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5.2 Integrar o pensamento crítico à rotina das instituições educacionais

5.2.1 Relacionar os tópicos dos cursos e disciplinas ao pensamento crítico

Exercitar o pensamento crítico com frequência é uma das maneiras de fazer com que estudantes e docentes o incorporem mais naturalmente às suas vidas acadêmica e cotidiana. Em escolas e universidades, isso significa que as melhores oportunidades de pensar criticamente normalmente surgem quando se pode refletir com atenção sobre os próprios tópicos curriculares.

Na área das ciências biológicas, por exemplo, uma possibilidade é discutir a avaliação de evidências a favor ou contra uma determinada teoria ou conclusão cientifica. Obviamente, a complexidade da atividade deve ser adequada à turma em que ela é aplicada e aos objetivos pretendidos pelos professores, mas ela pode ser feita em praticamente qualquer nível de ensino, do fundamental ao superior.

Com estudantes de cursos de Ciências Biológicas no Ensino Superior, por exemplo, a avaliação de evidências pode ser iniciada com a discussão do tipo de razões/evidências que podem corroborar ou enfraquecer certas conclusões em diferentes áreas de estudo. Assim, podemos perguntar: Que tipo de evidências temos para sustentar a aceitação da teoria evolutiva como a explicação mais plausível para a diversidade da vida na Terra? Que tipo de evidências devemos ter para incluir um animal ainda não classificado em nossas listas taxonômicas? Que tipo de evidências precisamos para saber se uma determinada espécie, como o tigre-da- Tasmânia, foi de fato extinta na década de 1930, apesar de relatos de que esse animal ainda pode existir na Austrália? Ou, de um modo diferente: que tipo de evidência é suficiente para sustentar a conclusão de que esse animal não foi extinto?, e assim por diante.

Ao pensar a respeito do tipo de evidência necessária para sustentar uma determinada conclusão – e de sua qualidade – estamos solicitando aos estudantes que usem de capacidades de avaliação de razões, e que também sejam sensíveis aos diferentes contextos em que evidências podem ser razoáveis ou não em suporte a uma afirmação. Stanger-Hall et al. (2011),

por exemplo, sugerem um estudo de caso sobre o lendário pica-pau-de-bico-de-marfim (Campephilus principalis) como uma oportunidade para refletir sobre tópicos tão distintos quanto os métodos de pesquisa utilizados por cientistas (zoólogos, neste caso), a elaboração de hipóteses quando se pesquisa um tema específico, o peso de diferentes tipos de evidência, e a relação entre os resultados de pesquisas científicas e a elaboração de políticas públicas, entre outros.

O pica-pau-de-bico-de-marfim é uma espécie de ave nativa do sudeste dos Estados Unidos, que tem sido considerada como provavelmente extinta desde a década de 1940 devido à perda de hábitat e à caça. Os registros da presença de indivíduos dessa espécie em seu hábitat natural eram restritos a relatos de pessoas que diziam tê-los visto depois de 1940, mas em 2004 uma equipe de cientistas fez uma filmagem daquilo que pode ser um exemplar da espécie. O vídeo7 serviu como evidência de suporte para a conclusão que o pica-pau-de-bico-de-marfim

persiste na América do Norte, e um artigo elaborando este argumento foi publicado em uma conceituada revista científica no ano seguinte (FITZPATRICK et al., 2005).

Stanger-Hall et al. (2011), no entanto, afirmam que as evidências apresentadas por Fitzpatrick et al. (2005) foram insuficientes para convencer a maior parte da comunidade acadêmica de ornitólogos dos Estados Unidos (ver também COLLINSON, 2007; SIBLEY et al. 2007) porque existem explicações alternativas para a ave que aparece no vídeo, notadamente a de que ela pertence a uma outra espécie de pica-pau que ocorre na região. Tendo em mente esse cenário, Stanger-Hall et al. (2011) propõem discussões sobre uma série de fatores ligados ao caso, como o rigor das evidências apresentadas e a sua confiabilidade para determinar a existência da espécie no local e promover políticas de proteção a ela (o que de fato ocorreu, com o uso de mais de 10 milhões de dólares para compras de terra do hábitat supostamente ocupado pelo pica-pau-de-bico-de-marfim, recursos que foram realocados de programas de proteção de outras espécies).

O caso do pica-pau-de-bico-de-marfim é um exemplo ilustrativo de uma área potencialmente fértil, a do uso de histórias da ciência para discussão dos processos de pesquisa e métodos utilizados pelos cientistas, e para avaliação das evidências apresentadas por eles. Creio que isso pode ser feito em qualquer área do conhecimento, e os estudantes irão se beneficiar por estarem em contato direto com os conteúdos propostos em seus currículos, mas de uma maneira mais desafiadora e complexa do que seria a apresentação desses tópicos em aulas expositivas, por exemplo. Engajar-se ativamente na avaliação de casos requer que os

estudantes utilizem suas capacidades de pensamento crítico durante esse processo, e possam refiná-las à medida que trocam ideias com seus colegas e professores.

O pensamento crítico também pode ser introduzido aos conteúdos dos cursos das mais diversas áreas do conhecimento quando integramos à rotina das aulas algumas das estratégias e princípios que apresentei no capítulo anterior. Consideremos a derrotabilidade, uma ferramenta intelectual importante contra o viés de confirmação. Atuo em um curso de licenciatura na área de ciências, e normalmente discuto com os estudantes a respeito de questões epistêmicas relacionadas aos temas constantes em nossa grade curricular. Uma das perguntas que costumeiramente faço é como eles saberiam que estão errados sobre um determinado tópico, ou de que tipo de evidência ou razão eles precisariam para reconsiderar o seu ponto de vista sobre esse tema (evolução, por exemplo, assumindo que os estudantes aceitem a teoria evolutiva como verdadeira). Em geral, poucos estudantes são capazes de responder à questão, e a maioria deles afirma que sequer pensou sobre isso durante o curso.

Imaginemos, agora, um professor de ciências ou biologia discutindo com seus alunos sobre evolução. Normalmente, a aula se desenvolve a partir de evidências positivas de que a evolução tem ocorrido: registros fósseis, anatomia comparada, o código genético universal, a proximidade genética entre organismos semelhantes, a similaridade no desenvolvimento embrionário, semelhanças no repertório comportamental dos animais, etc. Mas, e como poderíamos saber se as ideias evolutivas estão erradas? E as conclusões que estudamos em outras áreas da ciência, como ecologia, comportamento animal, genética, botânica, etc., como poderíamos saber se elas precisam de reparos?

Considerar a derrotabilidade quando se estuda ciências (e qualquer outra área do conhecimento, de modo geral) significa exercer o pensamento crítico de maneira constante ao considerar hipóteses ou argumentos que normalmente não são apresentados nas aulas. No caso da evolução, uma maneira de realizar uma conversa sobre a derrotabilidade é elencar algumas das linhas de evidência tidas como pilares da teoria evolutiva e pensar em como elas poderiam se mostrar falsas, ou como poderíamos diminuir nossa confiança na plausibilidade delas.

Uma das linhas de evidência mais citadas para a teoria evolutiva vem da paleontologia. Através do estudo dos fósseis, entre outras conclusões, pesquisadores apontam para o fato de que algumas espécies são mais novas do que outras. Nós, humanos, nunca compartilhamos o mesmo espaço e tempo com um tiranossauro. Tampouco tivemos a oportunidade de observar trilobitas ou libélulas do tamanho de uma ave, pois todos eles pereceram antes do surgimento de nossa espécie. São essas as alegações que aprendemos quando estudamos a história da vida na Terra. Mas como podemos saber se elas deveriam ser revisadas? Refletir sobre questões como essa, para mim, é tão ou mais importante do que somente elencar evidências positivas

para teorias científicas, ou ter contato com elas sem considerar a sua complexidade e potencial falibilidade.

Antes de seguir, devo ressaltar que até o momento nenhum dos pilares que sustentam a teoria da evolução foi seriamente desestabilizado. Esse, aliás, é outro ponto importante para se destacar nas aulas de ciências. Não precisamos abraçar o relativismo epistêmico esperando que “algum dia certamente vai surgir um conjunto de evidências que irá derrubar a ideia X”, embora isso possa ocorrer, sem dúvida, e aí faremos bem em recalibrar a nossa maneira de pensar na questão. O fato de que ideias da ciência (e de outras áreas do conhecimento) são estabelecidas – ou razoavelmente estabelecidas – a partir de razões públicas, sujeitas a revisão e correção por outras pessoas significa que elas são falíveis, embora podem ser consideradas boas, pelo menos provisoriamente.

No ensino de ciências, uma outra maneira de unir o exercício do pensamento crítico aos tópicos de disciplinas no Ensino Básico e Superior é utilizando materiais destinados ao público geral, disponíveis na internet ou em veículos impressos, que discutam temas associados à prática ou a ideias científicas.

Escrevi que uma das razões pelas quais o pensamento crítico se configura como um objetivo educacional é que ele nos ajuda a separar o que é verdadeiro, plausível ou razoável do que é falso ou inconfiável. Isso é especialmente importante quando pensamos na proliferação de notícias falsas, distorcidas ou imprecisas pelas redes sociais, em especial aquelas relacionadas direta ou indiretamente à ciência. Algumas dessas notícias são potencialmente perigosas: no momento em que redijo esta pesquisa, o Ministério da Saúde brasileiro tem demonstrado preocupação com o decréscimo da cobertura vacinal contra doenças como pólio, sarampo, rubéola e caxumba, algumas delas praticamente erradicadas do nosso país. As razões apontadas para a redução no número de crianças imunizadas são variadas, e envolvem problemas históricos como falta de estrutura para aplicação das vacinas e descuido dos familiares em manter as doses em dia, e também elementos recentes, como a circulação de informações pouco confiáveis sobre as vacinas na internet, que faz com que pais evitem levar seus filhos para postos de saúde com medo de que as vacinas possam causar algum efeito colateral grave e permanente nas crianças, como o autismo (CAMBRICOLI; PALHARES, 2017; PEREIRA, 2018). Apesar de ser menos ruidoso do que nos Estados Unidos (ver HOWARD; REISS, 2018), o movimento antivacina parece estar ganhando força no Brasil e, como no caso norte-americano, se alimenta da disseminação de má informação, que é aceita de forma pouco crítica.

Investigar como os estudantes avaliam fontes ou informações na internet é uma área relativamente nova de pesquisa. No entanto, um trabalho publicado por McGrew et al. (2018) com estudantes de Ensino Básico e Superior em 12 estados dos Estados Unidos nos dá uma dimensão da dificuldade que os jovens têm em conseguir discernir a qualidade das razões ou evidências apresentadas em suporte a uma determinada asserção, e a confiabilidade de uma fonte de informação na internet.

McGrew et al. (2018) apresentaram uma série de problemas para estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental, do Ensino Médio e Ensino Superior cujo objetivo era verificar o quão proficientes eles se mostraram em investigar “quem está atrás da informação”, isto é, os possíveis conflitos de interesses e a expertise de fontes na internet, avaliar “qual é a evidência”, ou seja, a força e confiabilidade das razões e evidências apresentadas em um site, e refletir sobre “o que outras fontes dizem”, fazendo o cruzamento de fontes de informação e analisando a razoabilidade das alegações contidas nelas. O conjunto das tarefas realizadas pelos estudantes foi denominado de “Raciocínio cívico online”, e a sua proficiência foi categorizada em “iniciante”, “emergente” e “maestria” (beggining, emerging, maestry).

Os resultados da pesquisa sobre “Raciocínio cívico online” de McGrew et al. (2018) indicam que a maioria dos estudantes, em todos os níveis de ensino avaliados, apresentaram um desempenho que foi categorizado como “iniciante” para a execução das tarefas propostas. Em uma delas, por exemplo, os autores (2018, p. 177) apresentaram a estudantes de Ensino Médio uma postagem do Imgur, um site de compartilhamento de fotos, intitulada “As flores nucleares de Fukushima”. Na postagem, havia uma imagem de margaridas acompanhada da seguinte legenda: “Nada mais a dizer, isso é o que acontece quando as flores têm defeitos de nascimento de origem nuclear”. Após observarem e lerem a postagem, os estudantes foram questionados se a postagem fornece evidências fortes sobre as condições próximas à planta da usina nuclear de Fukushima, e instados a explicar o seu raciocínio.

Aproximadamente três quartos dos estudantes (73%) apresentados ao problema das “margaridas de Fukushima” tiveram respostas que indicavam uma proficiência “iniciante” em avaliar as evidências envolvidas na postagem. Um estudante argumentou que a foto apresentava fortes evidências dos efeitos da radiação porque “ela mostra como pequenas coisas podem ser muito afetadas, porque elas (as flores) parecem e crescem de um modo totalmente diferente do que deveria ser”. E, completou esse estudante, a foto também “sugere que um desastre assim poderia ocorrer com os humanos” (MCGREW et al., 2018, p. 178).

O fato de que a maior parte dos participantes do estudo de McGrew et al. (2018) aceitou literalmente alegações como a da “foto de Fukushima” (que, na verdade, não fora apresentada com qualquer indicação de onde foi obtida ou por quem) ou teve dificuldade em distinguir entre

fontes de informação mais ou menos confiáveis reforça a necessidade de considerarmos o desenvolvimento do pensamento crítico também através da análise daquilo que a internet e os veículos de mídia tradicionais nos mostram.

Existem outras possibilidades de explorar o material que pode se encontrado na internet sobre ciência. É comum lermos, por exemplo, que a ciência “provou”8 que uma determinada

afirmação é verdadeira. E, em muitos casos, este “provou” está amparado pelo resultado de uma única pesquisa recém-publicada, que ainda não passou pelo processo que ideias mais sólidas em ciência enfrentaram, e que discuti no Capítulo 4 quando tratei do caso do Homem de Piltdown. Não é razoável, tampouco, concluir que se pode “provar” alguma coisa com um estudo, mesmo que seja uma pesquisa de ótima qualidade e publicada em uma revista de grande impacto em sua área de conhecimento.

O estudo da linguagem em que as pesquisas e o trabalho científico são apresentados para o grande público é potencialmente importante para o fortalecimento do pensamento crítico. Se abraçarmos princípios como o falibilismo epistêmico e a derrotabilidade, nos sentiremos desconfortáveis em afirmar que uma determinada ideia está “provada”, pelo menos se entendermos isso como “estabelecida além de qualquer dúvida possível”. Podemos, por outro lado, ter “boas ou fortes evidências/razões” que “indicam” ou “sugerem” que uma determinada conclusão é correta ou razoável. A análise de textos populares sobre ciência, em qualquer nível de ensino, pode ser o gatilho para discussões epistêmicas mais profundas que, por sua vez, podem ajudar os estudantes a incorporar alguns princípios do pensamento crítico que discuti ao longo desta tese e a utilizá-los sempre que ponderarem sobre a apresentação da ciência na mídia. Para estudantes do Ensino Superior, o uso de textos populares relacionados à ciência pode ser complementado com a leitura dos artigos originais das pesquisas. Desse modo, é possível estabelecer comparações entre as afirmações dos autores do material de divulgação científica e as conclusões dos pesquisadores em seu próprio artigo. Raramente temos contato com ideias científicas diretamente de quem as elabora, e nem estamos acostumados com a linguagem usada pelos cientistas para apresentar os resultados de suas investigações a seus pares. A oportunidade de ler o artigo original de uma determinada pesquisa nos ajuda a entender como os próprios cientistas pensam sobre a força e o alcance de seus dados, a analisar a razoabilidade de suas conclusões, e a refletir a respeito de como elas são apresentadas ao público em geral através de textos ou notícias que podemos encontrar na internet.

8 Fui ao Google e fiz uma busca por “pesquisa prova que”, e obtive mais de 9 mil resultados. Para “ciência prova

que”, foram mais de 16 mil. Entre os resultados, aparecem afirmações como “ciência prova que a beleza está nos olhos de quem vê”, “ciência prova que o estado emocional influencia a produtividade”, “pesquisa prova que empatia é determinada pelo DNA”, “pesquisa prova que nos preocupamos mais com cães do que humanos”, etc.

Relacionar o pensamento crítico aos tópicos dos cursos e disciplinas de qualquer área do conhecimento significa ver em cada componente curricular uma oportunidade de desenvolver habilidades e disposições atitudinais relacionadas ao pensamento crítico. Ao costumeiramente aproveitar os assuntos de suas aulas para tratar do fomento das capacidades de pensamento dos estudantes, os professores podem contribuir significativamente para que o corpo discente da escola ou universidade incorpore o hábito de ir além da superfície nos conteúdos das disciplinas que estudam e, idealmente, em quaisquer outros temas que tiverem contato em suas vidas.

5.2.2 Ensinar, refinar e fortalecer habilidades e hábitos de investigação e argumentação