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Tenho argumentado neste capítulo que o nosso sistema cognitivo default, na forma de uma série de vieses e tendências de pensamento, nos afasta naturalmente do exercício do pensamento crítico. Entendo que esse é o momento adequado para tratar de uma questão secundária na tese, mas importante quando tratamos de pensamento crítico, racionalidade, e de manifestações cognitivas associadas ao Sistema 1, como a intuição e o pensamento rápido e “automático”: as respostas do Sistema 1 são sempre inadequadas, e as do Sistema 2, boas, razoáveis?

Dependemos de processos de pensamento rápido em uma série de circunstâncias, e normalmente usamos os dois Sistemas de Kahneman (2012) em contextos distintos no cotidiano. Por isso, não é sensato entender os processos mentais associados ao Sistema 1 como deficientes ou prejudiciais. Normalmente, nossas percepções rápidas são adequadas para muitas situações do dia-a-dia, como reconhecer rostos, fazer operações matemáticas básicas, localizar objetos em nossa casa, achar nosso carro em um estacionamento vazio, atravessar uma rua pouco movimentada, ligar a televisão e sintonizar em nosso canal favorito, etc. Não precisamos do Sistema 2 para tarefas assim: se deliberássemos com calma sobre cada tarefa simples que executamos adequadamente com nosso Sistema 1, provavelmente não conseguiríamos realizar boa parte de nossas atividades diárias devido à drenagem de nossos recursos cognitivos.

“Carga cognitiva” é o termo que se aplica ao exaurimento gradual de nossos recursos mentais. À medida que aumentamos a nossa carga cognitiva – o que pode acontecer quando tentamos resolver dois problemas complexos, um logo após o outro, ou quando realizamos duas ou três atividades que demandam atenção ao mesmo tempo – passamos a ficar mais cansados, a nossa atenção e capacidade de autocontrole diminuem, e tendemos a tomar piores decisões (HAGGER et al., 2010; LEVITIN, 2015; MEAD et al., 2009; WATANABE; FUNAHASHI, 2014). Por isso, se podemos pensar rapidamente em contextos que nos são familiares, sobre temas e situações que conhecemos razoavelmente bem, ou sobre decisões que não trazem consequências importantes para nós e outras pessoas, usar o Sistema 1 é uma boa estratégia, pois nos poupa recursos cognitivos que podem ser necessários em outras circunstâncias, além de nos proporcionar resultados provavelmente satisfatórios.

Do mesmo modo que o Sistema 1, os vieses cognitivos também podem ter um papel relevante para nós. Pensemos no viés de confirmação, por exemplo: a maior parte de nossas crenças sobre o mundo, em geral, está correta (ou aproximadamente correta), e não temos problema em agir de acordo com elas. Tenho boas razões para pensar que há, na minha frente, um computador e alguns livros e artigos no momento em que digito esta sentença, e ajo conforme essa crença. Não considero seriamente a possibilidade de que a minha percepção do computador, dos livros e artigos seja uma ilusão, e sequer cogito pensar em explicações alternativas para o que estou vendo. Por isso, não vou atrás de razões que poderiam invalidar o resultado de minhas percepções – confio demais nelas para isso.

Interpretar informações à luz daquilo que já pensamos – outra faceta do viés de confirmação – também pode ser uma abordagem adequada quando raciocinamos sobre um determinado tópico. “Em média, quando você encontra um dado que contradiz o que você já conhece sobre o mundo, esse dado está, de fato, errado”, argumenta Sharot (2017, p. 25). Se, por exemplo, caminhamos por uma praça e vemos uma pessoa levitando apoiada apenas em uma bengala, assumimos que deve haver algum truque envolvido, pois o feito é incompatível com a nossa rede de crenças, e assim vamos buscar evidências de que há algo de errado com o que o sujeito está fazendo, e não de que ele seja capaz de flutuar (a não ser que acreditemos que as pessoas, de fato, podem levitar sem recorrer a qualquer truque). Então, buscar evidências de que nossas crenças estão corretas e interpretar informações de acordo com elas não resultam, necessariamente, em problemas na avaliação de razões e tomada de decisões.

Argumentei há pouco que precisamos igualmente dos processos cognitivos associados aos Sistema 1 e 2, embora eles normalmente sejam adequados em diferentes contextos. Em algumas ocasiões, no entanto, nossas intuições e pensamentos rápidos podem ser mais adequados do que nossas crenças mantidas de maneira deliberada, isto é, pelo Sistema 2. Uma ilustração desse fenômeno é discutida por Bennett (1974) ao escrever sobre episódios do livro “As aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain, publicado em 1884.

Em um dos momentos da jornada de Huckleberry (Huck) e de Jim – um escravo em fuga – pelo rio Mississipi, a dupla é abordada por autoridades que estão em busca de escravos foragidos. Huck sente que não deve entregar Jim, e engana os sujeitos que pedem por informações sobre a presença de escravos em sua balsa (Huck diz que é seu pai que está deitado dentro da balsa, e sugere que ele esteja contaminado com varíola, o que espanta os homens). No entanto, o menino fica confuso, pois pensa que é errado deixar escravos escaparem e ainda ajudá-los no processo:

Eles se foram e eu subi na balsa, me sentindo mau e vil, porque sabia muito bem que tinha feito uma coisa errada, e vi que não adiantava tentar aprender a fazer as coisas

certas. Aquele que não começa certo, quando é pequeno, não tem chance – quando a coisa aperta, não tem nada pra apoiar o sujeito e manter ele firme em seu caminho, e então ele acaba derrotado. Então pensei um minuto e falei pra mim mesmo, espera – imagina se eu tivesse feito a coisa certa e entregado Jim, eu ia me sentir melhor do que tô me sentindo agora? Não, digo, eu ia me sentir mal – ia me sentir igual como tô me sentindo agora. Então, digo eu, de que adianta aprender fazer a coisa certa, quando é complicado fazer a coisa certa e não custa nada fazer a coisa errada, e o resultado é o mesmo? Fiquei emperrado. Não consegui responder. Então pensei que não ia mais me incomodar com isso, mas daí por diante fazer sempre o que me parecia mais conveniente na hora. (TWAIN, 2014, p. 106-107).

Huck ajuda seu amigo Jim, mas passa a se considerar uma pessoa de vontade fraca, incapaz de agir conforme aquilo que aprendeu desde pequeno (“a escravidão é correta”, “é errado ajudar escravos a fugir de seus donos”). Comportando-se com base em seus instintos, Huck faz aquilo que deveria fazer. É desejável, portanto, que Huck se identifique com as emoções do seu Sistema 1 e rejeite a deliberação moral a que foi ensinado, conforme afirma Stanovich (2004, p. 74). O problema aqui, provavelmente, é que o raciocínio moral inadequado de Huck é um reflexo de sua aquisição irrefletida, acrítica.

O exemplo de Huckleberry Finn sugere que processos do Sistema 2 não são, necessariamente, melhores do que os do Sistema 1: eles podem ter sido formados a partir de má reflexão, ou de reflexão insuficiente, podem estar fechados à revisão, etc. Às vezes, intuições, emoções ou outros mecanismos cognitivos associados ao Sistema 1 se constituem em boas razões para ação, ou para a formação de uma crença. No entanto, estaremos mais seguros da adequabilidade das respostas de nossos processos mentais rápidos se pudermos avaliá-las adequadamente, usando para isso o pensamento crítico. Por isso, os resultados das operações cognitivas dos Sistemas 1 e 2 precisam ser constantemente monitorados por nós através do pensamento crítico. Precisamos, em outras palavras, nos acostumar a pensar sobre nossos próprios pensamentos e sobre nossas maneiras de pensar. Esse é um ponto ao qual voltarei no próximo capítulo.

Há outro detalhe importante que preciso esclarecer nesta etapa da pesquisa. Ao discutir vieses cognitivos e o predomínio do Sistema 1 sobre o Sistema 2 em algumas de nossas decisões e na formação e manutenção de nossas crenças e pontos de vista, não quero dizer que isso aconteça sempre. Obviamente, há uma série de instâncias nas quais refletimos sobre um assunto com base em boas evidências e avaliamos apropriadamente as razões envolvidas, e ajustamos nossos pontos de vista como consequência desse processo. Mas a deliberação pelo Sistema 2, como tenho argumentado nesta seção, não é o único caminho pelo qual chegamos às nossas crenças – provavelmente, o uso do Sistema 2 e do pensamento crítico sequer constituem o principal caminho, em muitos casos. No entanto, geralmente não sabemos disso: formamos, mantemos e

defendemos a nossas crenças como se elas fossem, via de regra, resultado de deliberação cuidadosa.

A ênfase desta tese, portanto, é nas implicações da existência desses vieses e do pensamento rápido ao exercício do pensamento crítico e, por extensão, à educação e à nossa vida individual e em sociedade. Enfatizei, neste capítulo, algumas das mais importantes e bem documentadas tendências cognitivas humanas, que nos tornam propensos a calibrar mal as nossas crenças (e a confiar demais nelas), a buscar elementos que as confirmem enquanto rejeitamos os que as desabonam, a direcionar nossa investigação sobre um tópico de acordo com aquilo que queremos acreditar dele, e a usar razões para defender nossos pontos de vista, e não para examiná-los.

Os vieses discutidos neste capítulo fazem com que nós mantenhamos maus hábitos de investigação e de pensamento em uma série de ocasiões. Esses vieses nos deixam inclinados a ter dificuldade em discutir diversos assuntos quando nos dão a sensação de que estamos certos, quando encontramos evidências para isso e também lançamos mão de razões para supostamente embasar (ou defender) nossas posições. Perdemos, muitas vezes, oportunidades genuínas de debater com pessoas que têm argumentos distintos dos nossos porque “sabemos” que elas estão erradas, e pressupomos que elas devem aprender conosco.

Vieses cognitivos também podem ter um papel decisivo no fechamento de nossas mentes a novas ideias ou a diferentes formas de pensar. Se temos confiança de que nosso conhecimento sobre o mundo está bem ajustado, qual a necessidade de aprender? Nossas tendências cognitivas, em muitos casos, nos mantêm presos a nossa rede de crenças, pois raramente somos capazes de desafiar pontos importantes dessa rede, o que poderia fazer com que víssemos certas questões a partir de outras perspectivas e nos dispuséssemos a reajustar os nossos pontos de vista, se necessário.

Creio que uma das mais perversas consequências dos vieses para nós está em um de seus efeitos indiretos verificados na exacerbação de nosso comportamento tribal e na polarização de nossos pontos de vista. A sensação de que estamos certos é, muitas vezes, reforçada pelo fato de que encontramos outras pessoas que concordam conosco sobre um certo tema. Em consequência, ao mesmo tempo em que reforçamos a nossa confiança em nossas percepções, estreitamos os laços com aqueles que pensam como nós. Greene (2013) sugere que as pessoas tendem a ver o mundo, sob várias circunstâncias, em uma dicotomia “nós versus eles”. Aqui, “nós” e “eles” podem representar qualquer categoria que imaginarmos: “nós, de esquerda, versus eles, de direita”, “nós, os defensores do aborto, versus eles, que são contrários à prática”; “nós, os defensores da moralidade, versus eles, que representam tudo o que abominamos no mundo”, etc. O fortalecimento de sentimentos tribais e de associação a um

determinado grupo é potencializado por nossos vieses, e até evidências de que estamos errados podem aumentar ainda mais nossas convicções e sentimentos de pertença. Consequentemente, temos um cenário de grande polarização de crenças, no qual indivíduos que se situam em campos opostos raramente estão dispostos a trocar ideias e, quando o fazem, normalmente é de modo pouco razoável.

Vieses cognitivos, por último, nos dão uma falsa ilusão de objetividade, e essa talvez seja a implicação mais importante deles para o exercício do pensamento crítico. Podemos avaliar mal razões, buscar argumentos favoráveis a nossos pontos de vista oriundos de nossas intuições, confabular explicações para amparar aquilo em que cremos e desenvolver uma blindagem contra evidências que enfraqueceriam nossas conclusões, e fazemos tudo isso, normalmente, de modo inconsciente. Podemos ter a sensação de que estamos pensando criticamente, dando o melhor de nós para examinar razões, e mesmo assim proceder de um modo muito distinto, enviesado. McIntyre (2018, p. 55) sintetiza o que argumentei aqui ao escrever que os vieses “não somente roubam de nós a capacidade de pensar claramente, mas inibem a percepção de quando não estamos fazendo isso. Sucumbir a um viés cognitivo pode se assemelhar muito a pensar”. Por isso, creio que muitas vezes não conseguimos distinguir se estamos, de fato, pensando criticamente, ou se estamos em uma espécie de “máquina de experiências de pensamento crítico”.