invoca uma socialização familiar de matriz tradicional e católica e que produz “a mesma pessoa de sempre”. Os pais, com quem Inês vive, desconhecem, por completo, que a filha seja prostituta. Funcionários públicos de ascendências rurais, deram-lhe uma educação católica e, com sacrifícios, permitiram-lhe que chegasse até à universidade. Este sistema de referência, institui-se num espaço de coordenadas morais que permitem que Inês tome consciência do seu lado “obscuro” da vida. Mas então porque é que Inês se prostitui? O dinheiro é o motivo alegado. Inês diz-me: “comecei a ver que ofereciam 600 contos por mês, assim uma coisa... por mês!”; “eh pá, ganha-se muito dinheiro!”; “as universitárias cobram mais”.

Aqui chegados, podemos desenhar outra componente de passagem entre os motivos

porque Inês se prostitui (necessidade de dinheiro) e os motivos para se prostituir. De

acordo com Schutz114, os motivos para (motivos subjectivos) referem-se ao fim com que

se persegue a acção; fazem parte do mundo subjectivo que projecta a acção. Os

motivos porque permitem considerar a acção como produto de experiências passadas.

Podem ser alegados pelo próprio (quais as razões que me levaram a actuar como actuei, ou a escolher este projecto em particular?) ou pelo investigador (quais as razões que o levaram a actuar como actuou, ou a escolher esse projecto em particular?). Por conseguinte, os motivos para emanam de um projecto de acção; os motivos porque justificam o projecto. Os primeiros, projectam-se no futuro, os segundos, enraizam-se no passado. Enquanto os motivos para explicam os actos quotidianos em termos de projecto, os motivos porque explicam o projecto em termos das vivências do passado. Assim, por exemplo, quando chove abro um guarda-chuva para não me molhar; porque sei que, se o não fizer, me posso constipar; saio de casa para ver um amigo porque preciso de falar com ele; os motivos para que um jovem se decida a arrumar carros prendem-se com a necessidade que ele tem de ganhar dinheiro. Mas os motivos porque explicam, atentando na sua trajectória biográfica, as razões que levaram o jovem a arrumar carros, a necessidade de não prolongar o estado de ressaca. No caso de Inês, os motivos porque Inês se prostitui (ganhar muito dinheiro) articulam-se com necessidades de consumo (dinheiro para consumir) impulsionadas por um mercado de consumo juvenil. Aqui surge outro sistema de referência, ligado a valores hedonistas,

90

muito difundidos entre os jovens115. Inês, ao chegar à universidade, começa a querer

sair com os colegas, a ir às discotecas, a vestir bem. Mas os pais não lhe podem custear todos estes gastos. Então decidiu: “Vou arranjar um trabalho nas férias, qualquer coisa, começar a ter o meu dinheiro”.

Inês reivindica ser “a mesma pessoa de sempre”, mas, na verdade, o seu “eu”, que ela pensa ser sempre o “mesmo”, é um eu saturado116, no sentido de estar colonizado

por uma (con)fusão de identidades e de sistemas de referência, nem sempre ajustáveis entre si, que possibilitam a emergência de um ser precário. O presente livro mostra que um dos exemplos da precariedade é o da carreira profissional. Ter uma carreira ou vocação significava, tradicionalmente, uma identidade singular, estável, socialmente valorizada, reconhecida. Em contrapartida, nos tempos que correm, a carreira profissional de um jovem não segue um trilho pré-determinado; as possibilidades de inserção profissional são múltiplas e diversas, pode-se ser qualquer coisa em qualquer momento; por exemplo, estudante universitária e prostituta.

Como chegámos dos relatos aos conteúdos de vida? Através de um labor interpretativo que nos levou, inicialmente, à transcrição das entrevistas anteriormente gravadas. É claro que nas transferências de cargas significativas dos discursos ao papel – através da transcrição, mas também, posteriormente, através de codificações e

categorizações – surgem, necessariamente, descontinuidades, rupturas,

tergiversações de enfoque, perdas semânticas. Se é verdade que toda a lógica de discurso, todo o contínuo da fala, detém uma espécie de força de segurança que deriva do seu próprio encadeamento discursivo, também é certo que a análise de conteúdo é o estilhaçar dessa unidade encadeada; é um desvelar de sentido, mas, ao mesmo tempo, um despedaçar desse mesmo sentido; é uma sequência de fragmentos cortados, um esquartejamento de uma unidade de sentido que dá lugar, sub- repticiamente, a outros sentidos (interpretativos). Ao acumular deste modo as descodificações, ao passar ao lado dos mecanismos de segurança dos sentidos expressos, ao pôr a interpretação do dito em roda livre, todas as tentativas de descodificação acabam numa codificação; e é por esta razão que toda a interpretação decifra e não decifra, ao produzir ou amontoar linguagens, deixando-se infinita e incansavelmente atravessar por elas.

115 José Machado Pais (Coordenação científica), Gerações e Valores na Sociedade Portuguesa

Contemporânea, SEJ/ICS, Lisboa, 1999.

116 K. J. Gergen, El Yo Saturado. Dilemas de Identidad en el Mundo Contemporaneo, Paidós, Barcelona, 1992.

91

Três níveis distintos de análise de conteúdo foram trabalhados: o sintáctico, o

semântico e o pragmático. Ao trabalharem-se os discursos, o nível sintáctico remete

para o texto, em si mesmo. Mas a análise de conteúdo não se circunscreve a esta superfície textual. As realidades semânticas (as dos significados) e pragmáticas (as dos usos), em relação às quais essa superfície textual adquire sentido, constituem, justamente, o conteúdo de um texto. A análise de conteúdo procurou, então, o estabelecimento de conexões entre o nível sintáctico (em sentido lato) e as suas referências semânticas e pragmáticas. Tomando um exemplo: ao nível sintáctico, a linguagem de Festo, um jovem negro que é DJ (vida de disc jockey: das obras à discoteca), tem muitos bordões (é o caso de “né”: “foi duro, né?”) e repetições (“muito, muito, muito mesmo”; “só Deus sabe! Só Deus sabe”). Esta especificidade sintáctica remete para uma realidade semântica: o “né?” (contracção de “não é?”) é uma expressão de auto-convencimento que se põe constantemente à prova ao sugerir-se uma comprovação ao interlocutor, quando se questiona o que se disse (né?). Uma afirmação seguida de um né interrogativo exige confirmação. Mas também se descobriu que este nível semântico se encontra associado a um nível pragmático: a musicalidade que os bordões e repetições conferem à expressão oral do Festo reflecte a sua actividade musical. Festo é um jovem negro mergulhado na cultura Hip Hop que é uma cultura de mesclagens. Desde logo, de mesclagem de música (rap, Djing, beat-box, funk), de performances corporais (break dance, smurf, hype, double dutch) e de

grafitismo (tag e graff). O Rap (rhythm and poetry), em particular, é um espaço cultural

onde podem conviver identidades de origens fragmen-tadas. É um espaço de bricolage de identidades. Aliás, esta ideia fundamental de bricolage está presente nas “mixagens” musicais dos DJ’s que passam música rap e funk117.

Por vezes, há uma tendência para nos aprisionarmos aos “conteúdos directos” dos textos em que desembocam as entrevistas transcritas. Ora, o conteúdo de um texto não é o texto em si mesmo mas algo em relação ao qual o texto funciona, de certo modo, como instrumento. Ou seja, o “conteúdo” de um texto não é algo que esteja localizado “dentro” de um texto enquanto tal, mas fora dele, ou melhor, num plano distinto em relação ao qual esse texto revela o seu sentido.

A análise de conteúdo pode conceber-se como um conjunto de procedimentos que acaba por se traduzir na produção de um meta-texto analítico. Por outras palavras,

117 Conta-se que a “mixagem” surgiu quando Bambaataa, encontrando-se a preparar um churrasco com uns amigos, deixou cair uma salsicha num disco que rodava e na ânsia de salvar a salsicha e o disco inventou a técnica da “mixagem”.

92

trata--se de um método destinado a desestabilizar a inteligibilidade imediata das superfícies textuais das entrevistas transcritas, mostrando, em contrapartida, as suas características latentes – e, logo, ocultamente presentes. A imagem que Roland Barthes nos dá de qualquer texto sujeito a uma análise de conteúdo é a de texto estelado: “o texto, no seu conjunto, é comparável a um céu simultaneamente plano e profundo, liso, sem margens nem pontos de referência; tal como o áugure que, com a ponta do seu cajado, corta um rectângulo fictício do céu, para nele interrogar, segundo certos princípios, o voo dos pássaros, assim o comentador traça, ao longo do texto, zonas de leitura, para nelas observar a migração dos sentidos, o aflorar dos códigos, a passagem das citações. A léxia não é mais do que o invólucro de um volume semântico, a crista da vaga do texto plural, disposto como um banquete de sentidos possíveis118”.

Ao reler as entrevistas transcritas, fiz um destaque de pequenos pedaços de texto, exercitando o estabelecimento de unidades básicas de relevância (unidades de registo), a um nível elementar: partindo de palavras que condensassem conteúdos semânticos que, por sua vez, pudessem resultar em conteúdos-chave do processo de análise – técnica que, aliás, se utiliza (key word in context) quando recorremos a programas informáticos de análise de conteúdo como instrumento para a determinação de unidades de registo. Mas uma mera inventariação de unidades de registo elementares não chega para atingirmos o sentido de um texto. Para que este se revele, é necessário passar a outro nível de exercitação que passa pela referência das unidades de registo aos lugares concretos do texto em que aparecem. O objectivo é articular as constelações de unidades de registo com os respectivos enquadramentos contextuais. Ou seja, praticamos o referenciamento de unidades de registo a unidades de contexto (de natureza textual ou extra-contextual). Estas revelam-se como marcos interpretativos que ajudam a pôr em relevância as unidades de registo.

Em algumas entrevistas ensaiei uma aproximação ao processo ontológico da

formação da auto-imagem119. O exercício permitiu aos jovens construírem as suas

próprias teorias acerca do curso das suas vidas, contrastando êxitos e insucessos, factores favoráveis e desfavoráveis, investimentos pessoais, apoios familiares e influências aleatórias (destino). Com alguns deles discutiram-se estratégias instrumentalizadas no processo ontológico da formação da imagem:

118 Roland Barthes, S/Z, Edições 70, 1980, p. 18.

119 Apoiei-me no contributo de Agnes Hankiss, “Ontologies of the self: on the mythological rearranging of one’s life history”, in D. Bertaux (Ed.), Biography and Society. The Life History Approach in the Social

93

a) estratégias dinásticas (que fazem depender as situações actuais de situações