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2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.4 ABORDAGEM ESTATÍSTICA DA TENACIDADE À FRATURA NA RTDF

2.4.1 Região de transição dúctil-frágil em aços ferríticos (RTDF)

Os aços ferríticos podem pertencer a três grandes grupos: aços carbono, aços de baixa liga e aços de alta liga. As microestruturas tipicamente encontradas nesses aços podem ser simplificadamente divididas em ferrítica, perlítica, bainítica e martensítica, aqui listadas em ordem decrescente da temperatura de transformação a partir da região austenítica. A microestrutura martensítica, salvo raras exceções, é comumente revenida com o intuito de diminuir a sua dureza excessiva e os níveis de tensões residuais e, ao mesmo, de promover uma elevação na sua tenacidade. Além disso, esse tratamento térmico diminui a distorção da estrutura cristalina tetragonal de corpo centrado (TCC) fazendo com que o seu arranajo estrutural se aproxime da estrutura cristalina cúbica de corpo centrado (CCC) típica da fase ferrítica, ao reduzir, por difusão atômica, o excesso de carbono dissolvido na solução sólida, intersticial, supersaturada em ferro alfa (ferrita). Dessa forma, à exceção da martensita não revenida, todas essas microestruturas são essencialmente definidas por uma estrutura cristalina do tipo CCC e, dependendo do tipo de aço ferrítico e do teor de elementos de liga, podem apresentam em menor ou maior quantidade agregados de carbetos livres de ferro do tipo XxCy [e.g., carbeto de molibdênio (Mo2C), nióbio (NbC), titânio (TiC), tungstênio (WC),

vanádio (VC), etc.] dispersos tanto na matriz ferrítica quanto em seus contornos de grão. A estrutura cristalina do tipo CCC é considerada um dos fatores responsáveis pela severa perda de capacidade de deformação plástica da microestrutura a baixas temperaturas [175]. Esse comportamento é atribuído à falta de habilidade das discordâncias em hélice (também denominada de espiral ou parafuso) em atravessar os planos de deslizamento da estrutura CCC, o que dificulta a multiplicação das discordâncias, mecanismo esse necessário para sustentar a deformação plástica [175]. O mecanismo de clivagem nos aços ferríticos ocorre nos planos {100} que possuem grandes espaçamentos interplanares em relação aos planos de deslizamento [175]. Detalhes adicionais de cada uma das microestruturas mencionadas no parágrafo anterior bem como do fenômeno de transição dúctil-frágil em aços ferríticos podem ser encontrados em Krauss [175].

No contexto da mecânica da fratura, a presença da estrutura cristalina do tipo CCC faz com que, para uma determinada faixa de temperatura, a falha local não seja definida exclusivamente por um único micromecanismo de fratura. Na realidade, o comportamento global à fratura do aço pode ser caracterizado por um modo predominantemente dúctil ou frágil devido à disputa local entre os micromecanismos de clivagem (i.e., fratura frágil controlada por tensão) e de cisalhamento (i.e., fratura dúctil controlada por deformação) em

uma faixa específica de temperatura. Dessa forma, a dicotomia dúctil-frágil relacionada ao comportamento à fratura faz com que a faixa de temperatura seja comumente denominada de RTDF. Além disso, dependendo das características metalúrgicas do aço, o comportamento à fratura pode variar drasticamente para pequenas variações de temperatura.

Diante das considerações mencionadas anteriormente, a tenacidade à fratura na RTDF está inserida num contexto probabilístico, uma vez que não é possível prever o comportamento predominante e estimar um único valor de tenacidade à fratura que seja representativo para uma dada temperatura nessa região. Nesse caso, ensaios de tenacidade à fratura realizados repetidamente sob as mesmas condições operacionais (i.e., mesma dimensão e geometria de corpo de prova, modo e taxa de carregamento, tenperatura) podem fornecer medidas de tenacidade à fratura significativamente distintas, o que inviabiliza uma análise determinística e, portanto, requer um tratamento estatístico adequado. Essa dispersão, embora em menor grau, também é comumente observada nos ensaios de tenacidade ao impacto Charpy realizados na RTDF, cujas taxas de carregamento são consideravelmente superiores às taxas de carregamentos nos ensaios de tenacidade à fratura.

Inserido no contexto da indústria nuclear e de óleo e gás, os aços comumente utilizados na fabricação dos VPRs e dos tubos das redes coletoras de CO2 são compostos

predominantemente por uma matriz ferrítica a qual é consitutída essencialmente por uma estrutura cristalina do tipo CCC e cuja tenacidade à fratura e ao entalhe em V por impacto Charpy apresenta grande sensibilidade a pequenas variações de temperatura, conforme representação esquemática da Figura 2.28.

Observa-se que o comportamento mecânico da fratura para esta classe de aço apresenta dois modos distintos de fratura, os quais são representados por duas regiões bem estabelecidas (PIE – Patamar Inferior de Energia e PSE – Patamar Superior de Energia) e intermediadas pela RTFD a qual pode ser convenientemente dividida em duas subregiões, conforme indicado na Figura 2.28. Deve-se ressaltar que a curva de transição dúctil-frágil obtida via ensaio de tenacidade ao entalhe em V por impacto Charpy - ECVN (i.e., sob maiores taxas de carregamento) apresenta um comportamento muito similar ao da curva de tenacidade à fratura obtida via ensaios mediante carregamento quase estático, monotônico e crescente (i.e., solicitação a menores taxas de carregamento). Essa evidência permite estabelecer uma correlação entre os valores de energia absorvida no ECVN e os valores de 𝐾𝐼𝑐 medidos nas correspondentes temperaturas [176–179].

Figura 2.28– Efeito da variação de temperatura na tenacidade à fratura em aços ferríticos

Fonte: Adaptado de Anderson [1]

O comportamento da tenacidade em função da temperatura nos aços ferríticos pode ser convenientemente descrito por quatro faixas distintas: patamar inferior de energia (PIE), região inferior da transição dúctil-frágil (RITDF), região superior (RSTDF) e, por fim, patamar superior (PSE), conforme esquematicamente ilustrado na Figura 2.28. Para os aços que possuem uma certa resistência à fratura por clivagem na RTDF, a intensa deformação plástica associada às tensões de elevada magnitude à frente da ponta arredondada da trinca produz, geralmente, rasgamento dúctil precedente à instabilidade por clivagem. Essa competição entre a falha local por clivagem e o mecanismo dúctil controla a resistência à fratura por clivagem de aços ferríticos na RTDF e é um dos motivos pelos quais se observa um elevado espalhamentos nas propriedades de tenacidade nessa região, conforme discussão a seguir em ordem crescente dos patamares de temperatura.

A região inferior (comumente denominada de patamar inferior de energia, PIE, ou, como na literatura internacional, LSE, do inglês Lower Shelf Energy) está associada às baixas temperaturas e caracteriza-se por apresentar um modo de fratura frágil por clivagem (i.e., tipo de fratura transgranular que se dá pela separação dos planos cristalográficos da estrutura

cristalina), conforme indicado na Figura 2.29. Nesse patamar de temperatura, a fratura é totalmente frágil e a probabilidade para a ocorrência da clivagem é praticamente unitária, visto que todos sítios nucleadores, incluindo a própria matriz, são atividados conjuntamente. Dessa forma, a clivagem é governada exclusivamente pela etapa de propagação.

Figura 2.29 – Trinca transgranular em um aço de baixo carbono associado a um carbeto de contorno de grão à frente da ponta da trinca

Fonte: Adaptado de Lin et al. [167]

O início da clivagem é comumente atribuído à predominância de tensões locais de abertura, 𝜎𝑦𝑦, superiores à tensão de fratura, 𝜎𝑓𝑐, (i.e., 𝜎𝑦𝑦 > 𝜎𝑓𝑐 ≫ 𝜎𝑦𝑠) sobre uma região microestruturalmente significativa à frente da ponta da trinca [167,180,181]. Essa região, segundo o modelo RKR [180], é dada por uma distância característica (𝑑𝑐) a qual pode ser

definida por um pequeno valor múltiplo dado em termos do diâmetro médio dos grãos ∅ do material, conforme indicado na Figura 2.29. No contexto experimental associado ao PIE, observa-se que a relação carga-deslocamento permanece praticamente linear até o ponto de instabilidade da trinca; isto é, durante todo o histórico de carregamento. Em decorrência da fratura ser controlada essencialmente por tensão e ser governada sob condições SSY, os parâmetros de tenacidade avaliados no PIE são quantificados pela MFEL e comumente expressos em termos do fator crítico de intensidade de tensão, 𝐾𝐼𝑐, conforme procedimento da

E399. Portanto, nessa região o colapso frágil ocorre quanto o fator de intensidade de tensão 𝐾 aplicado atinge o valor de 𝐾𝐼𝑐 de forma que a propagação da trinca ocorre a velocidades supersônicas [i.e., superiores a 1,2 Ma (≈1.500 km/h)].

Já para temperaturas ligeiramente superiores, tem-se a região de transição inferior (região inferior da transição dúctil-frágil, RITDF). Nessa região, o micromecanismo de fratura por clivagem passa a ser governado por duas etapas de forma que a sua ocorrência passa a ser dada em termos de uma probabilidade condicional. Ao contrário do PIE, em que a clivagem se dá apenas pela etapa de propagação, no RITDF a clivagem ocorre a partir das etapas de iniciação e propagação, conforme discussão mais adiante na Seção 2.4.2. Dessa forma, a clivagem passa a ser associada ao mecanismo do elo mais fraco onde a iniciação da clivagem se dá a partir do constituinte microestrutural (e.g., inclusão, partícula de segunda fase) mais frágil, não importando o quão resistente à fratura é o material. Portanto, a determinação da tenacidade à fratura deixa de ser determinística, passando a exigir um tratamento estatístico para fornecer um valor médio de tenacidade que seja representativo da população dos possíveis valores de tenacidade associados a essa região. Em virtude dessas características, as propriedades de tenacidade passam a ser fortemente dependentes da temperatura e dos aspectos dimensionais dos corpos de prova ensaiados nessa faixa de temperatura.

No âmbito experimental, a relação carga-deslocamento, embora linear em grande faixa da solicitação mecânica, torna-se não linear a níveis de carregamento próximos ao ponto de instabilidade, de forma que o nível de plasticidade na ponta da trinca tende a invalidar a aplicação direta da MFEL. Assim, as condições de fratura nessa região passam a ser mais bem descritas pela solução HRR, de forma que os parâmetros de fratura devem ser quantificados preferencialmente pela MFEP. Embora haja o desenvolvimento de uma maior plasticidade na ponta da trinca, a trinca não irá necessariamente iniciar o seu crescimento estável (ductile tearing) próximo ao ponto de instabilidade. Mesmo que a iniciação da trinca ocorra, ainda não é possível detectar um rasgamento dúctil de trinca significativo sobre a superfície de fratura devido à subsequente fratura instável por clivagem. Devido ao esse fato, tal crescimento é comumente denominado de crescimento subcrítico de trinca, ∆𝑎𝑝. Portanto, os valores de tenacidade à fratura podem ser expressos tanto em termos de valores críticos de integral 𝐽, 𝐽𝑐, quanto em valores críticos do parâmetro 𝐶𝑇𝑂𝐷, 𝛿𝑐, contanto que ∆𝑎𝑝< 0,2 mm. Deve-se ressaltar que a tenacidade à fratura no ponto de iniciação do rasgamento dúctil (∆𝑎 > 0), comumente determinada via curva de resistência 𝐽-𝑅 conforme procedimento da ASTM E1820-18 [67], é denotada por 𝐽𝐼𝑐 para distinguí-la dos valores críticos de 𝐽 no ponto de

instabilidade por clivagem (𝐽𝑐). Para que valores críticos de 𝐽 e de 𝛿 possam ser

representativos das condições de instabilidade por clivagem, as normas costumam limitar o valor de crescimento subcrítico ao estabelecer valores limites (∆𝑎𝑐).

Na sequência, tem-se a região superior de transição dúctil-frágil (RSTDF). Nessa região já é possível observar indícios de rasgamento dúctil mais significativos (∆𝑎𝑝 > ∆𝑎𝑐) seguido

da instabilidade por clivagem, ou seja, embora o rasgamento dúctil seja aparente sobre a superfície de fratura, a fratura final ainda continua sendo governada por clivagem. De modo geral, o colapso tanto na RITDF quanto na RSTDF ocorre quando a trinca existente, após um regime de crescimento estável, atinge um comprimento crítico acima do qual o seu crescimento torna-se instável conduzindo a estrutura ao colapso. O comportamento da curva carga-deslocamento revela uma extensa deformação plástica sobre o ligamento remanescente do corpo de prova ao indicar maiores níveis de deslocamento para pequenos aumentos de carga. Quando a instabilidade por clivagem ocorre após um crescimento estável de trinca considerável (∆𝑎𝑝 > 0,2 + 𝐽𝑄𝑐⁄2𝜎𝑦𝑠), o valor provisório de 𝐽𝑄𝑐 é definido por 𝐽𝑢, de forma

que os valores de 𝐽𝑢 não são considerados independentes dos limites paramétricos (𝐵, 𝑏𝑜). O mesmo é considerado para valores de tenacidade expressos em termos do parâmetro 𝐶𝑇𝑂𝐷 (∆𝑎𝑝 > 0,2 + 𝛿𝑄𝑐⁄1,4), conforme descrito na E1820-18 [67]. Ao contrário dos valores de 𝐽𝑐

que em princípio são considerados independentes desses limites, os valores de 𝐽𝑢 são intrinsicamente dependentes da geometria e do tamanho do corpo de prova. Em suma, para essas características de fratura (instabilidade precedida por rasgamento considerável), a temperatura de ensaio não está em um patamar completamente dúctil, de forma que o comportamento do material pode ser descrito por uma curva 𝐽-R limitada.

Por fim, a região superior (patamar superior de energia, PSE, ou, como na literatura internacional, USE do inglês Upper Shelf Energy) é associada às elevadas temperaturas e caracteriza-se por apresentar um modo de fratura essencialmente dúctil a partir da nucleação e coalescência de microcavidades de formato alveolar (dimples). A iniciação da fratura dúctil pela coalescência de microcavidades e cisalhamento localizado geralmente está associado ao desenvolvimento de uma deformação crítica sobre a ZPF intensamente deformada na ponta da trinca arredondada [124]. Nessa região, o crescimento da trinca (∆𝑎) é estável (ductile tearing) até determinado valor de carregamento (carga de instabilidade) a partir do qual o corpo de prova pode vir a falhar por instabilidade do rasgamento dúctil (tearing instability) ou por colapso plástico. As condições de fratura na região PSE são descritas e quantificadas essencialmente pela MFEP e o micromecanismo de fratura se dá predominantemente por

deformação plástica. Após atingir a máxima carga, deslocamentos adicionais impostos no ponto de carregamento conduzem a uma gradual redução na carga enquanto o rasgamento dúctil continua. Nessa região é possível calcular 𝐽 para quaisquer crescimentos de trinca (∆𝑎), contanto que ∆𝑎 < ∆𝑎𝑙𝑖𝑚𝑖𝑡 = 2,0 mm e que 𝐽 < 𝐽𝑙𝑖𝑚𝑖𝑡 = 𝑏𝑜𝜎𝑦𝑠⁄7,5. Essa medida define a região de validade da integral 𝐽. Já em termos do parâmetro CTOD, o valor limite (𝛿𝑙𝑖𝑚𝑖𝑡) é dado por por 𝛿𝑙𝑖𝑚𝑖𝑡 = 𝑏𝑜⁄7,5𝑚 onde 𝑚 é o parâmetro adimensional da relação 𝐽-𝛿, conforme

abordado em detalhes na E1820. Acima desses limites, a estrutura colapsa de modo plástico o qual é caracterizado pela perda de capacidade da seção remanescente suportar as tensões atuantes antes da instabilidade da trinca.

Para os patamares inferior e superior, a determinação dos parâmetros descritores das condições de fratura (𝐾, 𝐽, 𝛿) pode ser satisfatoriamente realizada de modo determinístico, ou seja, é possível obter um único valor que seja representativo da tenacidade à fratura na região de interesse. Todavia, como a própria denominação evidencía, a RTDF apresenta um comportamento intermediário entre o frágil e o dúctil, de tal forma que ambos os modos podem ou não coexistir, durante o processo de fratura. Nesse caso, a instabilidade do crescimento da trinca por clivagem pode ser ou não precedida de um pequeno crescimento estável de trinca (crescimento subcrítico) ou, em certos casos, precedida apenas de um pequeno arredondamento na ponta da trinca, mecanismo esse conhecido como blunting, o que faz esse mecanismo ser ainda mais frágil em relação àquele. Devido às diferentes possibilidades de mecanismos de fratura na RTDF, diferentemente do que ocorre nas regiões de PIE e PSE, a tenacidade à fratura medida na região de transição requer uma abordagem mecânica associada a eventos estatísticos devido ao fenômeno estocástico da tenacidade à fratura nessa região.

Dentro desse contexto, os subtópicos seguintes fazem uma concisa, porém detalhada, descrição dos principais aspectos relacionados ao fenômeno estocástico da tenacidade à fratura na região de transição dúctil-frágil de uma das principais classes de aços estruturais, os ferríticos.