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MITOS E EQUÍVOCOS NOS MODELOS DE DISTINÇÃO E APLICAÇÃO DE

3 PAPEL DE REGRAS E PRINCÍPIOS NA REGULAMENTAÇÃO DO

3.5 MITOS E EQUÍVOCOS NOS MODELOS DE DISTINÇÃO E APLICAÇÃO DE

As ideias Ronald Dworkin e Robert Alexy proporcionam um relevante referencial teórico no estudo sobre o conceito, aplicação e distinção de regras e princípios. Entretanto, há alguns mitos e equívocos na concepção que as regras valem à maneira do tudo-ou-nada e que somente os princípios possuem a dimensão do peso (Ronald Dworkin), bem como na concepção de que as regras são satisfeitas ou não satisfeitas, pois contêm determinações no âmbito daquilo que é fático e juridicamente possível, enquanto somente os princípios podem ser satisfeitos mais ou menos, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas existentes (Robert Alexy).

A aplicação e as distinções entre regras e princípios formuladas por Ronald Dworkin e Robert Alexy situam-se no plano de análise abstrata das normas. No plano da aplicação das normas jurídicas essas distinções apresentam alguns equívocos, pois alguns critérios podem ser importantes no primeiro plano e inadequados no segundo, ou vice-versa124. Humberto

Ávila verifica que o conflito entre regras não é necessariamente abstrato (nível de validade), pois pode ocorrer no plano de aplicação das normas. Cita um exemplo de uma regra que proíbe a concessão de medida liminar contra a fazenda pública que esgote o objeto litigioso125. Outra regra, determina que o Estado deve fornecer, de forma gratuita,

medicamentos excepcionais para pessoas que não podem suportar os custos da aquisição126.

As duas regras somente entram em conflito no plano concreto, pois no plano abstrato elas mantém sua validade, sendo que a opção de uma das regras não invalida a outra.

Ronald Dworkin e Robert Alexy afirmam que somente os princípios comportam uma dimensão de peso e podem ser satisfeitos em graus variados, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto. Ocorre que no plano de aplicação das regras ao caso concreto, diferentemente do proposto pelos autores, as regras também comportam um dimensão de peso e pode ser satisfeitas em graus variados. Para demonstrar essa situação, Marcelo Neves confronta a hipótese do art. 37, inciso X, da Constituição Federal, que assegura a revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos, com a regra

124ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14ª edição. São Paulo: Malheiros, 2013, p.72.

125 Art. 1º da Lei Federal nº 9.494/1997.

126 Art. 1º da Lei nº 9.908/1993, do Estado do Rio Grande do Sul. A União Federal tem regra similar art. 6º da Lei Federal nº 8.080/90.

constitucional que exige uma destinação de percentual mínimo para a manutenção e o desenvolvimento da educação (art. 212 da Constituição Federal). No caso concreto, os recursos são escassos para atender as duas regras. Com isso, as possibilidades fáticas (a escassez de recursos para atender as duas regras) são relevantes e a questão depende de consideração de peso. Considerando que o precário sistema público de educação seria mais gravemente atingido, enquanto a restrição ao reajuste dos servidores implicaria prejuízos de menor extensão, pode-se conceder primazia a regra do art. 212 da Constituição Federal. Assim, impõe um sopesamento a negativa do reajuste aos servidores, por força de um peso concedido à regra que determina o percentual vinculado à educação. De modo inverso, caso o sistema público de educação tivesse níveis de excelência, a regra de concessão de reajuste dos servidores teria um peso maior, pois teria fundamento na deterioração das condições de vida em face de um processo inflacionário127.

Humberto Ávila cita outro exemplo de que as regras nem sempre são aplicadas de modo tudo-ou-nada (all-or-nothing). As regras disposta no art. 37, inciso II, da Constituição Federal, determinam que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público. Em caso de violação à referida regra, o agente responsável pela contratação sofrerá sanções administrativas e penais. O Supremo Tribunal Federal, em julgamento de habeas corpus,trancou ação penal contra a Prefeita de Município responsável pela contratação, sem concurso público, de um cidadão para prestar serviços como gari pelo período de nove meses128. No entendimento do Supremo Tribunal Federal, considerando

período diminuto e a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. Segundo o autor, nesse caso, a regra que determina a realização de concurso para contratação de agente público incidiu, mas a consequência do seu descumprimento não foi aplicada129. Demonstra-se, assim, que nem

sempre as regras são aplicadas à maneira do tudo-ou-nada, pois a execução das consequências predeterminadas, somente surgem após a interpretação e concretização da norma.

Outrossim, alguns conflitos normativos não são resolvidos à maneira do tudo-ou- nada, pois conceder primazia a determinada regra em detrimento de outra não significa a invalidação da regra preterida, mas tão somente que na solução daquele caso específico uma regra tem um peso maior. Vejamos o aparente conflito entre o art. 150, IV, da Constituição

127 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do

sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 78-80.

128 STF, 2ª Turma, HC 77.003-PE, relator Ministro Marco Aurélio, j. 16.06.1998, DJU 11.9.1998.

129ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14ª edição. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 50.

Federal, que estabelece: “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco”. De modo inverso, o art. 153, §4º, I, da CF, que permite o imposto de propriedade rural (ITR) tenha “suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas”. A Lei nº 9.393/96, com fundamento no art. 153, §4º, I, da CF, estabelece alíquotas progressivas com base no tamanho do imóvel e no grau de utilização. Nos termos da indigita lei, a alíquota tributária poderá chegar a 20% (vinte por cento) do valor do imóvel, o que a princípio poderia ser considerado um tributo com efeito confiscatório, considerando que em 5 (cinco) anos o ônus tributário seria de 100% (cem por cento) do valor do imóvel.

O conflito normativo não ocorre no plano abstrato, pois as duas regras não apresentam antinomia aparente. Entretanto, no caso concreto, no momento da aplicação, o conflito revela-se, o que exige sopesamento. A regra que permite uma tributação manifestamente elevada - com verdadeiro efeito confiscatório – no caso concreto pode ter, momentaneamente, um maior peso, ao garantir a ordem social e econômica da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III, da CF) desestimulando a formação de latifúndios improdutivos ou de baixa produtividade.

A primazia dessa regra em relação a vedação da instituição de tributo com efeito confiscatório, não significa que esta última perdeu sua validade, mas tão somente que ela cedeu momentaneamente, pois em outro caso concreto a regra que veda o efeito confiscatório do tributo pode ter maior peso. Desse modo, em certas situações quando ocorrer conflito de regras a solução nem sempre será tudo-ou-nada, satisfeita ou não satisfeita, pois as regras também gozam de dimensão de peso na solução do caso concreto, sem que isso as invalide.

Nesse diapasão, eventual conflito de regras no plano de aplicação também pode ser resolvido por uma dimensão de peso e conforme as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto. O direito e realidade estão integrados na estrutura da norma jurídica, por isso as regras, no âmbito de sua aplicação, também podem ser satisfeitas em graus variados, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas.

Marcelo Neves se contrapõe à ideia de Robert Alexy de que os princípios constituem razão direta para a tomada de uma decisão concreta. Os princípios, segundo o autor, são normas no plano reflexivo, possibilitando o balizamento e a construção ou reconstrução de regras, desempenham sua função especialmente em relação à adequação social do direito, em particular nos casos controvertidos mais complexos. As regras, constituem razões imediatas para normas de decisão, são condições da aplicação dos princípios à solução dos casos. Assim, na perspectiva do autor: “Apenas à luz do princípio, enquanto princípio, não se

consegue observar e determinar diretamente a relação entre o fato jurídico e sua eficácia jurídica concreta”. Somente no desenvolvimento do processo concretização, à luz da regra, há transformação do suporte fático em fato jurídico irradiador de efeitos concretos130. No

entendimento do autor, os princípios contam apenas com a hipótese normativa ampla, com isso necessitam de regras para transformar o suporte fático em fato jurídico irradiador de efeitos jurídicos concretos131.

Nessa mesma esteira, Heleno Tôrres também compreende que os princípios dependem de regras para produzir efeitos jurídicos concretos, pois no que pesem serem normas jurídicas, são desprovidos de modalização deôntica completa (obrigatório, permitido ou proibido). Eles orientam e cooperam como a maior efetividade possível as consequências jurídicas das regras aplicáveis ao cada caso, segundo as situações fáticas e o contexto normativo no qual se opera a decisão ou a solução de conflitos132. Ressalta, o autor, que: “A

função normogenética do princípio somente pode ser compreendida como parte da cooperação do princípio na articulação das razões, valores e conteúdos que orientam a decibilidade da autoridade ou da fonte jurídica”133.

Decerto os princípios a prima facie não tem por objetivo estabelecer condutas e irradiar efeitos jurídicos concretos. Eles têm o propósito maior de promover a reflexividade do sistema jurídico, balizando a construção, reconstrução, orientação e a adequação social das regras. Todavia, não se pode negar que os princípios também podem irradiar efeitos jurídicos concretos na ausência de regra para solução do caso. Vejamos o exemplo do art. 5º, inciso LXXVIII, da CF, que assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. A indigitada norma tanto pode atuar como um princípio (razoável duração do processo) ao promover a reflexividade dentro do sistema jurídico, balizando a construção ou reconstrução de regras134,

130 Importante destacar, que Marcelo Neves reconhece o caráter normativo e proposicional dos princípios, pois os enunciados desses contêm um antecedente e um consequente. NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 123.

131 Importante destacar, que o autor reconhece uma dimensão proposicional dos princípios. NEVES, Marcelo.

op. cit, p. 124.

132 Tôrres, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança

jurídica do Sistema Constitucional Tributário. 2ª ed. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2012, 535-536. 133 Tôrres, Heleno Taveira. op. cit, p. 543.

134 Podemos citar o exemplo da Lei nº 11.457, de 16 de março de 2007, que foi criada em razão da norma constitucional: “art. 24. É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte”.

quanto pode gerar efeitos jurídicos concretos, ao garantir a celeridade na tramitação processual por meio de uma decisão concreta135.

Nesse passo, os princípios a prima facie atuam no plano reflexivo do sistema jurídico, promovendo a construção, reconstrução e a adequação social das regras, entretanto, excepcionalmente, podem atuar diretamente na produção de normas jurídicas concretas.

As obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy proporcionaram novos critérios para conceituação, distinção e aplicação de regras e princípios, influenciando de modo contundente a alteração do paradigma da teoria jurídica vigente. Ocorre que tais distinções apresentam alguns equívocos no plano da aplicação das normas, pois tantos as regras quantos os princípios, na produção de norma jurídica de efeitos concretos, possuem dimensão de peso e importância e são satisfeitos mais ou menos, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto.