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Encerro este capítulo com uma breve discussão sobre uma razão de ordem filosófica e de longo alcance prático que justifica defender o fomento do pensamento crítico em instituições educacionais: o fato de que o exercício do pensamento crítico tem valor pelo enriquecimento que pode trazer à vida das pessoas. Esta razão pode ser entendida como uma espécie de justificativa unificadora das demais discutidas durante o capítulo. Bassham et al. (2010) explicitam-na:

Uma das verdades mais básicas da condição humana é que a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, acreditam naquilo que lhes é dito. Através da maior parte da história registrada, as pessoas aceitaram sem questionamento que a Terra era o centro do universo, que os demônios causam doenças, que a escravidão era justa, e que as mulheres são inferiores aos homens. O pensamento crítico, perseguido de maneira honesta e corajosa, pode ajudar a nos livrar de alegações não-examinadas e vieses advindos de nossa criação e de nossa sociedade. Ele nos faz dar um passo para trás dos costumes e ideologias predominantes de nossa cultura e perguntar: “Isto é o que me ensinaram, mas é verdade?” Em resumo, o pensamento crítico nos permite levar vidas auto diretivas e “examinadas”. Tal libertação pessoal é, como a própria palavra implica, o objetivo derradeiro de uma educação liberal. Quaisquer que sejam os outros benefícios que ela traz, uma educação liberal não pode ter recompensa maior. (BASSHAM et al. 2010, p. 10).

Usar das faculdades racionais para direcionar o curso de uma vida é uma das características definidoras da essência dos seres humanos. “Ser humano é raciocinar – sobretudo, empregar a razão prática para pensar sobre como viver”, entende Grayling (2011, p. 48). Se, como escreve De Botton (2012, p. 28) ao recordar Sócrates, as pessoas se preocupam em deliberar com cuidado para realizar atividades relativamente triviais, como confeccionar sapatos ou construir vasos de barro, por que tarefas indiscutivelmente mais complexas, como o gerenciamento de suas próprias vidas, deveriam ser executadas “sem qualquer reflexão contínua sobre as suas premissas e objetivos?”

“O que é a filosofia?”, pergunta Comte-Sponville (2001, p. 8-9), ao que este autor responde: “trata-se de pensar melhor para viver melhor”. O mesmo pode ser dito a respeito da importância do exercício do pensamento crítico. A defesa do cultivo do pensamento crítico como uma das principais metas educacionais tem, em seu âmago, a assunção filosófica que, ceteris paribus, levar uma vida refletida é geralmente melhor para os indivíduos e a sociedade do que não fazê-lo, e as consequências práticas disso são a adoção de crenças que tendem a ser mais razoáveis do que as aceitas quando se pensa superficialmente sobre elas, e a tomada de decisões que tendem a gerar melhores resultados do que aquelas feitas com pouca reflexão, tanto para os próprios pensadores críticos quanto para a sociedade.

O presente capítulo, bem como o anterior, foi estruturado a partir de discussões sobre como o pensamento crítico pode ser entendido, e sobre quais razões podem ser consideradas para torná- lo um componente central das atividades em escolas e universidades. No primeiro capítulo, tratei de apresentar e desenvolver uma definição de pensamento crítico que seja de interesse educacional, e neste capítulo discuti argumentos que justificam a defesa do cultivo do pensamento crítico como um importante objetivo da educação.

O desenvolvimento do conceito de pensamento crítico e as razões utilizadas para sua defesa como meta educacional têm sido tradicionalmente discutidos sem que se faça uma consideração explícita dos mecanismos de raciocínio e de tomada de decisão humanos – e, até aqui, o mesmo ocorreu com esta tese. A partir do próximo capítulo, examinarei elementos de pesquisas empíricas na área da psicologia cognitiva sobre o raciocínio e a tomada de decisão, e os incorporarei à discussão sobre o exercício do pensamento crítico. Essa análise irá expor algumas das fragilidades da assunção de que seres humanos tendem naturalmente a pensar criticamente, mas também abrirá espaço para que possamos deliberar sobre as oportunidades que podem ser abraçadas por educadores para que o pensamento crítico possa ser eficientemente cultivado entre estudantes e docentes. A importância de escolas e universidades para o desenvolvimento e fortalecimento de habilidades e disposições de pensamento crítico

será melhor entendida ao longo dos três capítulos a seguir. Se, como argumentarei em breve, temos certas inclinações cognitivas que algumas vezes nos afastam do exercício do pensamento crítico, é possível entender as instituições educacionais como artefatos culturais que podem ser úteis no gerenciamento delas.

3 Os desafios da psicologia cognitiva ao exercício do pensamento crítico

Quando falamos em promover o pensamento crítico na educação, partimos, evidentemente, do princípio de que isto seja possível, isto é, assumimos que as pessoas possam tornar-se pensadoras críticas ideais, ou aproximarem-se o máximo possível disso, e que as escolas e as universidades têm a dar contribuições decisivas neste processo. Esse cenário, no entanto, é mais difícil de ser atingido do que costumeiramente os livros sobre pensamento crítico fazem parecer e uma das dificuldades em tornar as pessoas pensadoras críticas ideais reside, fundamentalmente, no modo como elas naturalmente tendem a raciocinar e a tomar decisões.

O filósofo inglês Francis Bacon foi um dos primeiros teóricos a destacar as barreiras psicológicas à boa tomada de decisões e elaboração de juízos razoáveis (PIGLIUCCI, 2010; SHERMER, 2012). Em uma época na qual a ciência moderna dava os seus primeiros passos, em boa medida com o auxílio intelectual do próprio Bacon, este autor publicou o seu Novum Organum (1620/1997), obra em que, entre outros temas, fez especulações sobre a natureza do pensamento científico e humano e, segundo Paul e Elder (2002, p. 138), pode ser considerada um dos mais antigos textos sobre pensamento crítico. Bacon (1620/1997) descreveu quatro fontes de erro que contaminariam o pensamento científico – as quais denominou Ídolos da Mente –, e que podem também ser aplicadas ao pensamento humano de modo geral. O pensamento humano padeceria, nessa concepção, do que o autor chamou de Ídolos da Tribo, dos Ídolos do Mercado (ou do Foro), dos Ídolos da Caverna, e dos Ídolos do Teatro. Nas palavras de Bacon (1620/1997):

Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam. (BACON, 1620/1997, p. 39).

Os Ídolos da Tribo se referem às maneiras com que a mente humana pode naturalmente ser imperfeita em seus juízos, o que acontece quando as pessoas confiam que sua memória é sempre infalível, quando pensam que suas experiências sensoriais são a expressão absolutamente verdadeira do mundo exterior, quando generalizam com base em casos insuficientes (“beneficiários de programas de distribuição de renda são preguiçosos”), quando se agarram ao pensamento mágico, como a “tendência em acreditar em certas coisas somente porque gostaríamos que elas fossem verdadeiras” (PIGLIUCCI, 2010, p. 213), entre outras tantas inclinações cognitivas humanas. Sobre os Ídolos da Tribo, Bacon (1620/1997, p. 40)

adverte que “todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana, e não com o universo”, ou seja, tendemos a ver as coisas mais como nós somos do que propriamente como elas são.

Os Ídolos do Mercado – ou do Foro – são os impedimentos ao bom pensar derivados do nosso uso descuidado e impreciso da linguagem, como quando expressamos palavras e conceitos de maneira obscura ou inadequada. A sua denominação deriva do fato de que o “comércio e consórcio” entre os homens é possível devido ao uso da linguagem e ao intercâmbio de palavras. No entanto, como lembra Bacon (1620/1997, p. 41), palavras “impostas de maneira imprópria e inepta bloqueiam espantosamente o intelecto”. Ídolos do Mercado são o motivo das preocupações de Postman (1969) quando este autor discorre sobre o perigo dos artifícios verbais que podem esconder ideias mal fundamentadas e preconceituosas; em tempos recentes, no Brasil, esses ídolos podem ser observados quando refletimos sobre o emprego pouco cuidadoso de termos como “fascista” e “comunista”, entre outros, que permeiam o debate político nacional.

Os Ídolos da Caverna são ideias preconcebidas mantidas pelos indivíduos e fomentadas por sua própria personalidade, sua criação, experiências e ambiente cultural. Pigliucci (2010, p. 213) argumenta que preconceitos baseados na etnia/raça e no gênero das pessoas, e a obediência cega a autoridades políticas, científicas ou religiosas são exemplos de influência destes Ídolos sobre a mente humana. Bacon (1620/1997) explicita esta ideia:

Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois cada um – além das aberrações próprias da natureza humana em geral – tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranquilo; de tal forma que o espírito humano – tal como se acha disposto em cada um – é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. (BACON, 1620/1997, p. 40).

Os Ídolos do Teatro correspondem a ideologias ou sistemas de pensamento que são pouco confiáveis, mas que mesmo assim gozam de prestígio e são considerados profundos e genuínos e por muitas pessoas. Diferentemente do que ocorre com os demais Ídolos, esses não são entendidos por Bacon (1620/1997) como inatos ao intelecto humano e, por isso, podem ser superados de maneira mais fácil quando comparados aos outros.

As ideias de Bacon (1620/1997) sobre os Ídolos da Mente contribuíram para o chamado “grande debate sobre a racionalidade”, que trata da importância de processos emocionais e racionais sobre nosso aparato cognitivo. Além disso, elas anteciparam em mais de três séculos os resultados de pesquisas na área da psicologia cognitiva que indicam que os seres humanos

são altamente passíveis de serem influenciados por mecanismos semelhantes aos Ídolos, que hoje são tratados sob nomes como heurísticas e vieses cognitivos. Esses elementos são o foco principal deste capítulo, pois tendem a ter impacto no exercício do pensamento crítico ao afetar a maneira com que os sujeitos buscam, avaliam e são guiados por razões. Pensar criticamente, como discuti no primeiro capítulo desta pesquisa, implica ter a capacidade e a disposição para examinar ideias e cursos de ação da maneira mais apropriada possível e, por isso, a existência de vieses cognitivos, muitas vezes inconscientes, pode ser um empecilho para a formação de pontos de vista e a tomada de decisões razoáveis.

A discussão contemporânea do chamado “grande debate sobre a racionalidade” concede que humanos podem ser animais racionais e emocionais ao mesmo tempo. Damásio (2012), por exemplo, argumenta que para que as pessoas possam ter condições de interagir com outras e com o mundo, é necessário que seus mecanismos emocionais e racionais encontrem um certo equilíbrio. Atualmente, parte do debate sobre o papel da razão e da emoção em nossos processos de pensamento tem sido tratado através da análise de dois modos antagônicos de raciocínio e tomada de decisão, que constituem o chamado sistema de processamento dual de pensamento (HEATH, 2014; KAHNEMAN, 2012; STANOVICH, 2004; 2010). De um lado, temos operações mentais rápidas, automáticas, inconscientes, e que demandam baixo esforço cognitivo; de outro, apresentamos mecanismos cognitivos mais lentos, deliberativos, analíticos, que exigem maior esforço mental. Assim, ao invés de razão versus emoção, atualmente o âmago do “grande debate sobre a racionalidade” se encontra no antagonismo entre dois modos de pensar distintos (STANOVICH, 2004; 2010).

Autores envolvidos em pesquisas sobre tomada de decisão e raciocínio humanos, como Alter et al. (2007), Evans (2006; 2008), Evans e Stanovich (2013), Greene (2013), Haidt (2012), Kahneman (2012) e Stanovich (2004; 2010), têm sugerido que processos de pensamento rápido e intuitivo sobressaem-se sobre operações de deliberação, como o pensamento crítico, em muitas circunstâncias de nossas vidas. Assim, neste trabalho, seguindo Gazzaniga (2008, p. 128 e 272), considero os processos rápidos e intuitivos como o nosso modo de pensar default pois assumo, em concordância com os autores mencionados anteriormente, que as crenças e decisões que resultam de operações rápidas de pensamento frequentemente tendem a prevalecer, a não ser que sejam monitoradas através de processos deliberativos de pensamento que envolvam metacognição.

No presente capítulo, analiso os conceitos de Sistema 1 e Sistema 2 de pensamento propostos por Kahneman (2012) – constituintes do sistema de processamento dual – e algumas das heurísticas e vieses cognitivos normalmente associados a eles, bem como as suas implicações para o exercício do pensamento crítico. Em especial, destaco vieses associados a

problemas de calibragem epistêmica, o viés de confirmação e o raciocínio motivado. Também discuto os escritos de Haidt (2001; 2012) sobre o uso de razões para justificar crenças e cursos de ação, especialmente em juízos que envolvem temas morais; aqui, a ideia de que as pessoas são capazes de “mover-se apropriadamente de acordo com boas razões” – uma assunção do conceito de pensamento crítico aqui proposto – é desafiada, pois pesquisas recentes sugerem que seres humanos tendem a racionalizar sobre as suas crenças e decisões com mais frequência do que raciocinam sobre elas. Assim, estamos inclinados a usar razões para justificar pontos de vista que já tínhamos, ao invés de nos dispormos a avaliá-las para então formarmos uma posição sobre um determinado tema.

Tomados em conjunto, os estudos examinados neste capítulo trazem implicações importantes para a meta educacional do pensamento crítico por sugerirem que o uso do raciocínio deliberativo e das razões é frágil e bastante limitado nos seres humanos, o que acarreta assumir que o cultivo e desenvolvimento do pensamento crítico em escolas e universidades pode ser mais difícil e complexo do que boa parte das leituras relacionadas ao tema implicitamente parecem sugerir.

Apesar disso, defendo que o cultivo do pensamento crítico não é uma batalha perdida. De fato, ao assumir que as pessoas não são naturalmente pensadoras críticas, o que pretendo ressaltar é a importância das atividades educacionais como meio de cultivar habilidades e disposições de pensamento crítico, tanto em estudantes quanto nos docentes. Recordemos a afirmação de Pinker (2008, p. 494) de que a educação deveria ter como um de seus objetivos “compensar as falhas de nosso jeito instintivo de pensar o mundo físico e social”. Para isso, no entanto, devemos antes conhecer essas nossas formas habituais de pensar sobre o mundo e sobre as outras pessoas, e refletir sobre as circunstâncias em que elas podem atrapalhar nossos juízos e decisões e influenciar o exercício do pensamento crítico.