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Lipman (1988; 2008) escreve que uma das características do pensamento crítico é a capacidade de autocorreção, uma habilidade que temos de monitorar os processos de pensamento, sobre a qual discorri no primeiro capítulo desta tese. Também já argumentei que a tarefa de monitorar nosso pensar está associada ao Sistema 2 de Kahneman (2011), que envolve operações mentais mais lentas, deliberativas e que demandam mais esforço cognitivo.

A ideia de autocorreção a qual Lipman (1988; 2008) se refere, e a tarefa de monitoramento do pensar são elementos fundamentais do que chamamos de metacognição (FLAVELL, 1979). Definida de maneira ampla, metacognição envolve o “planejamento, monitoramento e revisão de estratégias cognitivas” (FELDMAN, R. S., 2009, p. 355), ou, nas palavras de Halpern (1999, p. 72), significa “o que sabemos sobre o que sabemos”, para que então possamos usar esse conhecimento para direcionar e aprimorar os nossos processos de raciocínio e aprendizagem.

Na literatura educacional, é comum encontrarmos discussões a respeito da metacognição como sinônimo de – ou muito próxima a – expressões como “aprender a aprender” e “saber aprender” (ver, por exemplo, BUSTINGORRY; MORA, 2008; PORTILHO; DREHER, 2012; RIBEIRO, 2003). Basicamente, “aprender a aprender” significa ter a habilidade e disposição para refletir sobre como ocorre a própria aprendizagem e, a partir disso, monitorar o uso de estratégias e quaisquer outros aspectos que possam melhorar a própria capacidade de aprendizado. O enfoque desta tese não é na metacognição associada à aprendizagem, pelo menos diretamente, embora o simples fato de que ela denota a capacidade

de um estudante ou professor pensar sobre como pensa (e, consequentemente, como aprende) faz com que esta forma de metacognição também esteja ligada de algum modo ao pensamento crítico.

Entendo que operações metacognitivas podem se relacionar diretamente com o pensamento crítico de, pelo menos, duas maneiras: uma delas é através da reflexão sobre os próprios processos de pensamento; a outra é através do monitoramento e deliberação sobre nossa rede de crenças. Escrevi sobre este último quando examinei as implicações da jornada de Houdini para investigar os famosos médiuns de seu tempo, então vou dedicar a maior parte desta seção à metacognição como um pensar crítico sobre nossos modos de pensar.

Antes, faço uma breve digressão sobre o que representa monitorar a nossa rede de crenças. Imaginemos que estamos em um barco fazendo uma longa viagem, e em certo ponto do percurso percebemos que existem algumas tábuas podres no casco, o que pode atrapalhar a viagem e até colocar nossa vida em risco. Assumindo que passamos da metade do trajeto, não conseguiremos voltar, atracar o barco no porto de onde partimos e fazer a substituição total daquilo que está em más condições na embarcação e, quem sabe, uma revisão geral dela – esse seria o cenário ideal, mas ele não é possível. Teremos que tentar substituir as tábuas durante a viagem, ou usar algum outro recurso para consertá-las, com o barco em alto mar, seguindo em direção ao nosso destino. Podemos ser bem-sucedidos na tarefa e chegar a salvo de viagem, mas isso não é garantido. A questão é que temos que fazer o possível dentro das condições a que estamos submetidos, e elas, como disse antes, não são as ideais.

Modifiquei a história do parágrafo acima dos escritos de Stanovich (2004; 2008) que, por sua vez, trabalhou com a metáfora do barco proposta originalmente pelo filósofo Otto Neurath. Para os propósitos desta tese, entendo que a metáfora é uma maneira de pensarmos sobre a revisão de pontos (cruciais ou não) de nossa rede de crenças. Não podemos simplesmente descartar nossos pontos de vista e reconstruí-los a partir do nada, tampouco somos capazes de desfazer a nossa rede de crenças a cada vez que uma ideia nova chega até ela. Precisamos trabalhar com o que temos, verificar cada proposição que chega até nós – elevando o grau de escrutínio proporcionalmente à importância da alegação – e, se necessário, reajustar pontos de nossa rede de crenças que considerávamos bem estabelecidos, da mesma maneira que o navegador precisa ajustar uma tábua que está em uma posição importante do barco. Mas, para que possamos monitorar a nossa rede de crenças, é necessário primeiro que saibamos como fazer isso, ou seja, que sejamos capazes de refletir sobre as maneiras mais adequadas de investigá-las. Devemos, consequentemente, usar de metacognição para monitorar nossas estratégias cognitivas de avaliação de razões.

Um dos primeiros passos é conseguirmos adaptar o tipo de pensamento à situação, questão, decisão ou problema adequados a ele. Escrevi no Capítulo 3 que não precisamos utilizar de deliberação – Sistema 2 – em todos os momentos de nosso cotidiano, e se o fizéssemos ficaríamos paralisados devido à enorme carga cognitiva que adviria do desgaste de termos que nos concentrar até para a realização de tarefas simples, que poderíamos executar adequadamente sem muito esforço mental.

Russell (2010, p. 27) afirma que “nossas relações com aqueles que amamos podem ser entregues, com segurança, ao instinto; e nossa relação com aqueles que odiamos deve ser posta sob o domínio da razão”. O que Russell quer dizer, se eu o interpreto bem, é que podemos deixar que as operações de nosso Sistema 1 medeiem as relações que temos com as pessoas de quem gostamos, porque provavelmente não as trataremos mal e nem lhes causaremos problemas. No caso das relações com as pessoas que odiamos, Russell recomenda a aplicação de operações do Sistema 2, já que precisamos monitorar nossos impulsos e deliberar sobre a razoabilidade daquilo que dizemos ou fazemos a essas pessoas.

O raciocínio de Russell não pode ser aceito sem ressalvas, obviamente. Se entregarmos nossa relação com aqueles que amamos completamente ao Sistema 1, corremos o risco de favorecer familiares em situações em que isso é normalmente impróprio (como no caso de práticas de nepotismo em cargos públicos), talvez defendê-los exageradamente em circunstâncias indevidas, e assim por diante. Mas Russell acerta em um ponto fundamental: não é necessário deliberar sobre tudo, e sob certas circunstâncias, especialmente situações que nos são bastante familiares ou cotidianas, ou quando tratamos de tópicos pouco complexos sobre os quais temos bastante conhecimento, o Sistema 1 pode ser normalmente utilizado. Para as demais, precisamos do Sistema 2.

Creio que a metáfora mais adequada para o uso de metacognição no exercício do pensamento crítico é a apresentada por Greene (2013). Esse autor compara nossos modos de pensar às configurações automática e manual de uma câmera fotográfica, e nós somos o fotógrafo que, ao utilizar a câmera, precisa decidir qual configuração serve a nossos propósitos. Enquanto o modo automático de ajuste da câmera é útil para tirar boas fotos em situações normais de luminosidade e em cenários que já conhecemos bem, alguns acertos manuais devem ser realizados se quisermos tirar uma boa foto em condições ambientais não tão adequadas. A tarefa dos fotógrafos aqui – e dos estudantes e professores nas escolas e universidades interessados no exercício do pensamento crítico – é identificar em quais circunstâncias os ajustes automáticos (Sistema 1) são suficientes, e quando um esforço maior e consciente de ajuste (Sistema 2 / pensamento crítico) se faz necessário.

Ao tratar da metacognição, Greene (2013, p. 294) nos lembra que a chave para usarmos nossos cérebros sabiamente é “combinar o tipo certo de pensamento com o tipo certo de problema”. Esse não é o único passo, certamente, mas pode ser o primeiro em atividades metacognitivas.

No capítulo anterior, discuti o pensamento moral do personagem Huckleberry Finn, de Mark Twain, e concluí que a utilização de operações cognitivas associadas ao Sistema 2 não é um sinônimo de pensar criticamente. Podemos deliberar mal sobre um assunto, pensar sobre decisões que temos que tomar, e ainda assim escolher um curso de ação mal fundamentado, podemos inventar justificativas para nossas crenças pouco razoáveis, confabular explicações para defendê-las, e assim por diante. Por isso, é importante que possamos monitorar não apenas as intuições e impulsos do Sistema 1, mas os mecanismos de avaliação de razões associados ao Sistema 2. Como afirma Lipman (2008, p. 179), “pensar sobre o pensar” não significa que estejamos pensando criticamente sobre nossos pensamentos. Precisamos pensar bem sobre como pensamos.

Apresentei anteriormente alguns princípios e estratégias que podem provocar o exercício da metacognição, como a derrotabilidade, o falibilismo epistêmico, a preocupação com a verdade e a atenção à objetividade. Na prática, abraçar esses princípios significa incorporar ao nosso repertório de investigação e tomada de decisões cotidianas uma série de questões sobre como avaliamos evidências, sobre a adequabilidade de nossos critérios para isso, sobre o modo com que procuramos informações sobre um determinado tópico, e até sobre a razoabilidade de nossos desejos e objetivos. Ao fazermos isso, estaremos aplicando o pensamento crítico sobre o nosso Sistema 2, ou seja, estaremos pensando criticamente sobre nossa própria maneira de pensar.

Neste capítulo, discuti algumas estratégias e princípios que aumentam a nossa chance de gerenciar a força de vieses cognitivos para, assim, exercer o pensamento crítico de maneira mais adequada. Podemos, através de esforço consciente e atenção, integrar todas essas estratégias e princípios a nossas maneiras de pensar, investigar e tomar decisões. Esse é, na verdade, o princípio subjacente à Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) (BECK, 2013), e à Terapia Racional Emotiva Comportamental (TREC) (ELLIS; ELLIS, 2011), duas psicoterapias bastante influentes nas últimas décadas, e que trabalham com a assunção de que as pessoas podem aprender a avaliar o seu pensamento de maneira mais realista, ou seja, que são capazes de aprender a se engajar em metacognição. Essas duas psicoterapias, por sua vez, se inspiram em escolas de pensamento como o estoicismo, que também sustenta que temos a

capacidade de gerenciar o que pensamos sobre nós mesmos e o mundo, e podemos aperfeiçoar essa capacidade à medida que a praticamos e refletimos sobre ela (PIGLIUCCI, 2017).

Apesar de que é possível que cada um de nós incorpore, por conta própria, princípios e estratégias mentais adequadas para maximizar a possibilidade de exercer o pensamento crítico, tendemos a fortalecer essas capacidades se houver algum tipo de sistematização, algum incentivo ou um ambiente social que nos motive a pensar criticamente com frequência. No caso de psicoterapias como a TCC e a TREC, normalmente os processos de análise de pensamento e a sua aplicação cuidadosa às questões dos pacientes são incentivados e conduzidos pelos psicólogos encarregados da sessão. Assim, é interessante considerar como tais incentivos para avaliar os próprios pensamentos e os pensamentos sobre as coisas do mudo podem chegar à população em geral. Creio que a melhor maneira de isso acontecer é através das instituições educacionais, desde o Ensino Básico até o Superior.

No próximo capítulo, o último desta tese, discuto como o pensamento crítico pode ser fomentado em escolas e universidades. Meu foco principal é em estratégias que sejam potenciais incentivadoras do exercício do pensamento crítico da maneira mais ampla possível, ou seja, que contemplem as capacidades de análise de razões, o espírito crítico, a metacognição e o gerenciamento de vieses. Para que possamos pensar melhor e tomar melhores decisões, o mais adequado é que estejamos em um ambiente que instigue nossas capacidades intelectuais, especialmente através da interação com outras pessoas. Esse será o princípio que guiará a maior parte do capítulo a seguir.

5 O desenvolvimento do pensamento crítico em instituições educacionais

Entre os vários obstáculos que existem ao exercício do pensamento crítico e ao seu fomento em escolas e universidades, um foi destacado ao longo desta tese: nossas tendências cognitivas naturais não nos predispõem a pensar criticamente, especialmente porque processos rápidos de pensamento frequentemente se sobrepõem à deliberação, e porque vieses cognitivos inconscientes normalmente nos dão a sensação de que estamos certos em nossas crenças e decisões, embora isso não seja necessariamente o caso. Além disso, nossas capacidades introspectivas são limitadas, e por isso temos dificuldades em perceber quando estamos em uma máquina de experiência de pensamento crítico.

“Eu gostaria de ter alguma mensagem positiva para passar a vocês. Não tenho. Podem ser duas mensagens negativas?” A frase, atribuída ao ator Woody Allen em um de seus espetáculos de comédia (CHABRIS; SIMONS, 2011, p. 288) pode parecer compatível com o que tenho discutido neste trabalho. Neste caso, as duas mensagens negativas são a nossa dificuldade em pensar criticamente em uma série de circunstâncias, e o quão complicado é para nós reconhecer que isso ocorre.

No capítulo anterior, tratei de algumas estratégias e princípios que podem ser abraçados por cada um de nós, individualmente, para que possamos estar em melhores condições para avaliar razões de maneira apropriada e, consequentemente, pensarmos criticamente. É possível que façamos um esforço consciente para incorporar essas estratégias e princípios mas, como argumentei anteriormente, isso é mais provável se tivermos a ajuda de outras pessoas, ou seja, se estivermos pensando dentro de um grupo social, uma comunidade de investigação. Tendemos a pensar melhor quando pensamos em conjunto, seja para aprimorar nossas habilidades de avaliação de razões, ou para gerenciar nossos vieses cognitivos.

Quais seriam, então, os ambientes mais adequados para que possamos refinar nossas capacidades de pensamento e gerenciar nossos vieses dentro de comunidades de investigação? Entendo que os melhores candidatos são as instituições educacionais, desde o Ensino Básico até o Superior. Escolas e universidades são ambientes, pelo menos em princípio, em que o conhecimento sobre o pensamento crítico e sobre os empecilhos cognitivos para seu exercício pode ser sistematizado e, a partir disso, um ambiente favorável ao desenvolvimento de habilidades e disposições do pensamento crítico pode ser implementado.

Com base nos empecilhos cognitivos para o pensamento crítico que apontei ao longo desta pesquisa, refletindo sobre estratégias e princípios que podem aumentar nossas chances de exercê-lo, e assumindo que essas estratégias e princípios são melhor incorporados quando pensamos com outras pessoas, proponho, no presente capítulo, algumas ações que podem ser

conduzidas por professores, ou então institucionalizadas por escolas e universidades para que as pessoas possam aprimorar suas capacidades de pensamento crítico e gerenciamento de vieses.

As estratégias e ações que serão apresentadas neste capítulo não estão divididas em “papel do professor” ou “papel da instituição” porque, em muitos casos, as duas partes precisam ser feitas. Por exemplo, entendo que é fundamental que as instituições educacionais cultivem uma linha filosófica e políticas pedagógicas voltadas para a promoção do pensamento crítico, e o mesmo objetivo deve ter o professor, quando reflete sobre a condução de suas aulas. Certamente, algumas estratégias dependem mais da iniciativa dos professores do que da instituição em si, como, por exemplo, o uso do que Tishman et al. (1999) chamam de uma “linguagem do pensar” na sala de aula. Por outro lado, determinadas ações precisam de endosso institucional, como a inserção de cursos de extensão, de disciplinas ou de temas relacionados ao pensamento crítico em currículos escolares e universitários.

À medida que eu apresentar e discutir possíveis ações de professores e instituições, o papel de cada um deles ficará claro. Sempre que possível, usarei exemplos de minha área de atuação, o ensino de Ciências e Biologia e, também, discutirei as implicações das ações e estratégias para o fomento do pensamento crítico em programas de formação de professores nessa área.

Antes de examinar possíveis ações e estratégias a serem implementadas em escolas e universidades para o fortalecimento das capacidades e disposições do pensamento crítico em seus docentes e estudantes, ressalto um pressuposto filosófico que deve permear a prática de quem quer que se preocupe com o pensamento crítico. Para que as pessoas possam ser mais conscienciosas com a qualidade de seus processos de raciocínio, deve haver um ambiente impregnado por uma cultura do pensar de tal modo que elas acabem internalizando procedimentos e atitudes normalmente associadas ao pensamento crítico, e os empreguem naturalmente, em seu cotidiano.

Uma boa definição sobre o que pode ser uma “cultura do pensar” é dada por Tishman et al. (1999), e creio que ela é adequada para os propósitos da presente tese. Esses autores escrevem:

Falar em uma cultura do pensar em sala de aula é fazer referência a um ambiente de sala de aula em que várias forças – linguagem, valores, expectativas e hábitos – funcionam em conjunto no sentido de expressar e reforçar o empreendimento do bom pensar. Em uma cultura do pensar em sala de aula, o espírito do bom pensar está em todo lugar. Tem-se a sensação de que “todo o mundo pensa” e de que todo o mundo – incluindo o professor – está se esforçando para ser consciencioso, inquisitivo e imaginativo; e de que este tipo de comportamento encontra forte apoio no ambiente de aprendizagem. (TISHMAN et al. 1999, p. 14).

Apesar de concordar com os termos de Tishman et al. (1999) sobre uma cultura do pensar, entendo que ela deva perpassar toda a instituição educacional, e não estar restrita às suas salas de aula, como destacam os autores. Isso significa que deve haver um compromisso genuíno de escolas e universidades na estruturação dos currículos de seus cursos, e com a constante promoção de cursos, eventos e quaisquer outras atividades que estejam relacionadas ao fomento do pensamento crítico. Tratarei disso ao longo do capítulo, mas por hora cito a manutenção de disciplinas da área das humanidades, como filosofia, ética e bioética nos currículos de qualquer curso de graduação como um exemplo básico de compromisso de uma universidade com o pensamento crítico, pois elas envolvem, em essência, a aplicação de raciocínio rigoroso a uma série de temas que dizem respeito a vida dos acadêmicos, dentro e fora da universidade.

As propostas a seguir representam a minha visão – e defesa – de uma cultura de pensamento crítico em escolas e universidades que leva em consideração as evidências de pesquisas da área da psicologia cognitiva a respeito de como os seres humanos raciocinam e tomam decisões e que, a partir delas, busca desenvolver e fortalecer habilidades e disposições associadas ao pensamento crítico, bem como ajudar as pessoas a gerenciar seus vieses de modo potencialmente mais efetivo. Como mencionei antes, não vou classificar as minhas proposições em aquelas que dependem mais da ação de professores ou das instituições, nem em “estratégias de ensino” ou “filosofia institucional”, por exemplo, pois entendo que isso estará suficientemente claro durante as discussões sobre cada uma delas. Assim, para que a cultura de pensamento se instaure ou se fortaleça em escolas e universidades, proponho que as instituições educacionais e/ou educadores devem: