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A primeira sugestão parece ser a mais óbvia, considerando as discussões que desenvolvi neste trabalho a respeito de nossas inclinações naturais quando raciocinamos ou tomamos decisões. Se estamos sujeitos a uma série de vieses cognitivos, e normalmente não percebemos a sua ação e o quanto eles interferem em nossos julgamentos, deveríamos então aprender sobre eles e sobre as circunstâncias em que estamos mais propensos a nos sujeitarmos a eles, de modo a prestarmos mais atenção a como pensamos e, dentro de nossas possibilidades, fazer um esforço consciente para minimizar os efeitos dos vieses, quando eles forem prejudiciais ao exercício adequado do pensamento crítico.

Integrar o estudo dos vieses cognitivos aos currículos de cursos superiores é uma sugestão que tem sido feita por alguns autores, como Pinker (2018, p. 379), para que as

instituições possam dar suporte ao aprimoramento das habilidades de pensamento de seus estudantes. Considerando que é difícil para nós pensar sobre os vieses e criar maneiras de gerenciá-los por conta própria, então programas ou estratégias elaborados de maneira sistemática e aplicados durante o período de tempo correspondente a um curso de graduação podem nos ajudar não somente a reconhecer certas tendências cognitivas, mas também a prestar mais atenção a elas em nossos próprios processos de pensamento.

Nisbett (2015, p. 277) entende que o impacto de vieses cognitivos pode ser reduzido e os seus danos limitados se tivermos conhecimento dessas tendências e das maneiras a combatê- las ou gerenciá-las. Essa ideia, no entanto, é mais complexa do que parece à primeira vista. Lilienfeld et al. (2009), por exemplo, ao revisar a literatura sobre o gerenciamento de vieses, concluem que as evidências para a eficácia de estratégias de “desenviesamento” (debiasing) são divergentes, o que significa que, na melhor das hipóteses, esse processo não ocorre de maneira fácil. Informar as pessoas sobre as tendências cognitivas humanas não as torna necessariamente mais atentas a seus processos de pensamento, e pode dar a elas a sensação de que elas estão imunes aos vieses justamente pelo fato de conhecê-los.

Uma das dificuldades em fazer as pessoas atentas aos seus próprios vieses está no fato de que tendemos a ter mais facilidade em identificar essas inclinações cognitivas em outras pessoas do que em nós mesmos. Essa condição é denominada por Pronin et al. (2002; 2004) como o “viés do ponto cego”. A origem desse viés, segundo Pronin et al. (2004) pode estar em nosso “realismo ingênuo” ao pensar sobre as coisas do mundo, ou seja, na sensação que temos de que nossas crenças sobre o mundo correspondem exatamente ao seu real estado, e assim as pessoas razoáveis deveriam compartilhar dessas crenças conosco. Quando existem pessoas que pensam de maneira diferente, de acordo com nosso “realismo ingênuo”, isso deve ocorrer porque elas são mal informadas ou então altamente influenciadas pelos vieses (mas isso não ocorre conosco).

Lilienfeld et al. (2009) sugerem que devemos ter cautela ao tentar generalizar os resultados de trabalhos sobre a eficácia de estratégias de gerenciamento de vieses baseadas no acesso à informação sobre eles, considerando que essas pesquisas ainda são incipientes, em pequeno número, e seus resultados ainda não permitem que possamos identificar um consenso entre os especialistas no tema. Nas pesquisas de Pronin et al. (2002; 2004), por exemplo, o conhecimento dos vieses não tornou as pessoas mais propensas a aceitar a influência deles sobre os seus próprios processos de pensamento. Ao contrário, os participantes que receberam instrução sobre os vieses acabaram se sentindo mais confiantes de que o conhecimento criava neles uma espécie de invulnerabilidade a essas inclinações cognitivas, mas outras pessoas continuavam vítimas delas. De modo distinto, Pronin e Kugler (2007) verificaram que

estudantes que haviam lido sobre o impacto de vieses cognitivos e os limites da introspecção humana na tomada de decisão e processos de raciocínio não apresentaram o viés do ponto cego, isto é, demonstraram estar cientes de que eles próprios poderiam ser sujeitos a tais inclinações cognitivas.

De qualquer maneira, educar as pessoas sobre a existência dos vieses provavelmente não é uma panaceia contra nossas dificuldades de exercer o pensamento crítico. No entanto, creio que é importante investir algum tempo durante cursos de graduação – especialmente as licenciaturas – para que os estudantes possam pensar sobre os nossos modos de raciocinar e tomar decisões e, com isso, instilar alguma dúvida sobre a nossa real capacidade de enxergar e pensar sobre o mundo de modo perfeito, tal como ele é.

Como consequência, talvez possamos ajudar os estudantes e professores a abraçarem a humildade epistêmica e a ver as pessoas que divergem de seus pontos de vista não como ignorantes ou mal-intencionadas, mas como seres humanos que, como qualquer outro, estão sujeitos a ação de uma série de processos mentais que não estão exatamente sob seu controle e consciência. E, também, por entenderem que vieses atingem todas as pessoas, em maior ou menor grau, talvez os estudantes e professores possam desenvolver um grau de abertura maior para o diálogo, para o aprimoramento de ideias, e para a busca de entendimento com aqueles que pensam de modo divergente.

Assumo que a crença na infalibilidade de nossos sentidos, percepções e pontos de vista (o “realismo ingênuo”) é um dos gatilhos para muitos atos de intolerância, e também um fator que contribui bastante para a falta de diálogo e a cegueira ideológica que temos presenciado na atualidade. Calhoun (2004) afirma, corretamente, que o fanatismo incorpora uma dimensão epistêmica, que é a da autoridade incontestável da opinião própria, ou seja, da infalibilidade das crenças pessoais. Se tenho a sensação de que minhas crenças são absolutamente corretas, e que os mecanismos de raciocínio que me fizeram chegar a elas são absolutamente confiáveis, por que eu deveria dialogar, ou tentar aprender com outras pessoas?

Tenho pensado muito na importância de se tentar ajudar as pessoas a terem uma percepção mais realista a respeito da falibilidade de seus processos de pensamento e do impacto dos vieses neles. Recentemente, quando iniciei a elaboração deste capitulo, me deparei com manifestantes em uma rua da cidade em que resido, e observei que clamavam por uma “intervenção militar” no Brasil. Não vou entrar em detalhes sobre a (falta de) razoabilidade desse tipo de proposição, mas o que é importante para a presente discussão – e o que mais me chamou a atenção naquele dia – foi a absoluta confiança que os manifestantes tinham em suas ideias, a ponto de gritar, cantar, usar aparato de som e carregar cartazes na rua. Perguntei a mim mesmo se seria possível dialogar razoavelmente com uma pessoa que estivesse no meio do

protesto, de cartaz em punho e gritando palavras de ordem. Creio que não, já que o simples fato de ela estar nessa situação sugere um grande investimento emocional nessa questão e a certeza da infalibilidade (ou, pelo menos, da grande solidez) de seus pontos de vista. Tal qual as pessoas observadas por Festinger et al. (2011) esperando os extraterrestres, um manifestante assim provavelmente não estaria disposto a discutir sobre a adequabilidade de suas posições e nem a revisar as suas ideias.

Ao descrever esse episódio, não estou sugerindo que as pessoas não possam defender as suas ideias ou manifestar-se publicamente a favor delas, e nem que o dogmatismo epistêmico associado ao fanatismo esteja restrito a um determinado grupo de pessoas ou a uma posição ideológica. A questão principal, para meus propósitos aqui, é a de que a grande confiança que as pessoas depositam em suas crenças pode torná-las imunes a qualquer possibilidade de reavaliação de seus pontos de vista. Por isso, creio que as escolas e universidades deveriam com alguma urgência elaborar estratégias que tornassem as pessoas mais maleáveis à discussão e receptivas a argumentos, e o desnudamento de nossas fragilidades cognitivas pode ser uma das maneiras de se alcançar isso, pelo menos em certo grau.

Professores têm trabalhado com ilusões de ótica no ensino de física, em escolas de Ensino Fundamental e Médio, como modo de apresentar e desenvolver conceitos da disciplina e, também, para fomentar discussões a respeito das características e eventuais problemas de nosso sistema de visão (ver, por exemplo, ARAUJO et al., 2017; RADE et al., 2015). Além disso, estudar a respeito de ilusões de ótica e expor estudantes a elas podem também ser estratégias potencialmente úteis para desafiar o realismo ingênuo e os vieses cognitivos.

Uma pesquisa interessante a respeito do impacto do conhecimento da falibilidade sensorial humana na percepção de vieses foi conduzida por Kambara (2017), que recrutou 88 estudantes japoneses, dividiu-os em dois grupos, expôs um deles a figuras que produzem ilusões de ótica (como a de pontos que parecem se mover em uma tela colorida), e o outro, o grupo controle, a figuras semelhantes, mas que não têm o mesmo efeito sobre o nosso sistema visual, ou seja, que não formam ilusões de ótica. Posteriormente, a autora pediu aos participantes para ler um pequeno texto que iniciava com “psicólogos afirmam que as pessoas em geral mostram as tendências descritas abaixo”, e que apresentava e descrevia sete vieses cognitivos. Após a leitura do texto, os participantes deveriam responder a duas perguntas: “em que medida você acredita que você demonstra essa tendência?” e “em que medida você acredita que outros estudantes demonstram essa tendência?”. Os estudantes que haviam sido expostos às ilusões de ótica demonstraram uma propensão maior a reconhecer a ocorrência de vieses em si e nos outros, enquanto os participantes do grupo controle tiveram um desempenho diferente,

atribuindo uma menor inclinação para eles próprios serem vítimas de vieses, mas maior nas outras pessoas.

Penso que vieses cognitivos podem ser entendidos como tipos de ilusões mentais. Consideremos ilusões de ótica como as figuras de Müller-Lyer, compostas por retas idênticas com ângulos invertidos em suas extremidades. Como quaisquer outras ilusões, elas desafiam nosso sistema visual, e são normalmente interpretadas como retas de comprimentos diferentes se não tivermos meios de aferir o seu tamanho que não sejam nossos próprios olhos. De maneira semelhante, casos como o da bola e do bastão e o problema do casamento, que discuti no Capítulo 3, são espécies de ilusões mentais. Assim como as figuras de Müller-Lyer, parece que temos uma boa resposta intuitiva para esses problemas, mas se pensarmos neles com mais calma, provavelmente teremos que revisar nossos primeiros palpites.

Se ilusões de ótica podem ser utilizadas para desafiar os estudantes a refletir sobre a confiabilidade de suas percepções, creio que algo parecido possa ser feito com os vieses cognitivos e nossa inclinação para pensar de modo rápido em uma série de situações da vida cotidiana. Talvez a apresentação de problemas como alguns destacados no Capítulo 3 possa ser o passo inicial para uma discussão sobre como podemos nos enganar ao pensarmos rapidamente e sobre como tendemos a exibir certas características de raciocínio (o viés de confirmação em tarefas como o teste de Wason, por exemplo).

Em cursos de graduação e pós-graduação na área de ciências, uma maneira de expandir a discussão sobre nossas inclinações cognitivas é através de estudos de caso que envolvam situações em que a ação dos vieses pode ser razoavelmente bem estabelecida, como aconteceu com os primeiros pesquisadores a trabalhar com os fragmentos do Homem de Piltdown. Em última análise, toda a pesquisa e avanços científicos podem ser caracterizados como uma luta contra a força dos vieses cognitivos que conduzem os indivíduos a preferir determinadas conclusões em detrimento de outras. Por isso, é relevante para a formação dos estudantes que eles examinem como os vieses afetam o trabalho dos cientistas, e como a ciência lida com eles.

Estudos de caso sobre o impacto de vieses nas pesquisas científicas devem enfatizar que o trabalho científico não termina com a ação de um único indivíduo. Cientistas, como quaisquer outras pessoas, também são vítimas de vieses cognitivos, que podem turvar seus pontos de vista e fazer com que eles defendam suas conclusões prediletas por muito mais tempo do que deveriam quando elas se mostram frágeis. No entanto, é na colaboração coletiva, uma característica da ciência, que o impacto dos vieses tende a ser diluído.

Quando enfatizamos casos nos quais os resultados dos vieses tendem a ser observados no comportamento dos cientistas, não devemos, com isso, cair na tentação relativista ou niilista epistêmica de que não existem procedimentos mais e menos confiáveis para investigar, já que

todas as pessoas – incluindo os cientistas – podem se enganar. Diferentemente disso, aulas que utilizam casos da ciência devem fazê-lo, entendo, para mostrar o poder coletivo em reduzir o impacto de vieses individuais, e ressaltar a importância de processos como o de revisão por pares e da apresentação pública de razões para isso.

Estudos de caso podem contribuir para a discussão do efeito dos vieses cognitivos em outras áreas do conhecimento. Pensemos, por exemplo, em cursos de licenciatura, que preparam professores para a docência nas escolas de Ensino Fundamental e Médio: em algumas disciplinas desses cursos, estudantes e professores podem conversar a respeito das situações em que algumas de nossas inclinações cognitivas podem se manifestar em uma sala de aula, como quando o viés de confirmação faz com docentes estereotipem estudantes como “problemáticos” ao prestar mais atenção a seus comportamentos considerados indesejáveis do que nas situações em que esses estudantes dão contribuições positivas para as aulas.

Outro tema que pode ser trazido à atenção dos futuros professores é a chamada profecia autorrealizável, que inicia quando alguém tem uma falsa concepção a respeito de uma pessoa ou situação, e essa falsa concepção faz com que o sujeito passe a se comportar de acordo com ela, fazendo com que o que era falso no início se torne realidade (MERTON, 1948). Pensemos, novamente, em uma sala de aula: um professor ouve de um colega que um determinado estudante tem baixa capacidade intelectual. Com essa ideia em mente, o docente pensa que talvez não valha a pena investir no desenvolvimento do estudante em questão, limitando assim o tempo que passa com ele e os estímulos ao seu crescimento cognitivo. O resultado é que a profecia inicial se cumpre, e ao estudante é negada uma oportunidade de crescimento pessoal por conta de uma falsa noção que acaba se perpetuando, em parte por causa do viés de confirmação.

É importante destacar que as evidências para a existência da profecia autorrealizável nas salas de aula têm se mostrado contraditórias (ver, por exemplo, o capítulo 8 de GILOVICH; ROSS, 2015). Alguns autores têm encontrado indícios de que preconcepções mantidas por professores podem minar (ou melhorar) o desempenho de estudantes, enquanto outros estudos não detectaram esse fenômeno. De qualquer maneira, assumo que é importante trazer temas como esse para que futuros docentes possam refletir sobre eles, especialmente porque nos fazem pensar a respeito de quanto podemos ser influenciados por processos mentais que frequentemente fogem à nossa consciência.

Como as escolas e universidades podem trazer a discussão sobre os vieses cognitivos para seus espaços educativos? Apontei algumas possibilidades durante este subcapítulo, como a incorporação de estudos de caso, que podem ser úteis em diferentes disciplinas, em qualquer modalidade de ensino. No Ensino Superior, em especial, os insights da psicologia cognitiva a

respeito de como raciocinamos e tomamos decisões podem ser apresentados aos estudantes na forma de cursos de extensão, oficinas e palestras. Em cursos de formação de professores, tais ideias podem ser incorporadas a disciplinas relacionadas a psicologia da educação e teoria da aprendizagem, normalmente já existentes nos currículos.

Talvez o fato de estudantes e professores conhecerem os vieses seja por si só insuficiente para que eles sejam melhores em gerenciar essas tendências cognitivas, mas existem aspectos positivos que podem advir do entendimento dos vieses. Um deles é uma maior atenção a como buscamos e avaliamos razões, especialmente quando um tema que é caro a nós está envolvido. A assunção de que podemos ser vítimas de uma série de artefatos mentais que nos inclinam a proteger crenças – que, por algum motivo, preferimos – deveria fazer com que agíssemos de maneira semelhante à Houdini, aumentando o nível de exigência epistêmica para uma série de alegações, especialmente aquelas que têm maior importância para nós e outras pessoas.

Conhecer vieses também pode fazer com que sejamos mais propensos a participar de discussões razoáveis com aqueles que não compartilham de nossos pontos de vista. Se sabemos que qualquer pessoa está, a princípio, sujeita a ação dos vieses cognitivos, então talvez sejamos nós que mantenhamos alguns pontos de vista por causa do raciocínio motivado e do viés de confirmação, e não a pessoa que pensa de um modo diferente. Essa noção de falibilidade deveria nos tornar mais humildes epistemicamente e, por isso, mais dispostos a poder aprender com quem sustenta razões distintas das nossas.

O primeiro passo para estar atento aos efeitos dos vieses cognitivos e tentar gerenciá- los é conhecê-los. Isso, isoladamente, não tornará estudantes pensadores críticos ideais, mas pode fazer com que eles se preocupem mais com os seus processos de pensamento. Além disso, instituições educacionais podem ajudar as pessoas a gerenciar seus vieses fomentando o espírito crítico de seus estudantes (e também professores), incentivando-os a serem competentes em buscar e avaliar adequadamente as razões envolvidas nos mais diversos tópicos de seu interesse, dentro e fora da escola ou universidade.