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2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.4 ABORDAGEM ESTATÍSTICA DA TENACIDADE À FRATURA NA RTDF

2.4.2 Micromecanismo da fratura frágil transgranular por clivagem

Os aços estruturais de média e alta resistência podem vir a falhar por fratura frágil a baixas temperaturas, conforme discutido na seção anterior. Essas falhas podem ser do tipo

transgranular ou intergranular dependendo do modo pelo qual a trinca caminha na microestrutura. Embora a fratura intergranular possa ocorrer em alguns aços ferríticos devido, principalmente, aos fenômenos da sensitização (no caso dos inoxidáveis) e da fragilização ao revenido (no caso dos aços ferramenta), a maioria das fraturas frágeis que ocorre nos aços ferríticos se dá pelo modo transgranular (i.e., a propagação da trinca ocorre através dos grãos do material). O mecanismo de fratura frágil do tipo transgranular, comumente denominado de clivagem, ocorre preferencialmente ao longo de planos atômicos de baixo índice cristalográfico (índice de Miller) os quais, por serem orientados no sentido de menor coesão, possuem ligações atômicas mais fracas. Conforme já mencionado na seção anterior, a fratura transgranular dos aços estruturais ferríticos (e.g., aços microligados), cuja célula cristalina é do tipo cúbica de corpo de centrado (CCC), ocorre preferencialmente ao longo dos planos {100} [167,182]. Embora a clivagem tenha um caráter frágil, a sua ocorrência nos aços ferríticos está comumente associada ao desenvolvimento de uma deformação plástica local [183]. Esse mecanismo de falha é característico de metais que apresentam alguma barreira à movimentação das discordâncias (e.g., contornos de grão, partículas de segunda fase, inclusões, colônias de perlita, pacotes de bainita, etc.) e, no caso dos aços ferríticos, ocorre frequentemente a temperaturas inferiores à temperatura de transição de ductilidade nula (𝑅𝑇𝑁𝐷𝑇 – do inglês, Reference Temperature for Nil-Ductile Transition). Códigos de projeto, tal como a Seção III – Divisão 1 do código ASME [184], estabelecem precisamente os procedimentos necessários para a determinação da 𝑅𝑇𝑁𝐷𝑇 de aços ferríticos, tais como os utilizados em vasos de pressão. Detalhes desse procedimento são abordados nas próximas seções.

Ao contrário do que se imaginava, as primeiras observações metalográficas em aços de baixo carbono forneciam fortes evidências de que as microtrincas de Griffith responsáveis pela clivagem não se encontravam inicialmente presentes na microestrutura do aço, mas que deveriam ser desenvolvidas pelos processos de deformação [109,182,183].

Conforme descrito por Smith [183] e por Hahn [182], as primeiras suposições para a nucleação das microtrincas foram baseadas na hipótese da formação de um empilhamento de discordâncias, tal como descrito pelos modelos de Zenner em 1948 e de Stroh em 1954 (vide Figura 2 em Hahn [182]). Nesses modelos, os quais são fundamentados pelas teorias de discordâncias associadas à fratura frágil, assume-se que o processo de fratura é essencialmente governado por três etapas: deformação plástica, concentração de tensão cisalhante e formação de microtrincas. Nesse processo, a deformação plástica é responsável por promover o acúmulo de discordâncias (empilhamento) em obstáculos nos seus planos de

deslizamento, o que induz a uma concentração de tensão cisalhante na ponta do empilhamento. Essa concentração, por sua vez, faz com que tais discordâncias se coalesçam, o que favorece à nucleação de uma microtrinca em cunha a qual, na influência de um campo de tensões de natureza trativa e de elevada magnitude, invade os grãos adjacentes promovendo a fratura do material. Entretanto, esses estudos iniciais davam um enfoque especial somente no estágio inicial relacionado à questão do empilhamento da discordância, não levando em consideração as condições necessárias para a extensão das microtrincas e, consequentemente, para a fratura. Conforme relatado por Smith [183], estudos posteriores conduzidos de forma independente por Cottrell em 1958 e Petch em 1959 indicavam que o evento crítico para a formação da trinca por clivagem estava relacionado à etapa de propagação da trinca e não à etapa de nucleação prevista anteriormente por Stroh em 1954.

Embora a nucleação das microtrincas de Griffith estivesse relacionada ao empilhamento de discordâncias, investigações metalográficas mais acuradas realizadas posteriormente [185] demonstraram que as maiores microtrincas observadas nos grãos de ferrita estavam invariavelmente conectadas com uma partícula de carbeto clivada localizada em algum lugar no interior ou no contorno do grão. Assim, essas observações passaram a definir a etapa de ruptura do carboneto, definida entre a fase de formação do empilhamento e a da clivagem da ferrita, como um evento essencial para a ocorrência da fratura frágil.

Devido à natureza microestrutural dos aços ferríticos estar associada a diversos tipos de precipitados, inúmeros estudos [167,182,185–188] demonstraram que o micromecanismo da clivagem estava relacionado principalmente à fratura de inclusões não-metálicas (e.g., sulfetos, óxidos, silicatos e aluminatos) ou de partículas de segunda fase (e.g., carbetos), seguida pela propagação das microtrincas resultantes em direção à matriz ferrítica vizinha a essas partículas.

Com base nessas considerações, inúmeros estudos e observações experimentais propõem explicações para os mecanismos, a nível microestrutural, de iniciação de microtrincas precursoras do fenômeno da fratura por clivagem [157,182,183,185–189]. Partículas frágeis de segunda fase como os carbonetos, por exemplo, têm sido justificadas como sítios disparadores de microtrincas de Griffith [182,183,185]. Outros constituintes microestruturais, tais como as inclusões não metálicas de sulfeto de manganês, MnS, [186,187] e de nitreto de titânio, TiN, [188] também demonstraram atuar como fontes nucleadoras de microtrincas responsáveis por desencadear a fratura por clivagem em aços ferríticos. Esses sítios são assim definidos por obedecerem a abordagem termodinâmica da fratura proposta por Alan Arnold Griffith [11]. Entretanto, devido ao fato de os aços fundidos

à vacuo apresentarem um baixo teor de inclusões, a nucleação das microtrincas são mais propensas nas partículas de segunda fase as quais encontram-se distribuídas aleatoriamente tanto no interior quanto nos contornos de grão da matriz ferrítica.

Para exemplificar alguns estudos, baseando-se nos critérios da microtrinca de Griffith, McMahon e Cohen [185] evidenciaram que a fratura de carbonetos de ferro (Fe3C –

cementita), presentes nos contornos de grão em aços de baixo carbono, poderia atuar como um evento precursor da fratura por clivagem. Dentro desse contexto, a trinca nucleada na partícula frágil, devido a uma deformação plástica localizada na ferrita circunjacente, ao atravessar a partícula e, consequentemente, atingir interface carbeto/ferrita, pode se comportar como uma microtrinca de Griffith. Nesse caso, a propagação da microtrinca deve-se à incapacidade da ferrita em responder plasticamente à concentração de tensão ocasionada pela ponta da trinca desenvolvida no carbeto. Além disso, McMahon e Cohen [185] constataram que a probabilidade da formação de uma microtrinca aumentava em função da diminuição na temperatura de ensaio de tração e, também, em função do aumento na dimensão dos carbonetos presentes nos contornos de grão. No ano seguinte, Smith [183] propõe um modelo que quantifica as condições necessárias para a ocorrência da fratura por clivagem a partir de trincas nucleadas em carbonetos (e.g., plaquetas frágeis de cementita) localizadas nos contornos de grão. Smith [183] define que a clivagem é desencadeada quando a tensão aplicada, a qual leva em consideração o efeito combinado da concentração de tensão ocasionada pelo empilhamento de discordâncias nos carbonetos de contornos de grão, for igual ou superior à resistência da matriz ferrítica à propagação da trinca de clivagem iniciada a partir desses carbonetos.

Baseando-se no critério de fratura por clivagem proposto por Smith [183] e na solução elasto-plástica para a distribuição de tensões à frente da ponta da trinca proposto por Rice e colaboradores [124,140], Ritchie, Knott e Rice [180] definiram um modelo (comumente denominado de RKR) capaz de prever a fratura frágil em aços ferríticos. O critério de falha estabelecido nesse modelo afirma que a fratura ocorre quando a tensão principal máxima (𝜎𝑦𝑦) que atua sobre uma determinada distância característica, a qual encontra-se no interior da zona de processo de fratura frágil (ZPFF) e cuja medida é da ordem de apenas alguns grãos à frente da trinca, supera a tensão de fratura (𝜎𝑓𝑐) do material. Nesse caso, o processo de

clivagem ocorre quando o comprimento da microtrinca, nucleada na maioria das vezes a partir da fratura de um carbeto de contorno de grão, alcança um valor crítico equivalente a

aproximadamente dois diâmetros de grão, conforme Fig. 2.29 já apresentada na seção anterior.

Posteriormente, em 1978, Curry e Knott [189] propõe uma interpretação estatística para o início do processo de clivagem. Curry e Knott [189] ao avaliarem a influência de variáveis microestruturais (tamanho de grão ferrítico e diâmetro de carbetos esferoidizados) sobre a tensão da fratura por clivagem (𝜎𝑓𝑐) constataram que somente algumas partículas poderiam potencialmente nuclear a microtrinca de Griffith e, assim, desencadear o processo de fratura. Para relacionar o critério RKR às características microestruturais responsáveis por desencadear a fratura, Curry e Knott [189] postularam que a fratura se inicia a partir do maior carbeto observável (i.e., do carbeto de menor resistência). Nesse caso, Curry e Knott [189] verificaram que a clivagem ocorria quando a maior partícula de carbeto fraturada e favoravelmente orientada era submetida a uma tensão de tração (local) suficientemente elevada para satisfazer o balanço energético da propagação da trinca proposto por Griffith [11]. Nesse mesmo trabalho, Curry e Knott [189] evidenciaram haver uma forte dependência da tensão 𝜎𝑓𝑐 com o tamanho de grãos ferríticos de aços com baixos teores de carbono, sendo

ainda mais pronunciada em materiais de grãos altamente refinados.

Embora os resultados experimentais obtidos por Curry e Knott [189] comprovem a relação estabelecida entre o diâmetro do carbeto e a tensão de fratura, a suposição adotada por Curry e Knott [189] de que a fratura em princípio inicia-se sempre na partícula de maior dimensão é considerada razoável somente quando a distribuição das tensões à frente da descontinuidade geométrica é praticamente uniforme, como no caso de entalhes arredondados onde a concentração de tensão é menos intensa e mais uniforme. Dessa forma, para a fratura à frente de uma trinca aguda, em que o gradiente de tensão é substancial, os carbonetos mais finos e presentes em maior quantidade também podem participar no processo de clivagem. A fim de avaliar a influência da disputa entre os carbonetos de diferentes tamanhos dentro do campo de tensões desenvolvido por uma trinca aguda, inúmeros pesquisadores [157,165,167] reformularam o modelo RKR ao incorporarem o conceito estatístico do elo mais fraco. Para esse propósito, assume-se que a resistência à fratura dos carbetos da distribuição é inversamente proporcional ao seu tamanho. Desse modo, a tenacidade à fratura por clivagem é então estimada pela amostragem da zona plástica de forma que o critério de fratura da partícula “elegível” presente possa ser satisfeito [167].

Hahn [182], ao investigar a influência da microestrutura na tenacidade à fratura frágil, observa que a fratura frágil é governada pelo avanço da propagação rápida da microtrinca de

Griffith ao longo de partículas localizadas nos contornos de grão, tais como os carbonetos. Hahn [182] destaca ainda que tais carbonetos exercem forte influência no processo de fratura, pois favorecem a nucleação de trincas com raios de curvatura extremamente pequenos, conforme representação esquemática ilustrada na Figura 2.30 (a). Nesse mesmo trabalho, Hahn [182] ainda faz menção a outros micromecanismos da clivagem propostos por outros autores em que é possível notar a evolução dos modelos que serviram de base para a atual concepção, conforme ilustrado na Figura 2.30. Além disso, Hahn [182] demonstra que o empilhamento de discordâncias bem como o tamanho dos grãos de ferrita desempenham uma influência secundária sobre o mecanismo da clivagem.

Figura 2.30 – Representação esquemática: (a) processo de clivagem de um precipitado de contorno de grão; (b) processo de fratura de uma partícula induzida pela movimentação da discordância

Fonte: (a) Adaptado de Ruggieri e Dodds [141]; (b) Adaptado de Dieter [109] (a)

Observa-se na Figura 2.30 que o processo de fratura em aços ferríticos resulta frequentemente a partir da ocorrência sucessiva de três eventos elementares, sendo eles:

I) a fratura do carboneto de contorno de grão ocasionada pela tensão 𝜎𝑦𝑦 a qual é

amplificada pelo empilhamento de discordâncias gerado na deformação plástica da matriz ferrítica;

II) II) nucleação e rápida extensão da microtrinca de Griffith a partir da interface partícula/matriz até ao contorno de grão mais próximo através do plano de clivagem;

III) III) propagação da trinca para os demais grãos através do contorno de grão promovendo, dessa forma, a fratura instável. Para mais detalhes, recomenda-se consultar as referências [181,182].

Partículas esféricas e de pequenas dimensões (∅ < 2 𝜇𝑚) tendem a ser mais resistentes à fratura. Em contrapartida, a presença de constituintes frágeis nos contornos de grão, tal como filmes finos de cementita em aços de baixo carbono, tendem a favorecer a nucleação de microtrincas. Caso as partículas de segunda fase sejam facilmente cisalhadas pelas discordâncias, Fig. 2.30 (b), pode haver um deslizamento intenso nos planos de deslizamento ativos acompanhado de empilhamentos relativamente grandes de discordâncias. O resultado é o surgimento de elevadas tensões, o que facilita a nucleação das microtrincas e, consequentemente, um comportamento frágil. Contudo, dependendo das dimensões das partículas segunda fase e da sua resistência ao cisalhamento, a distância de deslizamento é significativamente reduzida e, consequentemente, o número de discordâncias que podem ser impedidas de se deslizarem em um empilhamento é também reduzido. Da mesma maneira, uma vez que as trincas estão formadas elas são forçadas a se curvar entre as partículas, aumentando a energia interfacial efetiva e, portanto, a resistência à fratura [109]. Dessa forma, a nucleação das microtrincas tende a ser fortemente influenciada não somente pela presença, mas principalmente pela natureza das partículas de segunda fase e das possíveis iclusões presente na matrix ferrítica.

Com base nessas considerações, a seção a seguir aborda o processo de clivagem inserido no contexto probabilístico.