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5.2 Integrar o pensamento crítico à rotina das instituições educacionais

5.2.5 Modelar os processos de raciocínio desejados

No início deste capítulo, argumentei que as escolas e universidades devem construir um ambiente do qual o exercício do pensamento crítico seja um pilar essencial. Deve-se, nas palavras de Tishman et al. (1999), criar e fortalecer uma cultura de pensamento nas instituições educacionais, para que estudantes e docentes entendam a importância de se preocupar com seus próprios processos de pensamento, e para que busquem aprimorá-los.

Tishman et al. (1999, p. 16) afirmam que um dos processos através dos quais se pode cultivar uma cultura de pensamento é o de exposição a modelos, que nesse caso seriam exemplos “de alguém ou alguma coisa que demonstra as práticas do bom pensar.” Modelos podem ser personagens históricos da ciência, como os investigadores que trabalharam na elucidação do caso do Homem de Piltdown; podem ser ilusionistas como Houdini, que foi capaz de gerenciar os seus próprios vieses em sua investigação sobre médiuns espiritualistas; podem ser personagens da literatura, como Sherlock Holmes (que, diferentemente, de seu criador, era um exímio pensador crítico). Nesta seção, no entanto, centrarei a discussão naquele que me parece ser o melhor modelo de pensamento para os estudantes: os seus professores.

Encontrar um modelo de pensamento crítico, ou ser um, não são tarefas fáceis. Mesmo sujeitos que manifestam uma grande habilidade de pensar criticamente – como Houdini – às vezes não são capazes de aplicar suas capacidades cognitivas para certos temas que também poderiam se alvo do pensamento crítico (no caso do ilusionista, a alegação de que existe algum tipo de vida depois desta). De qualquer maneira, concebo como um modelo de pensamento crítico alguém que se mostra preocupado com a qualidade de sua própria maneira de pensar e de seus pontos de vista, que reconhece a importância de se ter uma mente aberta a novas ideias, que concebe que suas crenças podem estar equivocadas, além de ser capaz de examinar a plausibilidade de argumentos de maneira apropriada, isto é, de dominar o que Siegel (1988) chama de componente de avaliação de razões, e que também demonstra uma inclinação para fazer uso dessas habilidades em diversas circunstâncias, isto é, que está imbuído do espírito crítico.

Um aspecto que me parece pouco observado nas instituições educacionais, e que é importante para refinar a maneira de docentes e estudantes pensarem, é o tipo de linguagem utilizada pelos educadores para se referir a seus próprios processos mentais, e aos dos estudantes. Tishman et al. (1999, p. 21) chamam de “linguagem do pensar” as “palavras em uma língua que se referem a processos e produtos mentais” ou “palavras que descrevem e evocam o pensar”. Ao demonstrar atenção à maneira com que usam termos associados ao pensar, os professores acabam explicitando aos estudantes a sua preocupação com a qualidade de seu pensamento.

Consideremos o termo “achar”, que muitas vezes é empregado como sinônimo de “pensar” ou “considerar”. Tishman et al. (1999, p. 22) escrevem que o uso de palavras como “achar” sugere que o sujeito não tem boas razões para aquilo que está afirmando, e assim faz uma inferência baseada em um suporte frágil e “evidências inconclusivas”. Obviamente, é possível “achar” uma série de coisas (depois de as estarmos procurando, ou então quando pensamos superficialmente nelas), mas quando tratamos de apresentar as nossas razões para

estudantes ou professores, o ideal é que tentemos, na medida de nossas possibilidades, evocar processos mentais mais complexos através de palavras e expressões que sejam compatíveis com a qualidade da fundamentação de nossos argumentos.

É importante, também, que professores e estudantes possam se habituar a palavras como “razões” e “evidências”, que as discutam durante as aulas, e que façam uso adequado e refletido delas durante a exposição de suas ideias. O mesmo pode ocorrer com o emprego de verbos que denotam processos de pensamento associados ao Sistema 2, como “examinar”, “considerar”, “inferir”, “evidenciar”, “sugerir”, “pressupor”, entre outros (ver TISHMAN et al., 1999, p. 26). O objetivo fundamental aqui é que, ao desenvolver uma linguagem do pensar adequada, como sugerem Tishman et al. (1999, p. 27), estudantes e professores possam organizar o seu pensamento e comunicá-lo de maneira mais precisa e articulada uns aos outros, além de reforçar os processos de pensamento que são desejáveis quando estudamos tópicos complexos e que demandam atenção e boa capacidade de deliberação.

Toulmin (2006, p. 145) chama a atenção para a necessidade do uso de “qualificadores” quando proporcionamos a força de nossas conclusões às razões que temos para elas. Qualificadores normalmente são advérbios que podem ser empregados para tornar nossas proposições mais compreensíveis e as conclusões mais razoáveis. Em uma aula de ciências, o professor pode afirmar que “geralmente, picadas de serpentes peçonhentas provocam danos graves à saúde da pessoa atacada”, e assim discutir as ocasiões nas quais esses répteis se defendem com picadas secas, sem a injeção de toxina, e que “muitas espécies de dinossauros provavelmente tinham penas”, para então examinar com os estudantes as evidências que convergem para essa conclusão, e o que ela pode nos dizer sobre o parentesco desses animais com as aves atuais.

Professores também podem ser bons modelos de pensamento quando explicitam aos estudantes os seus processos de raciocínio em voz alta. Isso pode ser feito quando os docentes apresentam um determinado tópico e analisam as razões pelas quais assumem uma determinada conclusão como mais plausível do que outra. Outra possibilidade é o docente explorar, junto com a turma, as variações de sua maneira de pensar sobre um assunto, utilizando para isso estratégias simples como a “antes pensava... agora penso”, proposta por Ritchhart et al. (2014): “antes eu pensava que animais não-humanos possuíam linguagem porque havia lido que..., mas agora penso que não temos boas razões para afirmar isso, considerando que...”. O princípio fundamental da atividade é que os estudantes possam acompanhar os movimentos de raciocínio de seus professores e observar como eles tornam públicas as suas razões e as utilizam para sustentar os seus pontos de vista.

Ao tornarem explícitos seus processos de raciocínio em sala de aula, assumo que os professores podem incorporar os princípios e estratégias que discuti ao longo do Capítulo 4, especialmente destacando a falibilidade de suas conclusões e as condições em que elas seriam tornadas mais frágeis (“posso reconsiderar meu ponto de vista se...”), e dando liberdade aos estudantes para que façam os seus próprios questionamentos sobre as razões apresentadas pelo docente, e para que analisem a plausibilidade delas.

Sato (2015) sustenta que a observação de modelos de pensamento pode promover o entendimento e a incorporação de habilidades e disposições do pensamento crítico nos estudantes de duas maneiras. A primeira delas é que os estudantes podem ver como é pensar criticamente ao acompanhar os seus professores apreciando razões e as analisando. A segunda maneira é que, a partir da observação, os estudantes possam incorporar aspectos positivos do comportamento de seus professores para ampliar o seu próprio repertório cognitivo. Sato (2015, p. 216) afirma que, ao aprender com exemplos, “as crianças começam a desenvolver a sua própria maneira de pensar criticamente”, e creio que isso possa ocorrer com estudantes de todas as faixas etárias e níveis de ensino.

Vejo professores, idealmente, como pessoas preocupadas com a qualidade de sua vida intelectual. Além disso, creio que os docentes devem esforçar-se para demonstrar aos estudantes o quão importante é refletir sobre como pensamos e examinar nossas maneiras de pensar com o intuito de aprimorá-las. Demo (2010, p. 37) sustenta que os estudantes “ – mais ou menos – saem à imagem e semelhança de seus professores: se estes são pesquisadores educadores, podemos esperar que os alunos também se tornem cidadãos que saibam pensar”. Se escolas e universidades tiverem profissionais que são bons modelos de pensamento crítico em seus quadros docentes, aumentaremos as possibilidades que os estudantes também saiam dessas instituições como pensadores críticos melhores do que quando ingressaram nelas.