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O pensamento crítico, fundamentalmente, é uma atividade cuidadosa de avaliação e oferecimento de razões. Daí o destaque dado por Siegel (1988), e endossado nesta tese, da necessidade de mover-se de acordo com razões apropriadamente avaliadas em sua definição do que significa pensar criticamente. Quando exercemos o pensamento crítico, mobilizamos nossos melhores recursos cognitivos para analisar e estruturar ideias e decisões, e temos por objetivo, em geral, fazer o melhor ajuste epistêmico de nossas visões de mundo e verificar a adequabilidade ou razoabilidade de nossas posições sobre variados tópicos.

No entanto, o fato de que alguém está oferecendo razões para fundamentar seus pontos de vista, ou que está avaliando as razões oferecidas por outras pessoas não significa, necessariamente, que esta pessoa esteja pensamento criticamente. Como argumentei na seção anterior, alguns vieses nos tornam predispostos a buscar razões e a elaborar justificativas para crenças que temos, e a confiar bastante nelas e protegê-las contra pontos de vista que poderiam enfraquecê-las. Além disso, a avaliação de razões que fazemos pode ser bastante parcial, motivada pelo nosso desejo de que aquilo em que acreditamos seja verdade.

Nesta seção, discuto algumas das evidências apresentadas por Haidt (2001; 2012) sobre a tarefa de oferecer e avaliar razões, especialmente quando deliberamos sobre questões morais. Segundo esse autor, confabulamos com frequência durante nosso raciocínio moral, o que significa, em outras palavras, que usamos o Sistema 2 de pensamento para referendar as posições que formamos emocional e intuitivamente através do Sistema 1. Ao invés de avaliar nossas intuições, o que seria uma tarefa própria do pensamento crítico, temos dificuldade em monitorá-las, e por isso, em determinadas circunstâncias, acabamos abraçando-as e as justificando a posteriori.

Lembremos do caso do jornalista que considerava anões como pessoas que tinham um aspecto “errado”, discutido por Stanovich (2004, p. 144-146). A percepção do homem sobre anões provavelmente foi intuitiva ou, pelo menos, intuitiva nos termos de Heath (2014, p. 29), que define intuição como um pensamento rápido cuja origem não está disponível conscientemente para nós. O próprio jornalista em questão, John Richardson, assumia que a sua visão sobre anões era visceral, construída e fixada fortemente desde que ele era jovem. E ele apelava às razões basicamente para justificar seus sentimentos sobre pessoas anãs, sem demonstrar disposição para escrutinar criticamente suas percepções.

O caso de Richardson aparenta ser uma instância na qual o Sistema 2 de pensamento atua para referendar os resultados dos processos cognitivos do Sistema 1. Intuímos X, e então defendemos X. Recentemente, em uma entrevista a um programa de televisão, vi um famoso político brasileiro justificar o seu estilo reativo e suas respostas rápidas, pois se não o fizesse “não seria mais ele”, ou seja, ele perderia a sua identidade caso tivesse que pensar sobre suas posições. Uma leitura que podemos fazer de uma declaração dessas é a de que o homem é dirigido por seus pensamentos intuitivos e reações viscerais (Sistema 1), e depois tenta, de alguma maneira, aboná-los, oferecendo razões para isso. E ele, certamente, não é o único a fazer isso.

Há um conjunto de evidências empíricas, coligidas nas últimas duas décadas, que sugerem que nossas inclinações para endossar crenças e posições acontecem com alguma frequência quando pensamos sobre temas morais – e há indicativos de que isso também pode ocorrer quando deliberamos sobre outros tópicos. Considere a seguinte história hipotética, apresentada a participantes de uma pesquisa:

Julie e Mark são irmão e irmã. Eles estão viajando juntos na França nas férias de verão da universidade. Uma noite, eles estão sozinhos em uma cabana perto da praia. Eles decidem que seria interessante e divertido se eles tentassem fazer amor. No mínimo, seria uma experiência nova para cada um deles. Julie já estava tomando pílulas anticoncepcionais, mas Mark usa preservativo também, para ter segurança. Ambos gostam de ter feito amor, mas decidem não fazer novamente. Eles mantêm aquela noite como um segredo especial, o que faz com que eles se sintam ainda mais

próximos um do outro. O que você pensa sobre isso? Foi OK para eles terem feito amor? (Haidt, 2001, p. 814).

De acordo com Haidt (2001), a maior parte das pessoas que teve contato com esta história imediatamente afirma que a atitude dos irmãos foi errada, e depois começa a buscar razões para dar suporte a esta posição. A história foi elaborada para minimizar ou evitar problemas que geralmente seriam levantados em uma situação assim, como as possíveis doenças genéticas dos filhos de um casal de irmãos, a falta de consenso na relação, os potenciais danos emocionais aos dois, entre outros. Mesmo assim, os entrevistados respondem incialmente que a atitude de Julie e Mark foi errada porque seus filhos podiam ter problemas, e que os irmãos se machucarão (emocionalmente). Ao perceberem que estas objeções já são tratadas na própria história, os participantes “dizem algo como ‘Eu não sei, eu não consigo explicar, eu só sei que é errado’” (Haidt, 2001, p. 814).

Os participantes da pesquisa de Haidt (2001), e pessoas expostas a outros dilemas éticos (GREENE; HAIDT, 2002; HAIDT, 2012) apresentam uma maneira de pensar que parece priorizar a busca de justificativas que soem plausíveis para sustentar uma conclusão já estabelecida. Este processo é a antítese do pensamento crítico, já que normalmente assumiríamos que, dada uma situação inicial (como a dos irmãos Mark e Julie), um pensador crítico idealmente analisaria o problema, ponderaria sobre as ações ou razões implicadas nele, examinaria as suas próprias intuições sobre a questão, e então formaria o seu ponto de vista. Ao que parece, o Sistema 2 de pensamento não se mostra tão eficaz em monitorar o Sistema 1, ou, usando os termos de Haidt (2012), o as intuições parecem vir rapidamente, em primeiro lugar, e o raciocínio estratégico em segundo.

Haidt (2001; 2012) argumenta que o fator determinante para as atitudes morais das pessoas, em muitos casos, é um conjunto de reações emocionais às quais não temos acesso introspectivo, e o que se segue é uma tentativa de racionalizá-las. Por isso, começamos a confabular, a inventar razões para sustentar uma intuição derivada de nosso Sistema 1. A origem de nossas intuições morais (e de intuições ou sentimentos sobre qualquer outro assunto) é variada: o Sistema 1 pode ser abastecido por nossas experiências, por aquilo que ouvimos dos outros, por pressão social, etc. Por exemplo, um sujeito que cresceu em meio a pessoas racistas pode ter desenvolvido seu Sistema 1 afinado com as visões de seu grupo, e assim, se Haidt estiver certo, este Sistema seria o primeiro a entrar em ação quando o indivíduo em questão tivesse contato com pessoas de grupos diferentes do seu. O Sistema 2, por sua vez, confabularia a partir das intuições, criando mecanismos de defesa de crenças ou atitudes preconceituosas.

A proposição de Haidt (2001; 2012) sobre a preeminência de um tipo de cognição que envolve pensamentos mais rápidos, intuitivos e “automáticos” sobre o pensamento crítico

soma-se aos vieses que discuti acima como mais um fator a explicar, pelo menos parcialmente, a dificuldade que as pessoas sentem em reconsiderar as suas posições ou a sua maneira de pensar sobre um determinado assunto, especialmente no que diz respeito a temas emocionalmente carregados e importantes para elas. Pena de morte, aborto, eutanásia, questões políticas, teoria da evolução, aquecimento global, vacinas, o impeachment de um(a) presidente: tópicos como estes parecem fazer das pessoas, especialmente aquelas já fortemente associadas a um determinado ponto de vista, imunes à argumentação.

A metáfora criada por Haidt (2012) para explicar a relação entre nossas intuições e o raciocínio é engenhosa: somos uma espécie de ginete que está em cima de um elefante, tentando, ou imaginando que pode, controlá-lo. O elefante (e não um cavalo, ou qualquer outro animal) é nosso Sistema 1, e o ginete é o Sistema 2. Não conseguimos comandar adequadamente o elefante, embora tenhamos a impressão de que estamos em uma posição de domínio sobre ele. E, quando ele foge de nosso controle e faz algo que não deveria ter feito, partimos em sua defesa, racionalizando a posteriori: “sim, foi meu elefante que destruiu a sua horta, mas já estava na hora de você dar um jeito nela porque a sua produção está pequena”.

O ginete, na metáfora de Haidt (2012), não é necessariamente um elemento inútil e completamente incapaz no controle do elefante. Como discutirei nos próximos capítulos, existem maneiras de o ginete ter algum comando sobre o enorme animal, e as instituições educacionais podem ajudar nisso. Mas o ponto que destaco aqui – e que é o elemento central da metáfora – é a dificuldade que temos em monitorar os impulsos rápidos e intuitivos do Sistema 1, e a tendência a usarmos razões de um modo apologético, ou seja, em defesa daquilo que sentimos que está certo. Sobre o uso que fazemos das razões, na metáfora do elefante e do ginete, Haidt (2012) escreve:

(...) E, mais importante, o ginete age como um porta-voz do elefante, mesmo que ele não saiba necessariamente o que o elefante está realmente pensando. O ginete é habilidoso em fabricar explicações post hoc para qualquer coisa que o elefante tenha feito, e é bom em encontrar razões para justificar o que quer que o elefante queira fazer a seguir. A partir do momento em que os seres humanos desenvolveram a linguagem e começaram a usá-la para fofocar uns sobre os outros, tornou-se extremamente valioso para o elefante carregar nas costas um agente de relações públicas disponível em tempo integral. (HAIDT, 2012, p. 54).

As pesquisas feitas e revisadas por Haidt (2001; 2012) indicam que o raciocínio muitas vezes pode ser a consequência – e não o elemento causador – de nossas crenças, pelo menos no que diz respeito a temas morais, mas provavelmente isso se aplique a inúmeras outras áreas do conhecimento e de nossas vidas cotidianas. Talvez muitos de nós tenhamos a impressão de que nosso cérebro trabalha como um cientista ou um detetive idealizados, que vai atrás de todas as evidências e razões relevantes a um problema, analisa-as e depois forma uma posição.

Conforme o que examinei nesta seção, o mais plausível é pensar que nosso cérebro, pelo menos em muitas ocasiões, age como um advogado, pronto e disposto a interceder em favor de nossas intuições e preconcepções. E, como acontece com os vieses sobre os quais discorri na seção anterior, é provável que não estejamos conscientes de que agimos para salvaguardar nossas crenças quando imaginamos estar deliberando sobre elas.