• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1: O direito e o contexto decisório

1.3 Modelos normativistas

Até o século XVIII, sempre houve espaço para o chamado direito posto, expresso em normas historicamente determinadas, ao lado do direito natural. A rigor, o predomínio em importância cabia ao jusnaturalismo, mas não havia preocupação em se especular sobre o exclusivismo de uma estrutura ou outra do fenômeno jurídico. Existia uma certa coexistência pacífica entre o direito positivo, nem sempre posto pelo Estado, e o direito natural, com sua fundamentação de caráter metafísico.

As tradições jusnaturalistas se erigiram a partir de alguns pressupostos tidos por essenciais. Em primeiro lugar, há uma ordenação natural que paira sobre o homem histórico. Esta ordem natural, em caso de choque com a ordem positiva histórica, prevalecerá sempre, já que incorpora um nítido sentido de justiça. Um outro elemento essencial à maioria das concepções jusnaturalistas é a idéia de que a ordem natural deve valer para todo o tempo e

lugar16. Mas “quem vibrou no Direito natural o golpe decisivo, foi, não a História do direito, ou o Direito comparado, mas a Teoria do Conhecimento; foi, não a Escola Histórica, mas a Filosofia Crítica; não Savigny, mas Kant” (RADBRUCH, 1997, p. 63). A razão, assim, se apresenta como um complexo de perguntas a partir das quais busca-se aproximar dos dados empíricos. E juízos ou apreciações com conteúdo preciso jamais poderão ser um produto da “razão pura”, devendo esta ser aplicada aos dados provenientes da experiência para que venha à tona as valorações desejadas.

Desde meados do século XVIII a lei estadual tendia a monopolizar a atenção dos juristas. A partir daí, alguns países da Europa passaram a promover amplas reformas legislativas influenciadas ainda pelas doutrinas jus-racionalistas que ganharam corpo nos duzentos anos anteriores. E “foi sobretudo em França que a codificação [...] mudou mais radicalmente a face do direito, fazendo tábua rasa do direito anterior e promovendo, por isso, a identificação do direito com os novos códigos” (HESPANHA, 1998, p. 177). Assim é que há uma nítida identificação entre a origem do legalismo e a Escola de Exegese, corrente jurídica do século XIX.

Desse ponto em diante foi crescente a supremacia da visão do direito como fenômeno associado quase que exclusivamente à produção legislativa. O primado da lei, no sentido amplo, a partir do oitocentos, não deixou de possuir explicações históricas. Quando do absolutismo monárquico, em pleno Antigo Regime, o soberano era detentor de amplos poderes, administrando, legislando e julgando, tudo ao sabor de um certo arbítrio tão aterrorizante aos súditos. A objetividade do texto legal e a sua pretensa igualdade para todos significavam avanços consideráveis. O próprio surgimento de uma efetiva ciência do direito, a partir da Escola Histórica alemã, contemporânea às tendências legalistas anteriormente apresentadas, embora ela mesma minimizando os exageros codicistas, só veio a fortalecer as

16 De fato existem concepções minoritárias que admitem um conteúdo variável para o direito natural

teses de plena dominação do direito positivo (agora estatal) sobre qualquer tendência jusnaturalista sobrevivente.

Assim, nos séculos XIX e XX, várias concepções epistemológico-jurídicas relativas à cientificidade do conhecimento jurídico foram ganhando corpo, seguindo cinco direções fundamentais: empirismo exegético, historicismo casuístico, sociologismo eclético, racionalismo dogmático e egologia existencial. Uma sexta direção fundamental, o racionalismo metafísico ou jusnaturalista, é anterior a esse momento histórico, tendo se exaurido até o século XVIII17. Em todo esse contexto teórico-explicativo da realidade jurídica há uma certa preponderância das correntes normativistas, exceção feita ao âmbito das regiões dominadas pelo common law (especialmente o norte-americano) e ao mundo escandinavo, em que é forte a presença das tendências realistas.

Um dos mais célebres normativistas do século XIX foi o alemão Rudolf Von Jhering, a rigor um imperativista que via na norma um comando singular, semelhante ao dirigido pelo militar de patente superior a um subordinado. Para ele o estado de direito nasce da necessária conjugação de três fatores: coerção estatal, norma e força bilateralmente vinculante da norma. Na verdade é o direito a força bilateralmente vinculante da lei, a devida subordinação de todos, inclusive do poder público, às leis que ele mesmo ditou (JHERING, 2002, p. 241-242). É fato que a fase madura da produção do jurista alemão assenta-se numa importante mudança de enfoque, no sentido de se visualizarem os problemas que as normas jurídicas se destinam a resolver, o que deve levar a um maior interesse pela efetiva solução daqueles, em face da aplicação das normas, interesse maior, inclusive, do que o da manutenção dogmática de uma norma no sistema normativo (GUERRA FILHO, 2001, p. 64).

Indiscutivelmente a construção teórica mais consistente, no campo do normativismo, é o modelo explicativo de Hans Kelsen, talvez o mais influente dos imperativistas do século

XX. Muitas das preocupações anteriores de Jhering, como as questões da individualidade, da generalidade, da abstratividade e da concretude da norma, são superadas por Kelsen, ainda que, principalmente na produção posterior a 1960, ele continue falando de “vontade”, só que num sentido de “vontade abstrata” (FERRAZ JR., 1996, P. 217). A ênfase metodológica no direito objetivo, com o predomínio do elemento “norma”, que tantos seguidores e oponentes acumulou no século passado, não deixou de marcar a essencialidade da temática decisória no universo jurídico. Ainda que a justificação do dever ser tenha sofrido alterações ao longo da evolução do pensamento kelseniano, para ele “a norma consiste no sentido de dever ser de um ato humano intencionalmente dirigido à conduta de outrem, porém esse sentido, para apresentar-se como jurídico, deve ser objetivo” (BARZOTTO, 1999, p. 34).

Para Kelsen, o tradicional dualismo do direito no sentido objetivo e no sentido subjetivo estaria superado. Supera-se a concepção forense segundo a qual o direito refere-se tão somente aos interesses das partes. A Teoria Pura desmantela o dualismo objetivo- subjetivo

ao analisar o conceito de pessoa como a personificação de um complexo de normas jurídicas, ao reduzir o dever e o direito subjetivo (em sentido técnico) à norma jurídica que liga uma sanção a determinada conduta de um indivíduo e ao tornar a execução da sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida (KELSEN, 1996, p. 213).

É reconhecida, saliente-se, a consistência do modelo kelseniano no contexto lógico- formal. Do ponto de vista da filosofia do direito, entretanto, há debilidades insanáveis na sua teoria, o que fizeram surgir críticas ferozes de todos os lados, inclusive dos próprios rincões positivistas-normativistas (VASCONCELOS, 1996, p. 176).

O direito dogmático estatal, um modelo formalista metodologicamente fechado proposto pela Teoria Pura de Kelsen, jamais perdeu de vista que direito é decisão. E tal matiz decisório pode ser perfeitamente reforçado pela doutrina da coação como objeto do direito, conscientemente formulada por alguns autores. A sanção deixa de ser meio para a realização

da norma jurídica e passa a ser elemento essencial da estrutura dela, enfatizando, assim, o caráter de aplicabilidade do direito através de processos decisórios (BOBBIO, 1995, p. 156- 157).